O cancelamentos em redes sociais no Século XXI é um fenômeno aparentemente inexorável. Já se fala em “cultura do cancelamento”, como uma espécie de boicote coletivo e difuso a partir de determinada atitude ou opinião expressada; o cancelamento, pois, é uma manifestação pública de censura a uma empresa, artista, atleta e celebridade (ou subcelebridades) em geral.
Esta execração pública, que hoje é difusa e se manifesta pelas redes sociais, era promovida no Século XX pela mídia, quando não concordava ou criticava o posicionamento de determinado artista.
Este fenômeno ocorreu com Caetano Veloso, em 1977, quando ele lançou o disco “Bicho”.
O disco contém algumas canções que se tornaram verdadeiros clássicos de Caetano, como “O Leãozinho” “Tigresa” e “Alguém cantando”. No entanto, provocou uma verdadeira saraivada de críticas da imprensa, que cobrava de Caetano uma postura politicamente mais engajada.
O contexto da época: Em 1977, o Brasil ainda estava sob o regime militar. O presidente era Ernesto Geisel, que prometia uma chamada “abertura lenta, gradual e segura” como forma de transição para um futuro governo democrático.

Não obstante, em 1º de abril de 1977, o Brasil acordou sem Congresso Nacional. O presidente Geisel se valeu do Ato Institucional 5 (AI-5), que não era usado desde 1969, para colocar o Parlamento em recesso, anunciando, no mesmo mês, um conjunto de medidas conhecido como Pacote de Abril, composto por uma emenda constitucional e seis decretos, tudo isso para assegurar maioria na Câmara e no Senado à ARENA, partido do governo.
Neste contexto, o álbum teve uma repercussão negativa justamente por ser considerado “alienante”, pois sua proposta era dançante e sem engajamento político. Numa reportagem de Claudia Arrigoni, no Jornal do Brasil em, 1977, Caetano afirmou:
“Passei 12 dias na Nigéria curtindo o Festival de Arte Negra. Agora vou lançar um disco para todo mundo dançar. Eu acho bacana essa coisa de dançar, gosto muito. Talvez eu não seria capaz de fazer esse tipo de música muito bem, mas pensando bem, esse não é um disco para dançar, só feito por alguém que gosta de dançar. Entendeu? Na África, as pessoas dançam e isso é bacana“.

O show, em consequência do álbum se chamava Bicho Baile Show, numa clara alusão de que seria um espetáculo para as pessoas dançarem, no qual Caetano seria acompanhado da Banda Black Rio.
Mas a repercussão não foi positiva, como conta Paulo César de Araújo no Livro “Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar”

