“Contam que toda tristeza que vem da Bahia, nasceu de uns olhos morenos molhados de mar…”
O trecho acima citado vem da música “Conto de Areia”, composição de Romildo Bastos e Toninho Nascimento que se tornou um fenomenal sucesso na voz de Clara Nunes, em 1974. É um belíssimo samba de roda tipicamente baiano (embora Romildo seja pernambucano, e Toninho, paraense), que remete às velhas canções de Caymmi, da história do pescador que foi ao mar pescar e que nunca volta (me veio a referência à velha frase de Caymmi: “A jangada voltou só…“)
A música tem uma letra longa, cuja inspiração Toninho revelou a Vagner Fernandes, no livro Clara Nunes: Guerreira da Utopia (Ediouro, 2007):
“Eu a compus a partir de uma conversa com um amigo-vizinho baiano, que contava casos que havia vivido na Bahia. Um deles era a história da mulher cujo marido foi pescar e nunca mais voltou. Ela enlouqueceu e passou a andar pelas areias da praia dia e noite em busca do amado. me inspirei nessa história e fiz a letra”
Acho a música impressionante, como também é a letra que impulsionou um fenômeno de vendas. Carro chefe do álbum “Alvorecer”, a música ajudou Clara Nunes a vender mais de 350 mil cópias do disco, em 1974, um absoluto recorde para a época, quando se tinha a cultura de que “mulher não vende disco.
O samba é contado do fim para o começo… “è água no mar, é maré cheia“, quando a morena (não se sabe se é lenda ou se é verdade) carrega consigo e nos seus olhos morenos moilhados de mar toda a tristeza da Bahia. Ela se enfeita na praia, na noite, com lua… enche seu peito de tristeza e promessas… e dança…
Faz promessas porque seu amor se fez de canoeiro, e o vento arrastou o veleiro, de modo que Iemanjá levou consigo seu amor (um pouco a partir da história da lenda das sereias)…
No fim, o ser amado (o canoeiro) se despede da moça, diz para ela não esperá-lo porque ele já vai embora, voltar para o reino de Iemanjá, sua senhora, e a recomenda a não olhar mais para os veleiros, porque ele não vai voltar. Afinal, “foi beira mar quem chamou”
Toninho também conta que a letra original era “É lua no mar, é maré cheia”. Quando Romildo foi mostrar a melodia, cantava “é água no mar, é maré cheia”. Todas as vezes que se encontravam, Romildo cantava “É água no mar”, em vez de “É lua no mar”. Toninho explicava para Romildo a relação da lua com o mar, da gravidade, que a lua influenciava nas marés… mas Romildo sempre cantava “é água no mar”. Toninho dizia que o que tem no mar é água, mas, de tanto ver Romildo “errar”, acabou ficando o verso “É água no mar”…
Em entrevista à TVT, Toninho ouviu a história de um vizinho de sua sogra, que tocava violão, que contou uma história da Bahia, e que tinha uma louca, que andava pelas praias de Amaralina, catando conchas, e a molecada namorava aquela louca. E o baiano foi namorar esta mulher louca, que morava num casebre sobre uma duna. E o baiano se espantou que no casebre da louca não havia móveis, nem cama, nem cadeira, apenas montinhos de conchas que ela catava pelas praias, que ela depositava no piso do casebre. Conta a história que a louca, quanto mais jovem, vivia com um pescador, o qual foi pro mar e nunca mais voltou. E por conta disso, a louca passou a catar conchas na praia
Toninho ficou emocionado com a história. Ficou com a história na cabeça, e transformou em versos, e deu para Romildo musicar.
É uma música triste, cantada numa versão definitiva por Clara Nunes.
Uma curiosidade é que Adelzon Alves, companheiro e produtor de Clara, na época, parecia ter implicado com a música. Toninho, no mesmo depoimento a Wagner Fernandes, disse que Romildo chegou na cara-de-pau e mostrou a canção a Clara, mas Adelzon teria implicado com partes da letra. Uma delas, a letra original dizia “Era um peito só, cheio de promessa e ebó“, que acabou sendo substituída por “Era um peito só, cheio de promessa era só”. Outra parte, era o verso “E leva pro meio das águas brancas de Iemanjá” , quando Adelzon teria implicado com a expressão “brancas”, que acabou excluída da letra.
Romildo, no entanto, em entrevista no youtube, conta que mostrou a música para Adelzon, que ficou empolgado com a canção, e pediu para Romildo mostrar outras músicas…
A letra da canção:
É água no mar, é maré cheia ô
mareia ô, mareia
É água no mar…
Contam que toda tristeza
Que tem na Bahia
Nasceu de uns olhos morenos
Molhados de mar.
Não sei se é conto de areia
Ou se é fantasia
Que a luz da candeia alumia
Pra gente contar.
Um dia morena enfeitada
De rosas e rendas
Abriu seu sorriso moça
E pediu pra dançar.
A noite emprestou as estrelas
Bordadas de prata
E as águas de Amaralina
Eram gotas de luar.
Era um peito só
Cheio de promessa era só
Era um peito só cheio de promessa (2x)
Quem foi que mandou
O seu amor
Se fazer de canoeiro
O vento que rola das palmas
Arrasta o veleiro
E leva pro meio das águas
de Iemanjá
E o mestre valente vagueia
Olhando pra areia sem poder chegar
Adeus, amor
Adeus, meu amor
Não me espera
Porque eu já vou me embora
Pro reino que esconde os tesouros
De minha senhora
Desfia colares de conchas
Pra vida passar
E deixa de olhar pros veleiros
Adeus meu amor eu não vou mais voltar
Foi beira mar, foi beira mar que chamou
Foi beira mar ê, foi beira (2x)
sexta 22 julho 2011 04:21 , em Samba
https://oglobo.globo.com/rio/toninho-nascimento-de-belem-do-para-apoteose-na-sapucai-11618096