Ambos apareceram como grandes protagonistas dos festivais. Chico Buarque, no começo de sua carreira, era conhecido pelo seu sucesso “A banda“, vencedor, junto com Disparada (Geraldo Vandré), do Festival da Música Brasileira, realizado pela Record, em 1966. Caetano Veloso, no ano seguinte e no mesmo festival, apesar de não ser o vencedor, provocou um enorme rebuliço com “Alegria, Alegria“, que ficou em quarto lugar. O próprio Caetano, no seu livro Verdade Tropical, admite que “Alegria, Alegria” é uma espécie de antítese de “A banda“. A música causou o maior repercussão pois já era tropicalista, uma fusão do som brasileiro com a guitarra elétrica, tão combatida na década de 60 por ser uma espécie de símbolo do imperialismo americano.
A vencedora do Festival em 1967 foi Ponteio, de Edu Lobo, mas com grande destaque para a música de Gilberto Gil, Domingo no Parque, a segunda colocada, e Roda Viva, de Chico, que ficou em terceiro lugar.
Mais adiante, ambos protagonizaram vaias, no Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, em 1968.Caetano, com sua provocativa apresentação de É proibido proibir, e a famosa entrada em cena de um hippie americano que dançava de maneira não usual e falava coisas desconexas, em inglês. A vaia foi tamanha que Caetano, acompanhado pelos Mutantes, não conseguia mais cantar, até que, em determinado momento, Caetano parou de gritar e fez um famoso discurso que chegou a ser gravado em disco e chegou a ser tema de vestibular.
Chico Buarque, no mesmo festival, inscreveu uma linda música, Sabiá, em parceria com Tom Jobim, que foi vencedora, em detrimento de Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré, mais do que manifesto, uma palavra de ordem contra a ditadura.
Surgem, então, as manias de etiquetar próprias da mídia, pois Chico Buarque foi classificado como um novo Noel Rosa, um homem refinado, de esquerda, e que alguns radicais entendiam como musicalmente conservador. Lembro-me (na verdade, não me lembro, pois nasci na década de 70 e não acompanhei pessoalmente a questão), ou melhor, lembro-me de ter lido uma resposta de Tom Zé, quando questionado sobre sua opinião acerca de Chico Buarque: “a gente tem que respeitar muito o Chico Buarque, afinal, ele é o nosso avô“.
Caetano era tido, pela maioria do “pensamento universitário de esquerda”, pelo menos até ser preso pela ditadura militar, como um alienado, um vendido, um descomprometido com causas sociais. E, no seu livro Verdade Tropical, Caetano comenta como a mídia tratava a polêmica:
Uma moça simpática, entrevistando-me para a revista InTerValo (com T e o V maiúsculos indicavam ser uma publicação especializada em televisão), perguntou-me como eu via a diferença entre mim e Chico. Eu, estimulado pela oportunidade – e crendo que minha “aula” ia ser publicada -, expliquei-lhe que o que eu fazia era expor o aspecto de mercadoria do cantor de TV. Que tanto eu quanto Chico estávamos dizendo muitas coisas com nossas canções, mas que, do ponto de vista da televisão, eu era um cara de cabelo grande e Chico um rapaz bonito de olhos verdes; e que quanto mais desmascarado estivesse esse jogo, mais nossas canções e nossas pessoas estariam livres. Poucos dias depois saiu a reportagem com minha declaração sumária de que “Chico Buarque não passa de um belo rapaz de olhos verdes”.
A partir da década de 60, iniciou-se uma dicotomia, na qual fãs de Chico buscam diminuir a obra de Caetano, e vice-versa, como se o reconhecimento de um representasse a negação do reconhecimento do outro.
