Caymmi, Camus e um texto escrito logo após a morte de Caymmi

Oh! Vento que faz cantigas nas folhas no alto do coqueiral“. Esse trecho de Coqueiro de Itapuã, é um dos mais bonitos trechos de letras de músicas, e não poderia deixar de ser, seu autor é Caymmi. Seus sambas praieiros e os sambas “sacudidos” são atemporais, parecem existir desde sempre, parece que antes de Caymmi, só há o mar, nos praieiros, e uma mulher que mexe as cadeiras para lá e para cá… é possível, nas suas músicas, mesmo sem o recurso às metáforas, ouvir o mar quebrando na praia, sentindo o cheiro do vatapá da “nega que saiba mexer”, ou ver a mulher sambando com seu remelexo… simples e linda é a sua mensagem. Por isso que Arnaldo Antunes escreveu: “Não parece coisa feita por gente: parece o canto das coisas em si.” . Quando Caymmi morreu,  Marcelo Coelho escreveu, na Folha de São Paulo, um belo texto sobre a morte de Caymmi, que transcrevo abaixo:

A doce morte de Dorival Caymmi

Em 1949, em plena glória existencialista, Albert Camus (1913-1960) veio ao Brasil. Estava gripado e deprimido. Detestou quase tudo.
Sobre a baía da Guanabara, disse que era espetacular demais para o seu gosto. As pessoas, na maioria, ele acha insuportáveis. Os motoristas brasileiros “ou são alegres loucos ou frios sádicos”.
Fazem-no experimentar pratos da culinária baiana, “tão apimentados que fariam andar paralíticos”.
Pobre Camus. Levam-no a uma macumba. A dança, “de estilo medíocre, é pesada e muito carregada”.
O transe religioso produz nele um bocado de nojo: “Uma branca gorda, com uma cara animal, uiva sem parar […]. Todos gritam e urram […]. O calor, a fumaça dos charutos, o cheiro humano tornam o ar irrespirável.
Saio, trôpego, e respiro afinal deliciado o ar fresco. Amo a noite e o céu, mais do que os deuses dos homens”.

Coqueiro De Itapoan - song by Dorival Caymmi | Spotify


Uma ou duas mulatas até que são bonitas, mas Camus concorda com o militante negro Abdias do Nascimento: “A raça é feia”. De qualquer modo, pouco importa: “A natureza sufoca o homem”.

A mistura de miséria e luxo lhe pareceu mais insolente no Brasil do que em qualquer outro lugar.

“Desgosto e cinismo”, resume Camus.
Mas seu “Diário de Viagem” (ed. Record) registra alguns momentos de felicidade. Camus vai jantar na casa de uns conhecidos franceses e encontra Manuel Bandeira, “pequeno homem extremamente fino”.
Depois do jantar, aparece “Kaïmi, um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta”. Ouvem-se “as canções mais tristes e mais comoventes”. “Pouco a pouco, todos cantam, e veem-se um negro, um deputado, um professor de faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido”, anota Camus.
Tinha de ser. Quem sabe até cantou, junto com Dorival Caymmi, algumas daquelas canções que todo mundo conhece, e que, na verdade, parece que já conhecia antes mesmo de terem sido compostas.
Fico nas básicas, como “É Doce Morrer no Mar” e “O Mar” (“Quando quebra na praia…”). A “tristeza”, para usar o termo de Camus, é imensa nessas músicas -só que nelas não parece haver lugar para sentimentos tristes. Canções de ninar também são tristes, e não servem para entristecer.
“É Doce Morrer no Mar” se parece, sem dúvida, com um acalanto, por causa da melodia hipnótica; e também porque parece ter surgido “pronta”, sem autor, de algum fundo noturno de folclore e de memória.
“Não parece coisa feita por gente”, diz Arnaldo Antunes, citado pelo ensaísta Francisco Bosco, num livro primoroso sobre o compositor, para a coleção “Folha Explica”. Francisco Bosco acrescenta: as canções praieiras de Caymmi parecem “o canto das coisas em si, as coisas cantando”.
Enumera, em seguida: o vento, as ondas, o mar, a areia…
E, com isso, voltamos àquelas frases de Camus. “A natureza sufoca o homem”, diz o escritor a propósito do Brasil; “amo a noite e o céu, mais do que os deuses dos homens”, observa ele, não sem cair em alguma contradição.
De certo modo, a “doçura de morrer no mar” está no fato de permitir esse desaparecimento de toda individualidade, que a natureza brasileira, e a música de Caymmi, conseguem efetuar por um momento.
Não é por outra razão que “um negro, um deputado, um tabelião” e talvez um intelectual europeu terminam a noite cantando juntos.
Mas a morte doce de Caymmi poderia significar apenas uma espécie de consolo, de esquecimento, como o da canção de ninar, sem que o ouvinte se sinta curiosamente desperto e insaciado cada vez que ouve uma de suas composições.
Ouço novamente “É Doce Morrer no Mar”. Não sei se alguma canção de ninar começaria com aquele salto melódico nas duas primeiras sílabas, que tem um componente de inquietação, de resistência inicial ao balanço que se vai seguir.
A antítese escondida no verso (do mar salgado à morte doce) repete-se em outros planos. É o vozeirão de Caymmi quem fala pela mulher, lamentando a morte do “marinheiro bonito”. Mas a mulher fala pelo marinheiro, pois apenas para este é doce ser levado pela “sereia do mar”.
Na letra existe também um jogo com o saveiro, que numa estrofe “voltou sozinho”, e que em outra…
“partiu e não voltou”. Marinheiro e barco se confundem nesse vaivém da música.
Não há pura dormência nisso.
Quem quer o mar quer sair daqui, mas também quer voltar. Maracangalhas e Bahias, quem sabe, talvez venham a ficar no mesmo lugar.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 20 de agosto de 2008.

