“Bandeira”, de Zeca Baleiro, é uma espécie de réplica a um belo poema de Manuel Bandeira, chamado “Belo Belo”. Marina Vaz faz um belo comentário sobre as relações entre a música e a poesia, que pode ser encontrada no endereço http://espacomusicalbrasileiro.blogspot.com/2009/03/bandeira-de-zeca-baleiro.html
De Manuel Bandeira a Zeca Baleiro
Marina Vaz*
Ouvir a música “Bandeira”, do maranhense Zeca Baleiro, é sempre instigante. Em um primeiro momento, ela pode ser interpretada como uma bela canção que fala dos anseios e desejos humanos, como espécies de “bandeiras” levantadas pelo eu-lírico (a voz que fala na canção). Mas a citação, ao final da música, do verso “Vida noves fora zero”, de Manuel Bandeira, abre caminho para a compreensão das relações intertextuais existentes entre as duas obras. E o que poderia parecer, à primeira vista, escondido na música do compositor torna-se escancarado no próprio título da canção, que homenageia o poeta pernambucano.
“Belo belo”, de Manuel Bandeira

Os versos citados por Baleiro são do poema “Belo belo”, em que Bandeira expõe a frustração com a vida em trechos como: “Tenho tudo que não quero/ Não tenho nada que quero”. Fecha-se um círculo de infelicidade: o eu-lírico não somente tem tudo aquilo que não quer, como também não consegue absolutamente nada do que deseja. E o que, afinal, ele não quer? “Não quero óculos nem tosse/ Nem obrigação de voto”. Reúnem-se aí dois elementos importantes para a compreensão das causas de seu descontentamento: as limitações físicas (“óculos” e “tosse”) e as limitações sociais (representada pela “obrigação de voto”). E as imagens utilizadas para ilustrar suas possíveis fontes de prazer referem-se, invariavelmente, a lugares ou situações inatingíveis: o topo das montanhas (os “píncaros”); a “fonte escondida”; a “escarpa inacessível”; “a luz da primeira estrela”.
O desejo de experimentação também é demonstrado pelo prazer voluptuoso ao ansiar, com mesma intensidade, o “moreno de Estela”, a “brancura de Elisa”, a “saliva de Bela” e as “sardas de Adalgisa”. Mas, por reconhecer que seus desejos estão distantes demais daquilo que, de fato, ele possui, ele trata de voltar à realidade: “Mas basta de lero-lero/ Vida noves-fora zero”. No fim, o que lhe sobra é o resultado de uma conta cruel: no balanço “matemático” de sua existência, o resultado é zero.
Observando a forma como o poema se estrutura, pode-se ver que grande parte dos versos faz referência ao que o eu-lírico quer. Ou seja, considerando a lógica dos primeiros versos (“Não tenho nada que quero”), os versos fazem referência ao que ele gostaria de ter mas não tem. Fica claro que seus desejos e suas necessidades são muito maiores do que aquilo de que ele dispõe na vida. Dessa forma, “Quero quero muita coisa” transmuta-se a um “não tenho muita coisa”.
“Bandeira”, de Zeca Baleiro

Diferentemente do que acontece no poema “Belo belo”, de Manuel Bandeira, a canção “Bandeira”, de Zeca Baleiro, é tomada, em sua maior parte, por versos panfletários daquilo que o eu-lírico não quer: “Eu não quero ver você cuspindo ódio / Eu não quero ver você fumando ópio”. Assim, o que é rejeitado são as escolhas feitas pelos próprios indivíduos da sociedade justamente para “sarar a dor”.
A dor, neste caso, não se refere mais a problemas de saúde (à “tosse”). A sociedade moderna, que, com os avanços científicos, descobriu a cura de várias doenças, criou, em contrapartida, indivíduos que “cospem ódio” e “choram veneno”. Indivíduos mesquinhos que oferecem “café pequeno” (ou que são, eles mesmos, “cafés pequenos”, expressão pejorativa utilizada para designar os que não têm importância). Diante dessa desilusão, o eu-lírico passa a rejeitar tudo o que provém dessa sociedade, indiscriminadamente: “Eu não quero isso seja lá o que isso for”.
Com os versos “Não quero medir a altura do tombo / Nem passar agosto esperando setembro”, a canção demonstra o desejo de querer-se livrar da prudência excessiva e do hábito de não aproveitar o presente esperando-se o futuro. Por isso, o melhor futuro parecer ser mesmo o que está “hoje escuro”, quando ainda se encontra no plano da idealização.
Depois de o eu-lírico da música falar tudo o que ele não quer (o que, de acordo com a lógica de Manuel Bandeira, é tudo aquilo que, na verdade, ele tem), ele parte então para o que deseja: “Quero a Guanabara quero o rio Nilo / Quero tudo ter estrela flor estilo / Tua língua em meu mamilo água e sal”. Nestes versos, a canção se aproxima ainda mais do poema de Bandeira, com referência claras à “luz da primeira estrela” e à “rosa que floresceu”. Além disso, “a língua no mamilo” poderia muito bem ter deixado resquícios da “saliva de Adalgisa”, citada por Bandeira.

Enquanto, no poema, o eu-lírico diz muito sobre o que ele quer (ou seja, sobre o que ele não tem), na canção de Baleiro, o foco é o que ele não quer (ou seja, o que ele tem). Isso porque a música, mais atual, retrata o pensamento de alguém já inserido numa sociedade moderna de consumo. Ele tem, mas não está satisfeito com aquilo que possui. Volta-se, então, para os elementos mais simples: a estrela, a flor e as paisagens naturais (ora Pernambuco, Bagdá e Cusco, ora a Guanabara e os rios Nilo e Tejo). Entretanto, o balanço da vida nos dois casos é o mesmo: “Vida noves-fora zero”.
Quando se ouve “Bandeira”, com sua melodia em dó dissonante, basicamente com instrumentos de cordas e sem percussão, vê-se que o poeta modernista e pernambucano está mais do que homenageado…
| BANDEIRA (Zeca Baleiro)
eu não quero ver você cuspindo ódio eu não quero ver você fumando ópio pra sarar a dor eu não quero ver você chorar veneno não quero beber o teu café pequeno eu não quero isso seja lá o que isso for eu não quero aquele eu não quero aquilo peixe na boca do crocodilo braço da Vênus de Milo acenando “ciao” não quero medir a altura do tombo nem passar agosto esperando setembro se bem me lembro o melhor futuro este hoje escuro o maior desejo da boca é o beijo eu não quero ter o Tejo me escorrendo das mãos quero a Guanabara quero o rio Nilo quero tudo ter estrela flor estilo tua língua em meu mamilo água e sal nada tenho vez em quando tudo tudo quero mais ou menos quanto vida vida noves fora zero quero viver quero ouvir quero ver (se é assim quero sim acho que vim pra te ver)
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BELO BELO (Manuel Bandeira)
Belo belo minha bela Tenho tudo que não quero Não tenho nada que quero Não quero óculos nem tosse Nem obrigação de voto Quero quero Quero a solidão dos píncaros A água da fonte escondida A rosa que floresceu Sobre a escarpa inacessível A luz da primeira estrela Piscando no lusco-fusco Quero quero Quero dar a volta ao mundo Só num navio de vela Quero rever Pernambuco Quero ver Bagdá e Cusco Quero quero Quero o moreno de Estela Quero a brancura de Elisa Quero a saliva de Bela Quero as sardas de Adalgisa Quero quero tanta coisa Belo belo Mas basta de lero-lero Vida noves fora zero
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