Sempre achamos que “nossa” época é melhor do que a época dos outros. Nossa infância foi mais infância, nossa juventude era mais excitante, nossas experiências, mais enriquecedoras, enfim, que vivíamos num mundo melhor.
Carnaval no Campo Grande
Talvez seja uma visão nostálgica, na qual nós nos esquecíamos das dificuldades e das coisas desagradáveis que aconteciam. Isso vale para tudo, inclusive para o carnaval. Aí me deparei com uma postagem de Fabio Gagliano, de 2012, com um certo saudosismo do carnaval, cuja postagem vem a seguir. Ele relata com saudosismo um carnaval que não volta atrás. E elege como símbolo do carnaval a mamãe-sacode. O que tinha esse carnaval que acabou no século passado?
1) O bloco era mais importante que o artista. Cada pessoa era associado de um bloco, o “seu” bloco de carnaval. Cada bloco tinha sua característica, seu público.
2) A vestimenta era mortalha (que durava os 3 dias), apenas em meados da década de 90 vieram o abadá (com o Eva) e com 1 abadá por dia (Com o cheiro);
3) O kit dos blocos incluía mortalha, boné, mamãe-sacode, faixa, adesivo para colocar no carro, e às vezes uma munhequeira para enxugar o suor (há quem usasse para outros fins);
4) No começo do verão todo mundo já conhecia a música dos artistas de seu bloco;
5) Havia a maior concorrência pelo lugar na fila na avenida; o circuito Barra-Ondina era chamado de circuito alternativo. Quase não passavam trios por lá.
6) Camarote? No máximo as arquibancadas no Campo Grande e a pipoca vendo os blocos passarem na Casa D’Itália.
7) Na terça-feira, ou os trios desciam para o Farol da Barra, ou iam para o encontro de Trios na Praça Castro Alves;
8) O carnaval começava na quarta-feira com a Lavagem do Porto da Barra.
9) Ainda havia bailes de carnaval nos clubes. O mais famoso era o Branco e Preto, que ocorria no Baiano de Tênis, mas também tinham Bailes na Associação Atlética e no Clube Espanhol;
10) O auge do desfile é quando os blocos passavam pelo Campo Grande, os puxadores de trio pediam para os foliões levantarem a mamãe-sacode.
Obviamente, quem viveu aquele carnaval dificilmente achará divertido um carnaval de camarote. O carnaval de hoje é muito diferente daquele que se praticava há 15, 20 anos.
A questão é: será que era efetivamente melhor? Aquele carnaval não voltará mais, e se esse carnaval de hoje está longe do ideal, é certo de que ele jamais voltará a ser o que já foi um dia. Cada carnaval reflete um pouco de uma época e de uma geração, E não há indícios de que o carnaval de amanhã vai ser m,ais parecido com o carnaval de ontem. Que era espetacular, inesquecível, mas era o carnaval de ontem.
O importante é reencontrar nas pessoas o brilho e a alegria de fazer parte de uma festa única. E que seja possível encontrar muitos carnavais em um só. O de ontem, hoje e amanhã. E vejo todo mundo nas ruas, por muito mais do que uma semana.
Vejo trios e fanfarras. Vejo fantasias nas ruas. Vejo carnavais no centro histórico, tem de tudo, mas ainda estão no carnaval o samba, os tambores e a guitarra elétrica, tripé que deu base àquilo que chamamos de axé.
O modelo de blocos com milhares de pessoas vai se esgotando, mas os pequenos bloquinhos que vão pra rua ainda estão lá. Os trios pipoca ainda estão lá, como, há 40 anos, eram Armandinho, Dodô & Osmar (com Moraes Moreira) e o Trio Tapajós. Dá até vontade de sair na rua, fantasiado de folião anos 90 com mamãe-sacode.
Parece que o carnaval da Bahia continua sendo uma metamorfose muito maior do que em qualquer outro lugar. Se um sujeito fosse congelado há 30 anos e acordasse hoje, no século XXI, e visse o carnaval do Rio ou de Olinda, ainda reconheceria aquele espaço de 30 anos. Na Bahia é um pouco diferente. Muita coisa muda. Há espaço para a tradição? Claro! Mas na Bahia nenhuma tradição carnavalesca sobrevive se não houver um sentido, e este sentido está na existência de pessoas pulando e cantando na rua. E que viva o samba, os tambores e a guitarra elétrica…
Segue abaixo a crônica que me referi.
Roubaram meu Mamãe-Sacode
(SALVADOR – Eu quero muito mais que o som da marcha lenta) – Chegou fevereiro. Chegou o Carnaval. E o Carnaval, na Bahia, me leva à infância. Me leva a imagens, sons e sentidos que marcam a minha essência.
Nasci e cresci na Rua da Mouraria, bem próximo à sede do bloco “Os Internacionais”. Acompanhava a elaboração dos figurinos, a escolha da fantasia. Via de perto o nascimento de cada peça, com as costureiras que, incansavelmente, trabalhavam lá, onde morávamos, no seu andar térreo. Estive ao lado da concentração onde o maestro Reginaldo “Bigodão” comandava uma banda de músicos de “não-sei-quantos” homens para sair da Mouraria e conduzir Os Internacionais rumo ao seu desfile. Instrumentos de sopro em cima do caminhão. Instrumentos de percussão ao chão.