Saudade dela… Para Edith do Prato

A música “Saudade Dela” foi feita em homenagem a Dona Edith do Prato, figura central na vida de Caetano e Bethânia. Oriunda de Santo Amaro, Edith morreu em 2009, aos 94 anos.

Seu jeito de cantar e tocar o prato remonta às tradições do samba-de-roda da Bahia, em que Edith do Prato termina servindo como um vínculo com a tradição das chulas e dos ritmos do recôncavo baiano.

Edith, para Bethânia e Caetano, era mais do que um símbolo do samba-de-roda do recôncavo. Consta que ela teria sido ama-de-leite dos irmãos, amiga de D. Canô e, portanto, uma pessoa muito querida.

Não foi por acaso, portanto, que Roberto Mendes e Nizaldo Costa fizeram a letra, exaltando a saudade que Edith deixou, com muitas referências à sua condição de referência do samba-de-roda.

Por isso, o samba, gravado por Bethânia, com a participação de Caetano e Gilberto Gil, faz uma justa homenagem, ao samba, a Edith e à saudade…

ai, ai, saudade 
saudade dela
ela se foi, saudade
fiquei sem ela

fonte de sabedoria
onde tudo podia achar
todo o canto matriz
da gente do meu lugar

quando eu era canarinho
ela existia, sabiá
hoje canto sozinho
e dela sempre vou lembrar

olha o tombo do pau
aê, aê, olha o tombo do pau
aê, aê, olha o tombo do pau
aê, aê, olha o tombo do pau

ai, ai, saudade
saudade dela
ela se foi, saudade
fiquei sem ela

do nosso convívio saiu
já se dizia cansada
deixou um largo sorriso
e um doce canto de paz

foram tantas alegrias
servidas naquele prato
mistura de amor e poesia
em mesa de luxo era ouro,
brilhante e prata

ai, ai, saudade
saudade dela
ela se foi, saudade
fiquei sem ela

dona da casa me dá licença
d'eu sambar na varanda
com chapéu na cabeça
e facão de banda

dona da casa me dá licença
me dê seu salão para eu vadiar
me dê seu salão para vadiar
me dê seu salão para vadiar
eu vim aquí foi pra vadiar
eu vim aquí foi pra vadiar

vadeia, vadeia, vadeia
vadeia pomba na areia
vadeia, vadeia, vadeia
vadeia pomba na areia

ai, ai, saudade
saudade dela
ela se foi, saudade
fiquei sem ela

Sá Marina. A história do maior sucesso de Simonal

Quando Wilson Simonal gravou “Sá Marina”, em 1968, todo mundo imaginou aquela mulher que descia a rua da ladeira, com sua saia branca costumeira, e que cheirava a flor de laranjeira…

Blog de musicaemprosa : Música em Prosa, Sá Marina.