Apenas citar dois exemplos, tirados de alguns blogs na internet:
Quem prefere Caetano:
“Prefiro Caetano a Chico por duas razões: suas músicas são mais complexas e líricas (o Chico é bem direto sempre) e a Tropicália, movimento musical que quebrou os parâmetros da esquerda burra. Além disso, Caetano não vive do passado, está sempre em busca de novidades e é bastante antenado. Já citou de Racionais a funkeiros em seus discos e shows. Relembrou a música brega do ótimo Peninha com “Sozinho” (ao ponto de me deixar p. da vida com o tanto que a música bombou). Embora seja superintelectual, ele sabe como transitar em todas as áreas.” (http://cinthyasamsa.blogspot.com/2009/07/cartola-e-caetano.html)
Quem prefere Chico
“Aliás, ultimamente, Caetano só faz sucesso com composições dos outros: “Sozinho” do Peninha e “Você não me ensinou a te esquecer” de Fernando Mendes. Aliás, estas músicas são tudo ao contrário do novo e ainda carregadas de tintas da breguisse. Pra quem acha que Chico só faz letras com qualidade (o cronista disse que Chico é medíocre musicalmente), é bom lembrar que ele ganhou o Festival da Record com a “Banda”, de autoria só dele – coisa que Caetano nunca conseguiu, pelo menos em festivais de renome como o da Record. “Carolina” é só dele; assim como são as letras e músicas de “Quem te viu, quem te vê”; “Olê, Olá”; “Roda Viva”; “Noite dos mascarados”; “Folhetim” todas de ótima musicalidade, além de outras centenas. Daqui a cem anos – podem ter certeza – que a “Banda” e “Folhetim” serão tocadas em quaisquer FM da vida – gravadas por qualquer pop star – ao contrário de Haiti, “Tieta” e “Leãozinho” que já não tocam nem em Santo Amaro da Purificação, cidade de Caê. (http://www.dm.com.br/materias/show/t/chico_versus_caetano)
Na verdade, costuma-se associar Chico a uma refinada evolução do samba, de uma tradição que vem de Noel e da bossa nova, grande letrista, ou, como disase certa vez Tom Jobim, “depositário da cultura popular brasileira”. Quem gosta, reconhece todo o mérito, mas quem não gosta, termina por predicar Chico como musicalmente conservador, que se resume a resgatar e fazer releituras sobre gêneros musicais do passado, ou, no aspecto político, alguém que se tornou chato pelas suas canções engajadas.
Caetano Veloso, por sua vez, é identificado com a ousadia, com suas figuras de linguagens incomuns, como um reinventor e descobridor de ritmos, sendo capaz de extrair musicalidade de onde o senso comum não espera, de emprestar dignidade a letras e sons tidos como “vagabundos” (no aspecto, a repercussão da abertura do show no festival de verão de 2010, quando cantou Cole na Corda, música da banda de pagode Psirico). Mas quem não gosta, associa Caetano como um vaidoso polêmico que resvala para o brega, quando não se aborda a suposta alienação política de suas canções.
Na verdade, essa comparação, essa polêmica serve apenas e tão somente para demonstrar o quão grandes são estes dois compositores. Mas aqui, como Vinícius dissera no disco que gravara em homenagem aos dez anos de parceria com toquinho, não gosto de critérios competitivos. Eles são diferentes e admiráveis.
Gosto de Chico, as tristezas imensas de Pedaço de mim, Trocando em miúdos e Todo sentimento, parece que ele personifica o personagem quando canta… me impressiona em Futuros amantes, quando alguém faz uma música a partir de uma ideia de escafandristas (“E quem sabe, então/O Rio será/Alguma cidade submersa/ Os escafandristas virão/Explorar sua casa/Seu quarto, suas coisas/Sua alma, desvãos”), gosto muito de “Se eu fosse seu patrão”, da Ópera do malandro, e Quem te viu, quem te vê, como a crônica de um sambista que viu sua cabrocha virar madame.
Gosto também de Caetano, fico admirado com letras como Língua e O quereres, me impressiono a simplicidade absolutamente linda de Cajuína (“Existirmos, a que será que se destina”), gosto muito de Vaca Profana, e me emociono toda vez que ouço Alguém cantando.
Preferi, propositadamente, escolher cinco músicas de cada um, a partir de uma escolha afetiva, impulsiva e instantânea. Não me importa, na hora que ouço tais músicas, fazer uma análise histórico-sociológico-musical, mas sim ouvi-las, senti-las. Agora já, me lembro de outras músicas de Caetano e Chico, que me escapara nessa lista de preferidas, que é sempre incompleta, sempre mutável.
