Eu sempre tive uma relação afetiva com a música “o seu amor”, cantada em 1976 pelos Doces Bárbaros (grupo formado por Caetano, Gil, Gal e Bethânia, esta última idealizadora do grupo como forma de comemorar dez anos de carreiras do quarteto baiano).
A música consegue passar uma mensagem política e uma mensagem de amor ao mesmo tempo.
Centrada na frase “O seu amor, ame-o e deixe-o”, é uma evidente mensagem dirigida ao famigerado bordão “Brasil; ame-o ou deixe-o” do governo Médici na década de 70, consegue dizer que havia quem amava o Brasil, e ainda assim o deixava.
Este bordão, Ame-o ou deixe-o, nada mais é do que uma cópia do bordão “América: love it or leave it”, de Walter Winchell, um apoiador do Macartismo e a caça aos comunistas nos Estados Unidos.
A letra subverte a lógica da frase:
- De uma disjunção exclusiva “Ame-o ou deixe-o” em que a ideia é de quem ama, fica, quem não ama, deixa,
- Para uma conjunção, “Ame-o e deixe-o”, quando é possível deixar, mesmo amando (detalhe: Gil e Caetano foram exilados em 1969).
E, assim, além de ser possível amar e deixar, o canto passa a homenagear o amor não egoísta, o amor que preza a liberdade do ser amado, diferentemente de muitos amores possessivos e egoístas, que, sob o pretexto da intensidade de sofrimento, querem o ser amado só para si e transformam a relação numa prisão, em que a obrigação supera o afeto.
Sempre gostei do canto do amor verdadeiro, que, mesmo sendo arrebatador, permite que o ser amado ame como liberdade, e não como dever. É também a mensagem da música de Gil.
No livro “Todas as letras”, de Gilberto Gil e organizado por Carlos Rennó (Cia das letras, 1996), há o comentário sobre a canção:
” A intenção foi brincar com o slogan da ditadura, ‘Ame-o ou deixe-o’, promovendo, através da substituição de uma conjunção, um corte profundo de ruptura no significado reducionista, possessivista e parcial do aforismo oficial, símbolo do fechamento e da exclusão maniqueísta, para criar um outro, com outra moral, a do amor – e, portanto, absolutamente generoso, democrático e libertário. A concepção de ‘amor livre’ é também reiterada, reintroduzida como objeto de respeito e admiração à liberdade no amor, e ampliada até para um sentido mais cristão, de amor irrestrito.
Minimalista já na escolha de uma máxima tão concisa e conclusa, a letra também o é na construção – na maneira como suas significações se sobrepõem como degraus de uma escada tosca, de pedreiro, somando-se com certo desejo geométrico e uma ambição de organização aritmética de fatores numa conta de adição feita com números muito simples”
A música depois foi gravada por Gil, no seu disco Gil Luminoso, e por Caetano e seus filhos, no disco Ofertório
O seu amor
Ame-o e deixe-o livre para amar
Livre para amar
Livre para amar
O seu amor
Ame-o e deixe-o ir aonde quiser
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz
O seu amor
Ame-o e deixe-o ser o que ele é
Ser o que ele é
Todas as letras, Cia das letras, 1996
sábado 07 agosto 2010 13:50 , em MPB