Essa canção, uma letra de Tibério Gaspar para uma música de Antonio Adolfo, relata uma paixão de Tibério por sua professora no interior do Rio de Janeiro, quando ele tinha 8 anos.

A história é contada no volume 1 do livro “Então, foi assim” de Ruy Godinho, sobre a professora que morava na cidade de Anta-RJ . Segue aqui …

Blog de musicaemprosa : Música em Prosa, Sá Marina.

“Na cidade morava uma professora chamada Brasilina, uma mulher loura, bonita, desejada pelos homens e odiada pelas mulheres. Ela morava na Rua da Ladeira (…) E quando ela saía de casa descendo a rua, os pudores se reviravam. Enquanto os homens babavam, as mulheres cuspiam na calçada, batendo janelas.(…)

‘Eu amava essa mulher’, afirma um saudoso Tibério. ‘Uma vez engendrei um plano audacioso. Eu tinha uns oito anos. Aproveitando o fato de minha mãe ser amiga dela, pedi que me levasse junto quando fosse visitá-la. E assim aconteceu após alguns dias. Minha mãe chamou-me e fomos pra casa de Brasilina. Chegando lá, pus em prática o meu plano de ‘assédio sexual’. Propositalmente esqueci um pente no sofá da sala na hora de ir embora. Minha intenção era voltar à noitinha para resgatá-lo. Tudo certo. Fiz tudo como planejara. à noite dei uma escorregada até a casa da professora e….

Tibério, tímido, não teve coragem. 

Ficou plantado na porta. 

O pente ficou lá, esquecido. 

Um belo dia, Brasilina foi embora. Resolveu morar em Niterói, e a vida de Anta voltou a ter a monotonia de sempre…

Foi assim que Brasilina inspirou Tibério a fazer a letra da canção, só mudando o nome da musa para Sá Marina, que era mais musical…

Conta Tibério ainda sobre a canção…

Interessante é que anos mais tarde, depois que a música fez sucesso, eu fui procurado pelo programa de Flavio Cavalcanti. O programa dele tinha o quadro “Os compositores e suas musas”. daí ele me chamou para falar sobre Sá Marina. Contei que não sabia com precisão onde morava. sabia apenas que ela havia se mudado para Niterói. 

A produção do programa foi atrás de Brasilina. (…)Ela falou que conhecia a música, que tinha adorado tudo que estava sendo falado, mas que não queria ir ao programa, não queria que tirassem fotografias e que nem a filmassem. “Quero que Tiberinho continue a ter a mesma ideia de mim como eu era antigamente. Agora estou velha e não quero que ele me veja assim…”

E assim surgiu um dos maiores, se não o maior sucesso de Simonal… e a canção teve mais de 300 gravações… E ainda dá para imaginar a moça descendo a rua da ladeira, provocando rebuliço naquela cidade do interior…

Descendo a rua da ladeira
Só quem viu, que pode contar
Cheirando a flôr de laranjeira
Sá Marina vem prá dançar…

De saia branca costumeira
Gira ao sol, que parou prá olhar
Com seu jeitinho tão faceira
Fez o povo inteiro cantar…

Roda pela vida afora
E põe pra fora esta alegria
Dança que amanhece o dia
Pra se cantar
Gira, que essa gente aflita
Se agita e segue no seu passo
Mostra toda essa poesia do olhar
Huuuuuuummmm!…

Deixando versos na partida
E só cantigas prá se cantar
Naquela tarde de domingo
Fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar…

Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!

Oh!
Deixando versos na partida
E só cantigas prá se cantar
Naquela tarde de domingo
Fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar…

Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!

E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar…

Wilson Simonal – Sa Marina / Cai, Cai (Vinyl) - Discogs

Descendo a rua da ladeira
Só quem viu, que pode contar
Cheirando a flôr de laranjeira
Sá Marina vem prá dançar…

De saia branca costumeira
Gira ao sol, que parou prá olhar
Com seu jeitinho tão faceira
Fez o povo inteiro cantar…

Roda pela vida afora
E põe prá fora esta alegria
Dança que amanhece o dia
Prá se cantar
Gira, que essa gente aflita
Se agita e segue no seu passo
Mostra toda essa poesia do olhar
Huuuuuuummmm!…

Deixando versos na partida
E só cantigas prá se cantar
Naquela tarde de domingo
Fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar…

Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!

