A minha primeira postagem no antigo blog (musicaemprosa.musicblog.com.br) foi sobre Dorival Caymmi. Sobre sua música que parece o canto das coisas em si, sobre os sambas sacudidos, sobre o mar (que é o mar, é o mar é o mar, como canta em “O bem do mar”) e trouxe um artigo que revela o espanto e a admiração de Camus com as músicas de Caymmi.

Eu tenho um cd duplo, “Caymmi inédito”, lançado pela universal, que tem algumas das maiores jóias de Caymmi (ou melhor seria dizer pérolas, em homenagem ao mar?), como É doce morrer no mar, A preta do Acarajé, A lenda do Abaeté, O que é que a Baiana tem, Eu fiz uma viagem, Peguei um Ita no norte, Maracangalha, Acalanto, João Valentão, O samba da minha terra, marina, Dois de fevereiro, Oração de Mãe Menininha, entre tantas outras, embora sinta falta de O bem do mar, Rosa Morena e Lá vem a Baiana… um cd duplo ainda é pouco.
Mas na verdade, uma coisa que gostei muito no CD foram alguns depoimentos sobre Caymmi. Dois de Músicos: Tom Jobim e Caetano Veloso. Interessante que Tanto na análise de Jobim como na de Caetano, parece que falar da música de Caymmi não é tão fácil… Jobim fala muito do Caymmi pintor, dizendo que como músico, “nem se fala”. Caetano deixa transparecer sua admiração por João Gilberto, e tece sua admiração por Caymmi (“fácil demais e ao mesmo tempo difícil de falar”) através da admiração de seu mestre João.
Adiante, tem depoimento de outros dois baianos ilustres de sua geração: Jorge Amado, numa bela metáfora sobre o Caymmi músico, e Carybé, num depoimento que fala da preguiça de Caymmi. Aqui abaixo os depoimentos.
ANTONIO CARLOS JOBIM

Eu conheci o Dorival Caymmi nos idos de 48, 49. Eu estava assim muito empenhado, eu queria ser músico de qualquer jeito, me aproximei dele e depois nos tornamos grandes amigos. O Dorival Caymmi é um gênio, uma pessoa assim que se eu pensar em música brasileira eu vou sempre pensar em Dorival Caymmi. Ele é uma pessoa incrivelmente sensível, uma criação incrível, eu digo isso sob o ponto de vista musical, sem falar do poeta e do pintor, porque o pintor, inclusive, eu ganhei um quadro dele, eu dei uma flauta ao filho dele e ele me deu um quadro que é uma maravilha. Eu outro dia perguntei a Danilo Caymmi: mas, rapaz, como é que seu pai pinta assim? Ele disse, ele estudou. Um negócio! Porque o Dorival é um grande pintor mesmo, não é negócio de brincadeira não, e nas músicas, então, nem se fala…
CAETANO VELOSO

Caymmi é fácil demais e, por isso mesmo, um pouco difícil falar de Caymmi. Porque ele é uma paixão total, assim, o amor que eu tenho por ele e que eu posso conceber que se tenha por ele, é assim total, sem limitações, é uma coisa assim de uma beleza ilimitada, e ao mesmo tempo é uma coisa muito simples. Ele é um compositor até que não é, como é que se diz, prolixo, ele não tem canções demais, ele tem um número grande de canções, mas relativamente pequeno, comparado com outros compositores, mas cada canção dele é uma joia, assim perfeita, e todo o clima dele é uma clima de quase uma sabedoria muito profunda que ele parece ter tido desde sempre, é uma coisa, calhou acontecer aquele homem, não é? O João Gilberto fala sempre que o Caymmi é que é o gênio da raça. O João Gilberto diz que aprendeu tudo com Caymmi e que a gente deve estar sempre aprendendo com Caymmi. “Aprenda tudo com ele…” o João Gilberto fala de Caymmi. Você vê, é engraçado porque… são três gerações: o Caymmi, o João Gilberto e eu, e o João Gilberto diz isso pra mim, pra mim e pros meus colegas de geração, pros meus companheiros, e o João Gilberto foi o mestre imediato da minha geração, porque nós somos uma geração que começou com uma admiração, por uma admiração pela bossa nova, não é?… E a bossa nova foi que nos formou e o João Gilberto que era o núcleo, o centro da bossa nova, assim, ele sempre viu o Caymmi como o exemplo máximo do artista como deve ser e do homem como deve ser.
JORGE AMADO

Caymmi representa um dos momentos mais altos da criação brasileira e da criação baiana, em particular. Quer dizer, a poesia mais profunda da vida baiana, do povo baiano. Caymmi é uma flor nascida lá em cima que desabrocha de toda essa terra trabalhada, da cultura popular adubada com suor, com sangue, com sonho, com esperança, com todas as dificuldades possíveis que o homem encontra, com toda a magia, e que de repente produz uma flor de cultura, uma coisa esplêndida, única, luminosa, que é a obra de Caymmi, desse poeta extraordinário.
CARYBÉ

Jorge Amado, Caymmi e Carybé
O Axé de Opó-Afojá, Candomblé de Mãe Senhora, uniu três pessoas que hoje em dia são três irmãos de esteira — cada um tem uma esteira. Agora, um é Obá Onicoí, outro é Obá Olorum e o outro é Obá Onoxocum. Em português, seriam Dorival Caymmi, Jorge Amado e Carybé. E, aí nos unem laços assim secretos e misteriosos, não é?… Agora na vida comum eu acho que ele é fabuloso. Agora, ele tem uma coisa contra que não consegue fazer as coisas por causa da preguiça, porque o grande inimigo dele é a preguiça, ou amigo, deve ser amigo, mais do que inimigo, porque não há dúvida que preguiça é uma coisa gostosa, não é? Com bicho-do-pé, se tiver, ainda melhor. Ele fica lá naquele Rio das Ostras, comendo ostra, tocando violão, limpando garrucha, punhais, colecionando bengalas… Então ele vai levando a vida assim… Pinta um quadrinho, e tal, todos eles são bons, menos o meu retrato porque o meu retrato é o Retrato de Dorian Gray, que ele vai pegando, assim, cada dois anos, três anos, um ano e meio, então, mudo… De repente eu estou mais mocinho, daqui a pouco ele faz um coroco, e, enfim, é isso…
Publicado originariamente no http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em 14 março de 2010 07:49 , em Clássicos da Música Brasileira