No ano de 2004, o estilista mineiro Ronaldo Fraga resolveu fazer uma homenagem ao compositor “Tom Zé” na São Paulo Fashion Week do mesmo ano. O seu desfile seria intitulado “São Tom Zé”, numa expressa referência à canção “São, São Paulo Meu Amor”, vencedora do Festival da canção da Record em 1968.
Considerado pelo estilista como “genuíno tropicalista”, e que confere “estatuto de arte e vanguarda à cultura popular”, Ronaldo Fraga desejava fazer uma homenagem a Tom Zé, só que se esqueceu de combinar com ele, que, ao saber da homenagem, pediu R$ 30 mil pela utilização de sua obra no desfile.
O estilista, contrariado, disse à Folha de São Paulo: ‘Não entendi, eu estava fazendo uma homenagem. Fiquei muito triste, mas respeitei. Não adiantaria eu discutir que arte é arte e que, uma vez que ele fez uma música, não é mais dono dela. Ele é gênio, pode fazer o que quiser.’
E isso coloca em voga a questão (recentemente bem abordada, sobre o ponto de vista jurídico, pelo também professor e amigo Rodrigo Moraes no seu blog), sobre a questão da propriedade da arte, da ideia, da inspiração.
Por mais que se discuta se a arte é criação, recriação, transformação, compilação, é certo que ela representa algo valioso e caro para o artista. E isso tem um preço, que será pago se o público entender que isso tem valor. Até porque, ao contrário do que muitos pensam, não é fácil sobreviver de ideias…
E, nessa linha, Tom Zé divulgou um texto na Folha de São Paulo, como resposta ao episódio, intitulado “Isso que está acontecendo me deixa muito humilhado”. No texto, após elogiar o trabalho do estilista Ronaldo Fraga, Tom Zé desabafa:
Pela lei brasileira, um trabalho musical passa a ser considerado de domínio público 150 anos depois da morte do autor. É verdade que fui enterrado vivo em 1970, na divisão do espólio do tropicalismo. Mas, mesmo de acordo com essa contagem, só tenho 34 anos de morto. Então minha música ainda não é de domínio público.
Cacilda Becker que me ajude: não posso dar de graça a única coisa que tenho para vender. Senti muita humilhação com esse episódio. Tenho 67 anos, e o assunto da sobrevivência é tema de pensamento de grande parte dos meus dias, pois até hoje não descobri ainda outro meio de ganhar a vida, de sustentar minha família, de ter dignidade e respeito próprio, a não ser vendendo o que faço
Ronaldo Fraga alega que está fazendo divulgação de minha obra. Divulgação, é claro, é necessária em qualquer ramo. Ora, várias vezes comprei na loja de Ronaldo Fraga e sempre paguei o que comprei. Apresentei-me em programas de Serginho Groismann e de Ana Maria Braga, por exemplo, usando roupas dele, nem por isso me considerando divulgador visual da marca. Jamais me passou pela cabeça pedir abatimento, quando da compra, porque estaria fazendo divulgação. Quanto mais, alegando que eu estava me convertendo em passivo modelo da loja, argumentar que ele deveria me dar as roupas de graça.
Isso que está acontecendo com a minha música me deixa realmente muito humilhado. Não sou uma vedete, mas imagine se Ana Paula Arósio, que é naturalmente muitíssimo divulgada pela Embratel, não recebesse um honrado pagamento pelo seu trabalho.
Pedi R$ 30 mil, mas, quando João Marcello Bôscoli, presidente da Trama, minha gravadora, me chamou ao telefone, compreendi que, do ponto de vista de artista da gravadora, eu deveria levar em consideração o problema da divulgação. Tanto que autorizei João a negociar com Ronaldo Fraga e aceitar um preço a que chegassem, por acordo.
Para estudantes, cineastas, dramaturgos, encenadores, profissionais iniciantes, concedo uma média superior a dez autorizações por mês, abrindo mão de quaisquer direitos autorais, quando eles me consultam para inserir minhas músicas em seus trabalhos. Em tais casos, estou dialogando com a nova geração, ainda desprovida de recursos, e concedendo-lhe, na minha medida, o que considero meu dever, um mínimo de possibilidades.”
Todos os dias diversos blogs fazem divulgações de músicas, numa multiplicação virtual do efeito boca a boca. Mas ainda não temos uma cultura de valorização da obra intelectual. E deve ter doído ainda mais a Tom Zé a ciência de que, se ele estivesse em plena evidência, ninguém discutiria o pagamento de direitos autorais. O certo é que ele é dono, e somente ele pode distinguir o que é homenagem e o que é enriquecimento ilícito da sua obra.
P.S. 1. Na verdade, os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. (Lei 9.610/98, artigo 41)
P.S. 2. O desfile não se chamou ‘São Tom Zé’, mas ‘São Zé’. As músicas da trilha não foram do bardo tropicalista, mas de Hermeto Pascoal e Cordel do Fogo Encantado.
P.S. 3. Acho Tom Zé Genial
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u45405.shtml; http://www.rodrigomoraes.adv.br/artigos.php
sexta 23 dezembro 2011 19:39 , em Pol?micas