Existem músicas que são inspiradas em outras canções. Às vezes uma frase, uma sequência de acordes, uma ideia presente numa canção serve como centelha para o surgimento de uma nova música. E este foi o mote que fez surgir a canção Mentiras, o primeiro grande sucesso de Adriana Calcanhotto, gravada no seu segundo álbum Senhas (1992). A canção se tornou um sucesso, impulsionado pela sua inclusão na novela global Renascer (1993)
E a inspiração da canção, como Adriana recentemente disse no seu canal no Youtube, se inicia com uma canção de Cazuza: “O Nosso Amor a Gente Inventa (Uma Estória Romântica)”, gravada em 1987, no disco “Só se for a dois”.
A canção de Cazuza, contada a partir de uma desilusão amorosa, já no final, relata uma relação que, ao acabar, “ficou tudo fora do lugar, café sem açúcar, dança sem par”.
Este ficar “tudo fora do lugar” inspirou a primeira frase da canção, em que “nada ficou no lugar”
Em seguida, são listadas alguns tipos de vinganças amorosas, de desforras que se fazem como resposta ou revanche em decorrência de mágoas de amor. E também como forma de chamar a atenção do ser amado. E a canção lista algumas destas represálias:
Eu quero quebrar essas xícaras
Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família
Eu vou escrever no seu muro
E violentar o seu gosto
Eu quero roubar no seu jogo
Eu já arranhei os seus discos
E, na segunda estrofe, continua:
Eu quero entregar suas mentiras
Eu vou invadir sua aula
Queria falar sua língua
Eu vou publicar seus segredos
Eu vou mergulhar sua guia
Eu vou derramar nos seus planos
O resto da minha alegria
E todo o resultado desta desilusão tem um sentido, uma lógica. As “maldades” são o amor pelo avesso (numa referência à canção “Artrás da Porta”, de Chico Buarque). Enfim, uma forma de, com as vinganças, esboçar uma reação da pessoa amada.
No Video, Adriana conta a história:
Era um verão muito chuvoso no Rio de Janeiro e eu fiquei sozinha no apartamento…Eu estava ouvindo muito Cazuza, ele tinha morrido e eu continuava ouvindo, como uma voz, como um poeta que foi embora, que não vai ter nada parecido… E eu lembro de estar ouvindo uma música que dizia: “Mas ficou tudo fora do lugar /café sem açúcar”; a melodia não é essa mais a ideia é essa: ficou tudo fora do lugar e eu estava fazendo as canções, fiquei com isso na cabeça, provavelmente fui a cozinha fazer um café voltei, peguei o violão e ai saiu um “Nada ficou no lugar” que é “ficou tudo fora do lugar”.
“Nada ficou no lugar/ eu quero quebrar essas xícaras/ eu vou enganar o diabo/ eu quero acordar sua família”.
Começou assim, a partir dessa coisa do Cazuza “ficou tudo fora do lugar”, me veio uma imagem dessas maldades amorosas que se faz assim… se faz, não, que algumas pessoas fazem quando estão com raiva, quando estão com ciúme.
E eu lembrei da história de uma amiga minha que ela era bem mais velha do que eu, casada com filhos e tudo, e descobriu em um determinado momento que o marido tinha uma amante. Então ela teve um ataque em casa e quebrou tudo o que tinha na casa, menos as coisas que ela tinha dado para ele. A memória dela eram quadros, assim quebrados no chão, os vidros espatifados dos quadros que ela quebrou; os quadros que ela deu ficaram na parede, mas os que ela não deu, os que ela não sabia a origem que ele já tinha qualquer coisa assim….
Então a imagem – ela falava – era um tapete assim de vidro, cacos de vidro e terra das plantas, terra arrasada realmente ficou o apartamento – isso ela contando, eu não vi. Mas aí eu me dei conta dessa coisa passional, dessas reações assim e elaborei uma lista de maldades de vinganças: “eu vou publicar seus segredos, chegando ao ponto de “eu já arranhei os seus discos” e tudo isso eu fui fazendo a lista de maldades, inventando, pensando nas maldades, pensando no Cazuza, pensando na Tânia com o apartamento destruído e chegou um determinado momento: com uma lista maravilhosa de maldades eu pensei pô mas e ai?
Não pode ficar implícito o motivo dessas maldades né? Uma pessoa não é não está fazendo maldades porque quer, porque é da natureza dela. A culpa não é de quem destrói apartamento. Era isso que a canção queria. Então o jeito de dizer isso foi dizer “Que é para ver se você volta/ que é pra ver se você vem/ que é pra ver se você olha pra mim.
E eu fiquei lembrando assim de várias canções que tem esste tipo de apelo, lembrei do Roberto Carlos dizendo “Só me falta ficar nu para chamar sua atenção” (Pra Chamar Sua atenção -1976)
Enfim, a música narra o desespero e o anúncio de vingança de uma pessoa magoada, e o caráter explícito de que é uma forma de chamar atenção.