No ano de 1984, a Blitz lançou uma música chamada “Egotrip”, praticamente ao mesmo tempo em que a banda Ultraje a Rigor lançava a música “Eu me amo”. Na época, a Blitz estava no auge, lançando seu terceiro disco, e o Ultraje a Rigor estava começando sua trajetória. Ambos tinham refrões quase iguais.
Em “Egotrip”, era: Eu me amo/eu me adoro/eu não consigo viver sem mim”
Em “Eu me amo”, era: “Eu me amo/Eu me amo/não posso mais viver sem mim”
Como o Ultraje lançou a música primeiro, Evandro Mesquita, vocalista da Blitz, foi acusado de plágio. Justificou então numa entrevista ao Jornal da Manhã, em 1984:
“Foi coincidência mesmo, essa nem Freud explica: Esse texto eu já utilizava há dois anos numa peça, ‘A incrível história de Nemias Demutcha’. Depois, resolvemos incluir na letra da música. Acredito que o pessoal do Ultraje, gente fina, tenha feito a música deles com praticamente o mesmo refrão na base do acaso. Mas como gravaram primeiro – e nós fomos avisados que o disco deles estava saindo – , resolvemos mudar o refrão. Ficou ainda melhor”
Na verdade, o refrão ficou: Eu te amo/eu me adoro/eu não consigo te ver sem mim
Perdeu um pouco o sentido. Na verdade, Roger disse, numa entrevista reproduzida no livro “As Aventuras da Blitz” (Rodrigo Rodrigues, Ediouro, 2009), que a polêmica foi boa para o Ultraje, pois a Blitz era um sucesso e o Ultraje estava sendo conhecido. Houve uma provocação daqui ou dali da imprensa, mas o fato não foi muito adiante.
Andrea Ascenção conta, no livro “Ultraje a Rigor” (Belas Letras), conta que na época da composição Roger (vocalista ) estava lendo um livro que poderria hoje ser chamado de autoajuda. Ele pensava em fazer algo na linha de “Inútil”, primeiro sucesso da banda.
” Eu me amo nasce quando Roger está lendo Solidão ou Medo do Amor (Ira Tanner), é um livro de psicologia, que aborda análise transacional. Era uma coisa que estava na moda na época, foi um pouco antes dos livros de autoajuda. O livro foi um achado na casa de um amigo no Rio de Janeiro, durante as férias. Roger utiliza a tese do livro que defende que as músicas de amor são sempre autodepreciativas e compõe justamente aquilo que não existe de acordo com o autor. − Tudo bem, eu tenho um pouco de narcisismo, mas o lance da música não é esse. (…) Há uma ligação da letra de Eu me amo com a de Inútil, porque o lance de Inútil é dizer que a gente não é inútil… O livro dizia que, na criança, é natural isso de se amar, de, por exemplo, não emprestar seus brinquedos. E essas músicas do tipo “não posso viver sem você”, “sem você a vida não vale nada”, são uma mentira. O bom mesmo é gostar de você mesmo. Partindo dessa ideia, tirei um sarro em cima desses clichês.
“Quem desce do morro, não morre no asfalto…” Com esta frase Moraes começa a letra de “Lá vem o Brasil descendo a Ladeira”, talvez o samba de maior sucesso de Moraes Moreira após sua saída dos Novos Baianos.
Antes de se notabilizar por ser o primeiro cantor de Trio Elétrico, Moraes sempre se dizia um sambista baiano, como na letra da música “O que é o que é”, em que se definia “um sambista baiano, um artista, um bandido cigano, que é com a bola no pé e a viola na mão”.
Numa entrevista ao Jornal o Globo, em 1976, narrada por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no livro “A canção no tempo”, Moraes diz:
“No fundo eu sou só um sambista baiano. samba baiano é diferente do carioca, é outra coisa. O carioca é lindo, mas tende para a melancolia, muitas vezes.O samba baiano é alegre, é pra cima, é outra malandragem”
Voltando à música, ela retrata uma sequência de imagens, em que uma mulata desce a ladeira com a lata na cabeça, com o dia amanhecendo…
Moraes narra que, numa dessas madrugadas, João Gilberto caminhava com Moraes numa das ruas do Rio de Janeiro , quando percebeu uma mulher descendo a ladeira, com todo vigor, todo suingue, todo gingado, e uma lata na cabeça. Estava partindo para vida, sem se queixar de nada…
João não titubeou e disse: “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”…
Esse foi o verso que “arriscou o poeta” João Gilberto, ao que Moraes respondeu com um samba “sem medo”, em que exalta a mulher negra brasileira, do morro, do samba, que anda na sola e no salto… no equilíbrio da lata…
2]
E a introdução já faz imaginar a cadência desta mulher anônima homenageada. Moraes faz uma pequena referência a esta canção no Livro “A história dos novos baianos e outros versos“
Estes versos foram escritos depois que ouvi uma exclamação poética de João Gilberto. Ao ver uma linda mulata descendo o morro, ele disse: “Olha o Brasil descendo a ladeira.” Depois dessa, só mesmo um samba pra comemorar. Na parte musical contei com a participação de Pepeu Gomes.
