Neide Candolina

No disco Circuladô, em 1991, Caetano fez uma canção homenageando uma mulher “preta, linda e chique” , dotada de características peculiares, dona de um carro como fruto de seu trabalho de professora, e que nunca furou o sinal.

A canção contrasta a beleza e a elegância da mulher com a “suja” Salvador, e a referência a uma expressão de baianês, que é “brau”, derivativo de “brown”, que significa algo de baixo nível, de certo modo racista, para referir-se a um lugar onde se encontram pessoas pobres e de baixo nível. Caetano subverte a expressão “brown” para mostrar a beleza, a nobreza e a elegância dessa mulher,  que na verdade são duas:

A primeira é Neide Santos, chef do restaurante Africano Yorubá, no Rio de Janeiro, que Caetano conheceu quando ela era bem jovem, por intermédio de Antonio Risério

Neide é referência no Rio, quando se trata das delícias da comida baiana

A segunda foi sua professora de português, Candolina Rosa de Carvalho Cerqueira, Professora primária aos 18 anos, pela Escola Normal da Bahia, graduou-se em Línguas neolatinas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFBA, em 1949.

Em 1950, casou-se com Francisco de Morais Cerqueira, com quem teve cinco filhos. Francisco morre prematuramente, deixando a esposa viúva aos trinta e oito anos de idade, com os filhos eram pequenos. Foi mestra de Língua Portuguesa para várias gerações de baianos, em tradicionais colégios de Salvador – Colégio Central da Bahia, Colégio Severino Vieira, Colégio Marista – e permaneceu na memória de seus alunos. Morreu em 1973, aos 51 anos, vítima de um câncer de mama. Ela nomeia a escola da  rede estadual de ensino da Bahia, no bairro de Pau Miúdo.

Da mistura das duas nasceu Neide Candolina, a música que homenageia essas duas belas mulheres. Caetano conta, em “sobre as letras”, a história:

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“Neide é uma mistura de duas pessoas pretas da Bahia. Uma é Neide, minha amiga, que hoje em dia tem um restaurante no Rio de Janeiro chamado Iorubá. Eu a conheci quando ela tinha dezoito anos. Quem me apresentou foi um amigo, Antonio Risério, que é poeta e ensaista. Ele disse: “Você tem que conhecer a Neide e o pessoal dela, é uma gente maravilhosa, vamos ao Zanzibar! Eu disse a ela que a gente ia descer lá hoje”. Então, descemos onde ela morava, embaixo do restaurante que pertencia à família dela. E, quando chegamos, ela estava nua em pelo! Linda! Perfeitamente linda! Estava ouvindo um disco do Djavan. Ela me falou: “Você gosta do Djavan? Você quer um pouquinho de coca-cola?”. Assim, totalmente social. Conversava, cruzava as pernas, pegava as coisas, mostrava revistas, comentava, mudava a faixa do disco, nua, elegantíssima, social, sem qualquer escândalo. Ela tinha ficado nua em casa porque estava calor em Salvador, e não tinha certeza se Risério ia mesmo lá naquele dia. Mas também não quis se vestir quando chegamos, não se assustou. A outra pessoa que entrou na composição de Neide Candolina foi minha professora de português, a mais importante de todas, Dona Candolina. Então eu misturei o nome das duas e criei uma personagem negra, baiana, moderna.

 

O mais interessante é que aparece a palavra brown aqui, que é uma palavra que, na Bahia, era usada de modo pejorativo. Nos anos 70, 80, dizia-se: “está muito brown isso aqui; a praia está muito brown”, porque tinha muito preto, era muito baixo nivel, uma coisa cafona e pobre. Os pretos se chamavam de brown por causa de James Brown. Por isso que Carlinhos Brown é Carlinhos Brown, Mano Brown é Mano Brown; tudo vem de James Brown.

E como os pretos se chamavam de brown uns aos outros, a gíria pegou e a classe mádia “branca” começou a usar a palavra brown como quem diz “cafona” na Itália.

 

Preta chique, essa preta é bem linda

Essa preta é muito fina

Essa preta é toda glória do brau

Preta preta, essa preta é correta

Essa preta é mesmo preta

É democrata social racial

Ela é modal

Tem um Gol que ela mesma comprou

Com o dinheiro que juntou

Ensinando português no Central

Salvador, isso é só Salvador

Sua suja Salvador

E ela nunca furou um sinal

Isso é legal

E eu e eu e eu sem ela

Nobreza brau, nobreza brau

Preta sã, ela é filha de Iansã

Ela é muito cidadã

Ela tem trabalho e tem carnaval

Elegante, ela é muito elegante

Ela é superelegante

Roupa Europa e pixaim Senegal

Transcendental

Liberdade, bairro da Liberdade

Palavra da liberdade

Ela é Neide Candolina total

E a cidade, a ba¡a da cidade

A porcaria da cidade

Tem que reverter o quadro atual

Pra lhe ser igual

E eu e eu e eu sem ela

Nobreza brau, nobreza brau

 

 

[Caetano Veloso, Sobre as letras, Editora Schwarcz, São Paulo, 2003]

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Candolina_Rosa_de_Carvalho_Cerqueira

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