Cresci utilizando cada uma das fantasias do bloco, e me apaixonei com a paixão de meu pai, louco por Carnaval mas, principalmente, para “ver o bloco na rua”. Chorei com a sua emoção que derramava lágrimas ao avistar, de longe, o bloco despontando na Avenida com seus 1.500 integrantes e suas alegorias de mão abrindo alas para um espetáculo belíssimo e inesquecível. Angustiava-me com a sua eterna angústia que, ao perceber que o seu bloco estava perfeito, iniciava a torcida para que tudo logo acabasse, sem problemas, sem percalços, sem confusão. O ato de colocar o bloco na rua era a sua paixão, o seu ideal. A percepção, à quarta-feira de cinzas, de não ter havido contratempos, coroava o seu carnaval e alavancava a preparação do ano seguinte.
Em paralelo, via de perto o Cheiro de Amor exalando sua fragrância na Avenida e usando um macacão por 3 dias consecutivos. Imaginem como se encontrava o mesmo no último dia de carnaval, posto que era impossível lavar e secar tal tipo de tecido de um dia para o outro. Vi o Camaleão de Luís Caldas, o Crocodilo do Asa de Águia, o Eva de Ricardo Chaves. Vi as mortalhas invadirem multicoloridas as Avenidas do Centro de Salvador. Vi, ainda os blocos subirem até a Sé, pararem para um leve descanso e descerem para a Carlos Gomes via Praça Castro Alves quando, não raro, encontravam outro bloco em sentido inverso. Me desesperei quando o trio dos Comanches perdeu seus freios na descida da Sé matando inúmeros foliões e gerando o pânico na praça do poeta.
Enquanto isso, saía no Domingo e na Terça fantasiado de romano, marajá, gondoleiro, pierrot, chinês, imperador inca, príncipe, pirata, dentre outros. Isso nos Internacionais, onde os homens estavam dentro das cordas e as mulheres compunham o séquito no lado de fora.
No Sábado e na Segunda, a coisa mudava de figura. A família inteira estava reunida no “Eu e Ela”, utilizando-se de mortalhas e, assim como em “Os Internacionais”, a condução era realizada pela grande banda Chiclete com Banana. Os foliões dançavam, brincavam, curtiam, namoravam, bebiam. Eu estava vendo o Carnaval sendo feito e utilizado pelas mesmas pessoas. O organizador era folião. O ambulante, idem. O cantor, também. O radialista, igualmente. Bem como os artistas, intelectuais, políticos e todos os segmentos sociais.
Apesar de muito pequeno, vivi tudo muito de perto. Minhas primeiras imagens da infância me remetem à rotina matutina da organização carnavalesca, com a chegada do trio, a preparação das cordas, o teste do som, a dinâmica dos caminhões com os “engradados de cerveja” abastecendo os bares e ambulantes na área do quartel dos Aflitos, o mamãe-sacode empunhado com orgulho…
Ah…. os Mamães-Sacode… Esses eram, talvez, as maiores referências do Carnaval da Bahia. Compunham elementos de estética visual indescritíveis que, ao serem atiçados conjuntamente ao ar davam, ao espectador, uma visão sublime, que demonstrava indelevelmente o fracasso ou o sucesso do artista de trio, do puxador de bloco.
O bloco Tiete Vips, popularíssimo, através do saudoso Val Valle e da Banda Tiete Vips nos brindavam com um espetáculo deslumbrante ao adentrar a área do palanque do Campo Grande. Quem não lembra do famoso grito de guerra: “Tiete Vips chegoooooou, ê aê aô”.
Vi o Frenesi de Adhemar e Banda Furta Cor. Vi, ainda, a deslumbrante Banda Mel com o seu Prefixo de Verão e a sua Baianidade Nagô. Acompanhei a Reflexus com o seu Madagascar Olodum e o Canto para o Senegal.
Acompanhei os “gênios” do carnaval baiano que, sob a aura da modernidade, extirparam a nossa mais pura cultura. Os magos criadores do abadá e carrascos das fantasias e mortalhas. Não há mais alegorias de mão. Não há mais a alegria do mamãe-sacode eclodindo no ar das ruas centrais de Salvador. Criaram o circuito alternativo na Barra e desterraram a Avenida. A partir do momento em que ficaram de um lado os criadores e, do outro, os foliões, o Carnaval da Bahia passou a ser um espetáculo midiático, de compra e venda de pacotes publicitários, perdendo toda a sua verdadeira essência. Os camarotes são excrescências deste processo, onde se ouve 90% de música eletrônica e, muito raramente, surge alguém que recorda estar no Carnaval da Bahia e vai dar uma espiadinha no trio que está a passar.
Há alguns anos, acreditem, fiz a bobagem de participar de um bloco puxado pelo tal do Tuca Fernandes, o bloco Eu Vou. A cena que presenciei era dantesca. Inúmeros adolescentes não estavam nem um pouco interessados em dançar, pular, brincar. Era uma sequência tão bizarra quanto assustadora. Parecia um filme de zumbis, ou mesmo o seriado “The Walking Dead”. Adolescentes totalmente dopados, olhos vermelhos, bocas abertas, babando e procurando outras bocas para consumar um ato que, em nada, se lembra ao clássico beijo de carnaval. Nem Kubrick poderia descrever um cenário tão aterrador.
Arlequim morreu. Colombina se prostituiu. Pierrô abriu uma seita fanática religiosa. O folião não quer mais folia. O cantor não quer saber do folião, e sim da mídia. Ninguém agita mais ninguém para que o seu bloco seja o mais animado da Avenida. O cantor só faz cena para aparecer nas telinhas da Band Folia ou atrasa a apresentação para entrar ao vivo no Jornal Nacional.
Queimaram a fantasia. Extirparam a magia. Roubaram, enfim, o meu mamãe-sacode.
http://cronicativa.blogspot.com/2012/02/roubaram-meu-mamae-sacode.html