Arca de Noé – Vinicius de Moraes

Há uma tendência de que todo adulto se lembre de seu tempo de criança como o melhor de todos os tempos. Os brinquedos, os costumes, as guloseimas, as músicas  e os programas de TV. No entanto, é difícil encontrar um musical infantil que se compare à Arca de Noé, programa da TV Globo lançado em 1980 para o Dia das Crianças.

O programa de Augusto Cesar Vanucci, com roteiro de Ronaldo Bôscoli, tem como inspiração um conjunto de poesias “Arca de Noé”, lançado por Vinicius de Moraes em 1970. Na primeira versão, participaram do projeto Toquinho, Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Marina Lima (então só Marina), Moraes Moreira, Alceu Valença, Ney Matogrosso, Bebel Gilberto, Frenéticas, Fabio Jr., Boca Livre e Walter Franco.

Ainda hoje, assistindo o especial, numa precária cópia gravada em VHS, percebe-se a riqueza musical, que se inicia de modo solene, com Chico Buarque narrando um primeiro trecho da poesia, que se transforma em canção na voz de Milton Nascimento. A narrativa dos animais amontoados na arca, e depois a saída dos animais:  

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Depois da canção de abertura, vem “A porta”, com Fábio Jr., em que a porta “fecha a frente do quartel“, mas que “só vive aberta no céu”. 

Depois começa, enfim, o desfile dos bichos, e Vinicius escapa dos bichos óbvios, começa com a circense “a foca”, com Alceu Valença, que apresenta as focas americana (“rica, rica, mas que não dá para ninguém”), a foca francesa, cheia de plumas e paetês, ao som da Marselhesa, ao fundo, e a Foca Brasileira,que caiu, porque não tem sardinha.

Tem Elis Regina, cantando a “feia e esquisita” Coruja, Bebel Gilberto, adolescente, cantando a pulga que vai atrás do freguês encher a barriguinha, Moraes Moreira louvando as abelhas operárias e fazendo troça da abelha rainha que “engorda a pancinha e não faz mais nada”.

A canção “O pato”, na interpretação do MPB-4, foi uma das músicas de mais sucesso do especial, pois conta de modo bem humorado as agruras de um pato atrapalhado, que se mete em confusões com galinha, com marreco e que, por causa disso, acaba na panela. (Mas no programa, a menininha Aretha liberta o patinho do forno…)

Em seguida tem Ney Matogrosso, absolutamente discreto, cantando lindamente a Oração de São Francisco, acompanhado de um violão.

Marina faz uma bela interpretação de “O gato”, para em seguida o Boca Livre cantar “A casa” , sem teto, sem chão, sem parede, sem penico, na Rua dos Bobos, número zero…

Pode parecer estranho que, num disco e programa sobre a Arca de Noé, haja uma divertida e maliciosa interpretação das Frenéticas e os solfejos da aluna e do professor nas aulas de piano.

O site http://caracol.imaginario.com/discoteca/arcadenoe/index.html, esclarece:

Até aula de piano tem. Onde o poeta buscou inspiração para colocar uma aula de piano nessa arca? 

Ele era um homem de muitas leituras e escutas. Provavelmente conhecia a obra do músico francês Camille Saint-Säens, autor de O Carvanal do Animais. Pois bem que nesse desfile, além de cangurus, galos e galinhas, leão, burro, musaranho, cisne, até aquário e fósseis, aparecem os pianistas… e, como o colega francês, o poeta brasileiro tratou de incluir uma aula de piano na roda de tantos bicos, bocas, bigodes, pêlos e penas. Acredita? Outra curiosidade: Vinícius de Moraes, anos antes de escrever A Arca de Noé, ter traduzido o livro Orações na Arca, da religiosa francesa Carmen Bernos de Gastold.    

Terminando o disco com a tranquila “O relógio”, com Walter Franco, e o encerramento com a bela “Menininha”, interpretada por Toquinho, como uma prece pela eternização da infância, como uma saudade antecipada de quem quer que a criança continue criança a vida inteira.

Um especial fantástico e atemporal. Assim como Vinícius. A Arca de Noé foi escrita inicialmente por Vinícius para seus filhos Suzana e Pedro. No site oficial de Vinícius, a história é contada:

 Por muitos anos, eles ficaram guardados. Só em 1970, o conjunto de poemas infantis ganha o mundo. Seu lançamento ocorre na Itália, país onde a presença do poeta era constante, seja através de diversas visitas e temporadas ou de traduções de sua obra. 

É lá, justamente quando Vinicius conhece um amigo de Chico Buarque chamado Toquinho, que o disco com os poemas infantis é preparado. O disco é chamado L’Arca. No mesmo ano, seus poemas musicados na Itália são lançados em livro no Brasil. Dez anos depois, dois discos dedicados ao conjunto de poemas infantis de Vinícius também são lançados no país, com o mesmo nome do livro. 

A Arca de Noé tornou-se um dos livros mais populares de Vinicius de Moraes por ter criado um laço com as crianças. Todas as gerações têm nos seus poemas uma porta de entrada no mundo da literatura e da música popular brasileira. Ao mesmo tempo, no âmbito musical, foi o primeiro trabalho que apresentou a ele Toquinho, parceiro até o fim da vida. 

https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/livros/arca-de-noe

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