Oh!
Deixando versos na partida
E só cantigas prá se cantar
Naquela tarde de domingo
Fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar…

Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!
Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá Lá!

E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar
E fez o povo inteiro chorar…

“ORORA”- O humor no samba de Gordurinha

Uma mulher (“bonitona, bem feita de corpo e cheia da nota”) tem uma grande letra “O” bordada na blusa… tem a ver com seu nome.

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Qual seria seu nome? Olga, Odete, Ofélia?

Aí a mulher responde: É “Orora”….

Com essa tirada bem-humorada Gordurinha faz uma piada com as mulheres que não sabem ler, escrever ou falar direito.

Essa mulher, a “Orora” escreve gato com “j”, sauidade com “c”, fala “arioprano” e “motocicreta”.

Essa canção revela algumas coisas… primeiro, como o humor anda sumido da música brasileira. Esse traço, característicos dos sambas e marchinhas de carnaval, não tem sido visto com frequencia…

Revela, também, como determinadas pessoas podem ser verdadeiras poesias – desde que de boca fechada. Não é incomum que alguém extremamente sexy e interresante faça desaparecer todo o interesse quando abre a boca.

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Assim, a pitada de humor de Gordurinha – nome artístico de Waldeck Artur de Macedo, que tinha esse apelido, na verdade, pelo fato de ser muito magro – acaba por divertir e fazer sorrir…

A letra

Eu arrumei uma dona boa lá em Cascadura
Que boa criatura mas não sabe ler
E nem tão pouco escrever
Ela é bonitona, bem feita de corpo
É cheia da nota
Mas escreve gato com “j”
E escreve saudade com “c”
Ela disse outro dia que estava doente
Sofrendo do “estambo”
Levei um tombo… Cai durinho pra trás
Isso assim já e demais
Ela fala “aribu”, “arioprano” e “motocicreta”.
Diz que adora feijoada “compreta”.
Ela é errada demais!
Viu uma letra “O” bordada na blusa
Eu disse é agora
Perguntei seu nome ela disse Orora
E sou filha do Arineu
Mas o azar é todo meu

Have You ever seen the rain

O Grupo Credence Clearwater Revival (nome esquisito para uma banda – a história vem em outra postagem) notabilizou-se sobretudo pela canção – Clássica até hoje, mais de 40 anos depois, “Have You ever seen the rain“. A canção, um country rock gravado em 1971, no album Pendulum. 

A canção, que revela uma certa tristeza na expectativa de calmaria após a tempestade, foi feita por John Fogerty (vocalista e guitarrista), quando seu irmão mais velho e guitarrista da banda, Tom Fogerty, estava prestes a deixar a banda para seguir carreira solo, justo quando a banda estava no auge.

Numa entrevista, Fogerty afirmou que a canção foi escrita sobre o fato de que a banda estava no topo das paradas, tendo superado todos os seus sonhos mais loucos e suas mais exigentes expectativas de fama e fortuna. Eles eram ricos e famosos, mas de alguma forma todos os membros da banda na época estavam deprimidos e infelizes.

Assim, a linha de “Você já viu a chuva, caindo em um dia ensolarado”. A letra faz referências às tempestades vindas antes da calmaria, e as referências ao sol que esfria e a chuva que aquece, enfim, as contradições de algo que parece ser em princípio ter tudo para ser feliz e que termina desaguando em tristeza.

Por isso mesmo, mesmo que o dia estivesse ensolarado para a banda, internamente seus membros estavam chovendo.

Em 2012, quando apresentava um show no Arizona, John Fogerty afirmou que o significado desta música mudou para ele ao longo do tempo. Ele disse que a canção canção foi originalmente escrita sobre uma coisa muito triste que estava acontecendo na sua, mas que ele se recusava a ficar triste naquele momento, pois agora essa música me lembra da sua filha, Kelsey, e cada vez que ele a cantava, pensava sobre Kelsey e arco-íris. ”

Fogerty acrescentou que este é a sua música favorita de todos os tempos… .