Adeus, batucada

Caetano Velloso e Gilberto Gil provocaram uma verdadeira revolução com a Tropicália no final da década de 60. Modernizaram a música popular brasileira, cuja vertente “universitária”, típica dos Festivais da Record, e em seguida, da Globo, era extremamente conservadora.

 A “Frente única da Música Popular Brasileira” negava qualquer influência estrangeira, sobretudo das guitarras elétricas, vistas como uma espécie de símbolo do colonialismo americano (vide uma passeata contra a guitarra elétrica promovida e liderada por Elis Regina, Geraldo Vandré e Edu Lobo, em 1967 – o alvo era Roberto Carlos e a Jovem Guarda, vista como mera imitação do iê-iê-iê decorrente da Beatlemania).

 O movimento da chamada “verdadeira” MPB também rechaçava a produção nacional tida como popularesca e de mau gosto – O símbolo máximo da breguice era Chacrinha.

 Ocorre que, em 1967, Gilberto Gil, com Domingo no parque, e Caetano Velloso, com Alegria, Alegria, causaram furor no festival da Canção da Record, mesmo não tendo vencido o festival (Gilberto Gil ficou em segundo; Caetano, em quarto. A vencedora foi Ponteio, de Edu Lobo). Tudo isso se devia menos ao uso das guitarras elétricas, e mais pelo caráter moderno das músicas, sobretudo a sinestesia que provocam, pois ambas são músicas muito visuais.

 Em 1968, no Festival Internacional da Canção da Rede Globo, o choque ficou mais intenso, comQuestão de Ordem, de Gilberto Gil, e, principalmente, com Proibido Proibir, de Caetano, cujo discurso diante das vaias do público do festival repercute até hoje.

 Caetano e Gil foram presos, e, em seguida, exilados em Londres. Pelos relatos na bibliografia sobre o assunto, parece que Gil encarou melhor a prisão e o exílio do que Caetano. Carlos Callado, no seu livro Tropicália – a História de uma revolução musical, narra que Gil conseguiu um violão no presídio, e, uma vez em Londres, procurou um curso de inglês, frequentava shows de música, buscava formar uma banda, enquanto Caetano ficava triste, deprimido. Callado cita um trecho de Caetano, publicado no Pasquim  de 27 de novembro de 1969:

“Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos” 

O disco que Caetano gravou no exílio também deixa claro esse espírito, sobretudo em If you hold a Stone, Maria Bethânia e Asa Branca.

 Em janeiro de 1971 Caetano obtém permissão para voltar ao Brasil. Não definitivamente, mas para assistir às bodas de rubi de seus pais, Seu Zezinho e Dona Canô. Conta Callado, na obra acima citada, que Caetano foi interrogado, intimidado, proibido de dar entrevistas ou cortar o cabelo e, para atribuir uma aparente normalidade, uma apresentação no programa Som Livre Exportação,  da Rede Globo.

 Em 4 de fevereiro de 1971, para quem esperava um Caetano ainda mais revolucionário quando voltasse de Londres, com mais sons modernos e psicodélicos (lembrando que há 40 anos não havia computador, internet, celular), Caetano saiu-se com um samba lindo de Sinval Silva, Adeus, batucada, imortalizado na voz de Carmen Miranda. A letra:

 Adeus, adeus
Meu pandeiro de bamba
Tamborim de samba
Já é de madrugada
Vou-me embora chorando
com meu coração sorrindo
E vou deixar todo mundo
Valorizando a batucada

Em criança com o samba eu vivia sonhando
Acordava, estava tristonha chorando
Jóia que se perde no mar só se encontra no fundo
Samba mocidade
Sambando se goza nesse mundo
E do meu grande amor sempre me despedi sambando
Mas da batucada agora eu despeço chorando
E trago no peito esta lágrima sentida
Adeus batucada, adeus batucada
Querida

 Nelson Motta, em seu Noites Tropicais, comenta o fato:

“Mas na gravação do programa, no Rio, ele surpreendeu o auditório jovem e roqueiro, que esperava dele algo elétrico, pesado, mais próximo de Os Mutantes do que de Elis e Ivan Lins. Ao contrário, sem gritos nem guitarras, apenas se acompanhando ao violão, Caetano cantou, radicalmente gilbertiano, um antigo e belíssimo samba de Sinval Silva, gravado por Carmen Miranda.  

 Caetano comenta essa passagem no seu livro Verdade Tropical

A plateia do Som Livre era constituída de jovens cariocas que nada sabiam a respeito de minha prisão e tinham uma idéia pop-rock da contribuição que eu dera à modernização da MPB. Era bem uma platéia sintonizada com essa sigla, tal como ela se afirmara naquele momento. Tinha se passado pouco mais de um ano da minha saída e eu me via frente a frente com o pós tropicalismo. Os garotos nus da cintura pra cima e as garotas de cabelos longos e lisos ovacionaram meu nome. Eles mostraram esperar de mim uma versão mais madura e mais sofisticada daquilo que estavam aprendendo a cultuar: uma fusão do pop inglês com samba – jazz carioca. Entrei apenas com meu violão e cantei Adeus Batucada, o genial samba de Sinval Silva que fora a mais bela gravação de Carmen Miranda. Nada podia ser mais fiel à história tropicalista: um contraste gritante como samba – jazz e com a fusion, uma referência à Carmen Miranda – e justamente com um samba em que a grande exilada da música popular brasileira dizia que “ia embora chorando, mas com o coração sorrindo”, pois ia” deixar todo mundo valorizando a batucada”. A garotada ficou perplexa e decepcionada. Passou despercebido o fato de que era a primeira vez que eu me apresentava na TV brasileira tocando meu violão.

Não quero aqui fazer comentários, mas apenas suscitar a imaginação de vocês… Caetano, preso, exilado, visita o Brasil num clima de terror, participa de um programa de televisão (Som Livre Exportação, apresentado Por Ivan Lins e Gonzaguinha) que o próprio Caetano diz ser um “filho do tropicalismo”, encontra um público jovem, ansioso por novidades, e encontra Caetano em seu violão, lírico e metafórico, cantando Adeus, batucada…

 Publicado orignalmente no http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em fevereiro de 2010

Movimento contra a “alienação” musical, exclusão das guitarras e preservação de uma chamada “verdadeira” música popular.

Conferir o site http://historia.abril.com.br/politica/censura-brega-434196.shtml

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