O caso Caetano Veloso é exemplar. Em 1977- ano em que os militares comemoravam os “13 anos da revolução” e que a sociedade civil protestava, o cantor lançou o LP “Bicho”, que indicava uma opção preferencial pelo prazer e trazia na faixa de abertura um quase manifesto: “Deixa eu dançar / pro meu corpo ficar odara…” Palavra do dialeto ioneba (africano), odara, segundo o próprio Caetano, significa “estar bem”, “sentir-se feliz“.
Nas entrevistas à imprensa o artista dizia que não tinha maiores interesses por assuntos políticos e reiterava que aquele era um disco “de quem gosta de música para dançar”. Aí é que estava o problema. “Dançar, nesses tempos sombrios?”, indagava a jornalista Ana Maria Bahiana. Um outro jornalista, indignado, afirmava que Caetano “não tinha o direito de pôr uma roupa colorida e sair brincando por aí, dizendo que está tudo bem, isso é oba-oba inconsequente“
O ápice do patrulhamento ocorreu durante a temporada do espetáculo Bicho Baile Show, no qual Caetano era acompanhado pela Banda Black Rio – grupo carioca que propunha a fusão do samba com elementos do jazz, soul e funk. A jornalista Margarida Autran dizia que “o artista não pode alienar-se da realidade que o cerca” e que por isso Caetano Veloso não tinha o direito “de não ler jornais, de declarar publicamente nada saber do que se passa em termos políticos – no Brasil e no exterior e, consequentemente, de apresentar um espetáculo como o que está em cartaz no teatro Carlos Gomes, irresponsavelmente ‘feito para dançar’. E que, afinal, nem para dançar serve”. Ela concluía afirmando que ao seguir o rastro do sucesso da Banda Black Rio, o show de Caetano não passava de uma “oportunista e malsucedida incursão ao alienado clima que hoje embala os subúrbios cariocas”.
Vale a pena citar trechos de algumas reportagens sobre o tema:
Luís Carlos Cabral – Revista POP (1977) – “Não acredito que Bicho gerasse tanta controvérsia se tivesse sido editado em época de maior silêncio geral. A geral, porém, se agita, e precisa de solidariedades unânimes. Brasil à parte, o poeta Caetano Veloso continua exercitando a sua fina sensibilidade“,
Maria Helena Dutra (Jornal do Brasil) – “Afastemos, porém, e outra vez, das ciladas de discutir e refletir sobre conteúdos porque afinal esse show foi feito para esquecer, já que não atinge mesmo sua desejada finalidade de ‘feito para dançar'(…) Parodiando o exímio artista da palavra, o sempre gostável e também senhor Caetano Veloso em sua música Tigresa: ‘As garras do artista Caetano nos marcaram o coração. Mas as besteiras de menino que ele disse, não’.”
Jary Cardosos (Folha de São Paulo)“O baiano não esperava uma agressividade tão grande por parte dos críticos em relação às suas propostas dançarinas (‘O certo é dançar’, diz uma de suas músicas) e ‘alienantes’ (o que ele não concorda)“.
Esta Patrulha ideológica contra Caetano tinha na Canção Odara seu símbolo maior: uma canção livre, leve e solta, certamente inspirada na viagem que Caetano e Gil fizeram a Lagos, na Nigéria, para participar do II Festival Mundial de Artes e Cultura Negra (Festac). Então, se trata de uma música para cima, alto-astral, que cultua o prazer. Caetano, sobre a canção, falou ao Jornal do Brasil : “Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de que Odara era a mais bonita das canções que tinha feito ultimamente. Até hoje, ainda não encontrei bons argumentos em contrário”
Mas a patrulha ideológica foi implacável: caetano, preso durante a ditadura e exilado, não teria o direito de cantar a felicidade. Teria um dever de engajamento. Luciana Xavier de Oliveira, no seu escrito “Disputas ideológicas, cultura negra e jornalismo cultural: a crítica musical carioca e os bailes de soul dos anos 1970”, pondera:
O debate em torno das patrulhas ideológicas se refere a um momento muito particular dos anos 1970, em que intelectuais e formadores de esquerda deliberadamente passaram a cobrar uma arte engajada, criticando manifestações que não se enquadrassem em um viés de contestação política. As patrulhas ideológicas estabeleciam claramente uma distinção de valor entre “músicas para dançar” e “músicas para pensar”. Caetano denunciava os cadernos de cultura dos principais jornais e revistas do país, que seriam dominados por uma esquerda repressora representada por críticos que pretendiam policiar a música popular no Brasil. Se os próprios integrantes da MPB poderiam ser criticados por produzir canções e discos que privilegiassem a festa, a alegria, o ritmo e a dança, o que dirá de todo um movimento periférico, popular, baseado em bailes, nos quais se ouvia e se dançava música americana? Risério (1981, p. 32) ainda complementa: “Pior ainda é que esses setores supostamente ‘progressistas’ falavam em nome das massas oprimidas do país exatamente para condenar uma das manifestações estéticas e sociais mais vivas dessas mesmas massas oprimidas.