Interessante ponderação faz Priscila Gomes Correia, nos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008, em relação aos manifestsos de Chico e Caetano, nos seus primeiros discos. Caetano diz, em 1967: “a minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário quer incorporar essa saudade num projeto de futuro”. Chico, por sua vez, em 1966: “melodia e letra devem formar um só corpo (…). Por outro lado, a experiência em partes musicais (sem letra) para teatro e cinema provou-me a importância do estudo e da pesquisa musical, nunca como ostentação e afastamento do ‘popular’, mas sim como contribuição ao mesmo”
Nelson Motta, em seu livro Noites Tropicais, faz referência ao show que gravaram em 1972 no Teatro Castro Alves,
“Chico vive seu melhor momento criativo e transforma-se, contra a vontade, num herói da resistência. Mas ainda é visto e ouvido e discutido como oposto a Caetano, a quem os admiradores de Chico acusam de individualismo internacionalizado, de fazer o jogo da direita. Já os fãs radicais de Caetano consideram Chico um tradicionalista e populista, um atraso para a revolução socialista libertária. Os dois se incomodam com as divisões, que consideram injustas e estúpidas.
A melhor maneira de acabar com as polêmicas foi a mais bonita, a que eles encontraram, sob o sol de verão na Bahia: um show dos dois no Teatro Castro Alves, para ser gravado e transformado no disco Chico e Caetano -juntos e ao vivo. Um cantando músicas do outro, os dois cantando juntos. Show e disco tiveram extraordinário impacto e sucesso, o encontro foi uma das melhores notícias que o Brasil recebeu num ano de poucas boas, de escalada da luta armada e da repressão, da tortura e da intolerância. Para mim a questão do “um ou outro”, por todos os motivos, artísticos, políticos e afetivos, nunca existiu. Sempre os considerei complementares e indispensáveis. O encontro histórico teve especial repercussão entre os fãs radicais de Chico e de Caetano nas esquerdas brasileiras, nos muitos grupos e tendências em que se dividiam. Juntos e ao vivo era, além de um extraordinário encontro de dois grandes artistas muito diferentes, uma metáfora de união e de tolerância, da harmonia por contraste.”
Tolerância… parece que o bom gosto é sempre o nosso gosto, que o gosto do outro não presta. Caetano e Chico, dois grandes que passam alheios às discussões de seus fãs. Basta ver o que cada um diz do outro. Chico Buarque, no seu site: (www.chicobuarque.com.br):
“Eu gosto de tudo que o Caetano faz. Não tem o que eu gosto mais. Inclusive, porque ele continua fazendo e me surpreendo. Tenho uma relação pessoal com ele muito boa. Sempre tive. ”
“Eu sou inteiramente diferente dele. Por isso mesmo que a gente se entende bem. Essa história desse Fla-Flu que se criou… Eu até comentei com ele esses dias… é uma coisa artificial. Vai ser difícil me jogar contra ele. Apesar dos esforços que são feitos nesse sentido continuamente. Mas eu acho bobagem esperar que eu faça as músicas do Caetano ou que o Caetano faça as minhas músicas. Acho bom que ele faça as dele e que eu faça as minhas, que têm até uma origem comum, como eu disse no começo. A nossa formação é comum: a bossa-nova. Mas a cabeça dele é…. da minha. Eu me entendo com ele e acho que a minha música se entende com a dele também. “
Caetano, em duas passagens
“Às vezes penso que minha profissão tem sido perseguir Chico Buarque. Mas é uma perseguição amorosa. E tem dado tão bons resultados já faz tanto tempo, que desta vez, ao contrário do que aconteceu com “Você não entende nada” – música que nomeei “Sem açúcar” (parafraseando “Com açúcar, com afeto”) porque à época julgavam haver entre nós uma rivalidade reles -, não temi pôr o nome “Pra ninguém” na canção que, como o “Paratodos” de Chico, lista virtudes de colegas. Chorei tanto quando Chico, em sua casa, me mostrou “Paratodos”, que estava certo de nunca fazer nada para macular esse sentimento.” (release do disco “Livro”)
“O Chico é deslumbrante, ele é bom improvisador, é rápido em rima, tem um talento para poesia inacreditável” (Numa entrevista à Jô Soares).
Mas o quanto ainda vai se escrever sobre os dois….