O Mestre-sala dos Mares (João Bosco/Aldir Blanc). Homenagem ao Almirante Negro, João Cândido

Algumas músicas se tornam mais interessantes quando se descobre a história por trás da canção. As musas, as inspirações, as circunstâncias em que uma música surgiu podem torná-la mais bonita. É o caso, sem sombra de dúvida, da canção “O mestre-sala dos mares“, de João Bosco e Aldir Blanc, em 1975, em homenagem ao marinheiro João Cândido, conhecido como “O Almirante Negro“, que liderou a “Revolta da Chibata”, em 1910. 

Para quem não sabe, a Revolta da Chibata foi um movimento idealizado por Francisco Dias Martins, o “Mão Negra” e os cabos Gregório e Avelino, e depois liderado pelo cabo da Marinha João Cândido, o “Almirante Negro”,  semi-analfabeto, que se insurgia contra os desmandos na marinha: o descontentamento com os baixos soldos, a alimentação de má qualidade e, principalmente, os humilhantes castigos corporais (chibatadas), que tinham sido reativados pela Marinha como forma de manter a disciplina a bordo.Por isso a revolta, iniciada em novembro de 1910, ficou conhecida como Revolta da Chibata.

Os marinheiros assumiram o comando de navios, ameaçando bombardear o Rio de Janeiro, inclusive o Palácio do Governo, caso os castigos corporais não fossem suprimidos. Em Princípio, o governo de Hermes da Fonseca cedeu. Foram aprovadas  medidas que acabam com as chibatadas, bem como  um projeto que anistia os amotinados. 

Mas a anistia não durou dois dias. Em 28 de novembro, os marinheiros foram surpreendidos pela publicação do decreto número 8400, que autorizava demissões, por exclusão, dos praças do Corpo de Marinheiros Nacionais “cuja permanência se torne inconveniente à disciplina“. O Governo traiu os revoltosos, que foram presos, perseguidos, e encaminhado para uma prisão subterrânea na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. Quase todos morreram sufocados, pois a cela era subterrânea, sem ventilação e estava cheia de cal. Apenas João Cândido sobreviveu, juntamente com o soldano Naval João Avelino. João Cândido foi perseguido, considerado louco e morreu aos 89 anos, em 1969, quase no anonimato, como vendedor de peixes.

João Cândido

No auge da ditadura militar, João Bosco e Aldir Blanc fizeram uma música em homenagem ao “Almirante Negro”. Numa entrevista, Aldir Blanc afirmou:  

“Tivemos diversos problemas com a censura. Ouvimos ameaças veladas de que a Marinha não toleraria loas e um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais, etc. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não mutilar o que considerávamos as idéias principais da letra. Minha última ida ao Departamento de Censura, então funcionando no Palácio do Catete, me marcou profundamente. Um sujeito, bancando o durão, (…) mãos na cintura, eu sentado numa cadeira e ele de pé, com a coronha da arma no coldre há uns três centímetros do meu nariz. Aí, um outro, bancando o “bonzinho”, disse mais ou menos o seguinte:

 – Vocês não então entendendo… Estão trocando as palavras como revolta, sangue, etc. e não é aí que a coisa tá pegando…

– Eu, claro, perguntei educadamente se ele poderia me esclarecer melhor. E, como se tivesse levado um “telefone” nos tímpanos, ouvi, estarrecido a resposta, em voz mais baixa, gutural, cheia de mistério, como quem dá uma dica perigosa:

– O problema é essa história de negro, negro, negro…”

Decidimos dar uma espécie de saculejo surrealista na letra para confundir, metemos baleias, polacas, regatas e trocamos o título para o poético e resplandecente “O Mestre-Sala dos Mares”, saindo da insistência dos títulos com Almirante Negro, Navegante Negro, etc. O artifício funcionou bem e a música fez um grande sucesso nas vozes de Elis Regina e João Bosco. Tem até hoje dezenas de regravações e foi tema do enredo “Um herói, uma canção, um enredo – Noite do Navegante Negro”, da Escola de Samba União da Ilha, em 1985.

Noutra ocasião, Aldir Blanc disse:

O João [Bosco] no início da carreira era da [gravadora] RCA. Havia um funcionário lá, muito malandro, que levava de presente dezenas de LPs para aqueles caras da censura. Um dia, ele encosta na gente e diz assim: “Eles estão pedindo a tua ida lá pra falar sobre ‘Almirante Negro'”.

Aí eu fui ao Palácio do Catete, para onde tinha se mudado a censura, procurei o setor.

Vi uma coisa cômica. Logo na entrada, tinha três escrivaninhas iguais, com três sujeitos já bem idosos, de cabelo branco. Aí eu sentei na primeira escrivaninha, onde mandaram eu sentar, o cara me fez algumas perguntas e disse: “Passa para a segunda escrivaninha”.

O cara me fez exatamente as mesmas perguntas e disse: “Passa para a terceira escrivaninha”.

Outra vez a mesma merda, e o cara falou “pode entrar”. Ou seja, aquilo era um tremendo cabide para policial aposentado ou qualquer coisa assim. Eu entro -aí é que eu acho um negócio revoltante-, vem um cara de paletó e gravata, com o paletó aberto com o coldre aparecendo, andando de um lado para o outro. A coronha do revólver só faltava passar no meu nariz.

João Bosco e Aldir Blanc

O cara de repente diz para mim assim: “Mas, então… Vocês estão errando o foco. Vocês estão mudando a letra, insistindo, insistindo e o problema é ó…”. E esfregava o dedo na pele do braço. Eu não entendi. “Toda hora esse troço na letra aí, o negro isso, o negro aquilo.”

Isso me deu um mal-estar tremendo. E eu fui salvo por um escândalo. Um cara na sala ao lado começa a gritar que tinham que matar o Ney Matogrosso. Porque ele tinha entrado em casa e encontrado um neto dançando com uns panos imitando o Ney Matogrosso.

Eu nunca consegui saber se aquilo era verdade ou se era um processo de intimidação para sobrar para mim, porque era meio teatral demais, meio armado demais.

Aí o cara volta, fica parado assim, abre o paletó, coloca a coronha quase dentro da minha narina e diz: “Acho que deu para entender, né, cara? Esse negócio do negro tá pegando!”. Aí eu saio de lá zonzo, tomo uma cerveja a um quilômetro dali, falo com o João sobre esse troço e a gente transforma em “O Mestre-Sala dos Mares”.​

A música, para ser aprovada pela censura, sofreu várias modificações, que podem ser vistas na tabela abaixo:

Fonte: http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/revoltachibata.html; http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/canhoes-chibata-433714.shtml

https://www.folhape.com.br/diversao/diversao/musica/2020/06/01/NWS,142441,71,581,DIVERSAO,2330-ALDIR-BLANC-ENTREVISTA-COMPOSITOR-LEMBRA-COMO-VERTEU-HISTORIAS-REAIS-CANCOES.aspx

quinta 15 setembro 2011 06:21 , em MPB