Em épocas de comunicação quase instantânea, você imaginaria uma correspondência feita por intermédio de um isco? Através de uma canção?
Foi justamente esse o mote que inspirou Chico Buarque a escrever uma carta-canção para seu amigo Augusto Boal, que estava exilado em Portugal.
Augusto Boal
O Brasil vivia uma ditadura (1976), mas começavam a ganhar força as vozes que clamavam pela volta da democracia. Só que Augusto Boal estava exilado em Portugal (também passara antes por Argentina, Peru, e depois iria a Paris), e reclamava da falta de notícias do Brasil.
Assim, de forma bem-humorada, Chico conta a rotina do Brasil, em que se joga futebol, tem samba, choro e rock’n roll, mas que a coisa no Brasil está preta, restando então, as alternativas de fumar, de beber e de se amar pra esquecer um pouquinho as coisas tristes ue aconteciam por aqui.
Como não dá pra fazer uma visita, a tarifa do telefone “não tem graça” e o correio “anda arisco”, Chico acaba fazendo uma canção histórica, narrada assim no livro organizado por Wagner Homem – História das canções”. A Cecília referida na obra é a esposa de Augusto, Cecília Boal… A Marieta, é Marieta Severo, então casad com Chico. Augusto Boal faleceu em 2009.

O teatrólogo Augusto Boal, exilado em Portugal, vivia se queixando de que os amigos não mandavam notícias do Brasil. Na ocasião, Chico estava tentando fazer a letra para uma música romântica, mas não conseguia avançar.
Pediu a Francis Hime um chorinho — e, utilizando como refrão “a coisa aqui tá preta”, atualizou a correspondência e informou não só o amigo, mas todos os brasileiros, sobre a situação do país.
Em depoimento para o livro Chico Buarque do Brasil, organizado por Rinaldo de Fernandes, Boal descreve a emoção de ouvir a homenagem pela primeira vez:
Foi assim, tranquilo e a gosto, que me lembrei do dia em que estávamos almoçando bacalhau à Braz — com Paulo Freire, sua esposa e sua equipe, Darcy Ribeiro e outros amigos exilados — na casa onde morávamos Cecília, eu e nossos filhos, em Lisboa, no Campo Pequeno — onde ainda se humilham touros com bandeirolas coloridas espetadas no sangue, sendo retirados da arena depois da faina, vivos, mas envergonhados, por doze vacas corpulentas com guizos no pescoço! —, quando, na sobremesa, minha mãe visitante me disse que tinha trazido do Brasil uma carta do Chico. Pusemos a carta-cassete na vitrola e, pela primeira vez, ouvimos “Meu caro amigo”, com Francis Hime ao piano. Falávamos tristezas, e ouvimos um canto da esperança.
Chico resistia, aqui no Brasil, escrevendo “Apesar de você” e “Vai passar”; e nos ajudava a resistir, lá fora, cantando sua amizade. Sua lírica era a mais pura poesia épica: seu caro amigo eram todos os nossos amigos, e todos os nossos amigos eram seus.

Meu caro amigo, me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando que também sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo, eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
É pirueta pra cavar o ganha-pão
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo, eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita careta pra engolir a transação
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo, eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal
Adeus!