Paulo César de Araújo prossegue:
Como se vê, mais do que a música em si, os críticos analisavam as atitudes, as opiniões, os posicionamentos políticos de Caetano e Gil. Contra isso insurgiu-se Caetano Veloso numa polêmica entrevista ao Diário de São Paulo. Ali ele afirmou que os cadernos de cultura dos principais jornais e revistas do país eram dominados por uma “esquerda medíocre, de baixo nível cultural e repressora” que pretendia policiar “essa força que é a música popular no Brasil”. E Caetano exemplificava citando nominalmente quatro críticos musicais: Tárik de Souza, José Ramos Tinhorão, Maurício Kubrusly e Maria Helena Dutra, que, segundo ele, distribuíam estrelinhas a discos e shows “fingindo que estão fazendo um trabalho da revolução operária, e se acham no direito de esculhambar com a gente, porque se julgam numa causa nobre; quando não tem nobreza nenhuma nisso“.
Para Caetano, seus críticos não tinham autoridade para questionar nenhuma atitude dele porque “são pessoas que obedecem a dois senhores: um é o dono da empresa, o outro é o chefe do partido” e que por isso eles se expressariam numa “linguagem completamente esquizofrênica”, de difícil assimilação para o leitor.
“Ninguém entende os artigos que os imbecis escrevem porque é uma mistura de Roberto Marinho e Luiz Carlos Prestes.” Chamando a crítica militante de “canalha”, Caetano dizia que “se eles não se tornarem uma União Soviética e mandarem me matar, não conseguirão jamais nada comigo, a não ser que eles ganhem os tanques. Se eles tiverem os tanques nas ruas, nas mãos deles, aí eles poderão me impedir em alguma coisa. Fora isso, é impossível” porque “eles não são de nada. É uma canalha que eu digo que vou acabar, que a gente já acabou, já matou, são defuntos que fingem que estão vivos”.
Na contramão da crítica, Tarso de Castro afirmou em 31 de julho de 1977: “Mas é realmente formidável que agora se esteja vivendo o repeteco das perseguições a Caetano Veloso. Ah, que belos críticos temos: se não se especializaram em música são totais admiradores do próprio fascismo. (…) Falemos de uma coisa boa: ‘Bicho’, de Caetano Veloso, é um disco lindo, limpo, de uma correção assustadora, irritante“.

Mais tarde, em 1991, Caetano Veloso, em reportagem de Marcia Cezimbra no Jornal do Brasil, apontava: Odara é uma confissão de namoro com as discotecas. Eu me sentia bem em me aproximar do movimento Black Rio que surgia na época, quando começaram os grandes bailes funks. Tinha voltado de uma excursão na África com o Gil, onde tive contato com a juju music da Nigéria. É um disco histórico, porque traz pela primeira vez a juju music para o Brasil em Two naira fifty kobo, que era o preço que a gente mais ouvia na Nigéria e o apelido do motorista que nos acompanhava. Fiz a música pensando no motorista. Tem Um índio, com uma levada reggae. Tem Leãozinho, deslumbrante. Uma vez fui cantar numa assembleia não sei de quê na Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Ia fazer um número para animar as pessoas, igual ao dessas, cantoras que cantam para os soldados na guerra, e recebi um bilhete de que levaria porrada se cantasse Leãozinho. Na hora ia cantar, mas fiquei com medo. Nem sabia direito que manifestação era aquela. Foi um amigo que me pediu para ir. Tem Tigresa, que cita na letra a discoteca Dancin’ Days, uma boate do Nelson Motta que eu adorava. Aliás, eu encontrava muito desses críticos de esquerda dançando nas discotecas.”
O tempo terminou fazendo com que Bicho, a despeito de todas as críticas, permanecesse. Não sei se poderia ser considerado propriamente um disco dançante. muitas de suas canções são canções para serem ouvidas. Talvez “Odara” e “Gente” seriam as músicas mais dançáveis. Mas, por outro lado, clássicos permaneceram, e “Leãozinho”, “Tigresa” , “Alguém Cantando” permanecem no repertório dos shows de Caetano até hoje.
Fontes:
Paulo César de Araújo: Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar Record, 2010
Luciana Xavier de Oliveira – Disputas ideológicas, cultura
negra e jornalismo cultural: a crítica musical carioca e os bailes de soul dos anos 1970
https://www.ibahia.com/caetano80anos/caetano-80-anos-veja-criticas-de-cinco-albuns-do-icone-da-mpb


