Um samba bem cadenciado…Segue a letra…
Quem desce do morro
Não morre no asfalto
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
Na bola, no samba, na sola, no salto
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
Na sua escola é a passista primeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
No equilíbrio da lata não é brincadeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
E toda cidade que andava quieta
Naquela madruga acordou mais cedo
Arriscando um verso, gritou o poeta
Respondeu o povo num samba sem medo
Enquanto a mulata em pleno movimento
Com tanta cadência descia a ladeira
A todos mostrava naquele momento
A força que tem a mulher brasileira
“Olhos negros cruéis, tentadores das multidões sem cantor”... Esse é um trecho de Chão da Praça, de Moraes Moreira, que ele cantou no seu último carnaval em Salvador, em 2020.
Engraçado que, para uma geração que chega aos 40, durante muito tempo o carnaval da Bahia estava órfão. Órfão de seu primeiro cantor, aquele que primeiro colocou sua voz no trio elétrico e tem uma série de canções voltadas para tocar nas ruas, em cima de um trio elétrico. Como diz Moraes em Cantor de trio:
“Eu sou um cantor do Brasil/que canta em cima do trio/jogando através do fio/uma energia pra massa”. (Cantor do Trio)
Moraes cantava, e uma multidão o seguia na pipoca. Para os baianos, Moraes Moreira é muito, muito mais do que o cantor/compositor que integrava os Novos Baianos, responsável por uma revolução musical na década de 70: Moraes Moreira é o rei do trio, que inspirou os cantores de trio que estão aí desde sempre, o cantor que tem uma série de canções maravilhosas que celebram a alegria, o prazer que é estar na rua pulando ao som de música de carnaval.
“Lá vem o trio/na contramão/um caminhão de alegria/ pelas ruas da Bahia/da Bahia de São Salvador”(Ligação, de Osmar e Moraes Moreira)
Quando Moraes Moreira desfilava sua coleção de músicas de Carnaval, como Pessoal do Aló, Chame Gente, Ligação, Assim pintou Moçambique, Festa do Interior, o público que acompanhava o trio estava numa verdadeira catarse, pulando muito, cantando a todos os pulmões as músicas de carnaval compostas e que compunham os verdadeiros hinos do Carnaval nas décadas de 70 e 80, quando a voz de Moraes Moreira, aliado à inigualável guitarra baiana de Armandinho reinventaram o frevo pernambucano com um toque baiano, como bem dizia a famosa música Vassourinha Elétrica.
Moraes conta sua incursão no trio elétrico no seu livro “A história dos Novos Baianos e outros versos”
“Em 1975 resolvi botar meu bloco na rua
Iniciando a carreira solo, grande parte das novas composições tinham como tema o carnaval.
Logo no primeiro disco, tive a felicidade de contar com Armandinho, genial instrumentista que, já naquela altura, era a grande estrela do trio elétrico. Comecei no ato a frequentar a escola Dodô e Osmar, ou seja, a escola dos criadores do trio, porque não dizer, do carnaval da Bahia”.
O certo é que Moraes se reinventou muitas vezes. Formava uma parceria de composição com Galvão nos Novos Baianos, e teve inúmeras parcerias das mais variadas; de fausto Nilo a Marisa Monte; de Paulo Leminski a Antônio Cícero; de Evandro Mesquita a seu filho Davi.
Mas se Dodô e Osmar são os pais do trio elétrico, Moraes é o primogênito. Foi quem ensinou uma geração o que era ser cantor de trio. Contou isso no seu livro sonhos elétricos:
Modéstia à parte, eu cantei em cima do trio elétrico quando ninguém o fazia e criei um repertório de sucesso de músicas que continuam até hoje no coração e na alma do povo baiano e, por que não dizer, brasileiro. Então, realmente se criou uma escola de cantores a partir desse momento em que foi viabilizada a voz em cima do Trio Elétrico Dodô & Osmar. Praticamente fui adotado por eles”.
Tudo o que se pode dizer, depois do último carnaval de Moraes Moreira, é fazer referência a uma música que ele compôs inspirada no fim do Carnaval, na Quarta-Feira de Cinzas, no encontro de Trios, na praça Castro Alves. Quando o carnaval termina, as pessoas cantavam. “Por que parou? Parou por que?”
Virou um grande sucesso no Carnaval de 1988.
E hoje, Moraes, seus fãs perguntam: “Por que parou? Parou por que?”
“Norte da saudade” é uma parceria de Gilberto Gil com Perinho Santana e Moacyr Albuquerque, que logo na primeira frase, se revela como uma “road song”. O pé na estrada, sem noite passada, sem ninguém…
Gravada no Disco Refavela (1977), a canção sai um pouco da temática geral do disco, que é uma (re)descoberta de uma arte negra de comunidades que contribuíram para formação de novas etnias e novas culturas no novo mundo.
Ainda assim, é possível perceber esta música como uma espécie de conexão entre o disco anterior – Refazenda, em que há um resgate de elementos culturais do sertão e do interior – com a música negra, tanto que Gilberto Gil classifica esta canção como sendo um Xote-Reggae.
Em entrevista a Ana Maria Baiana, denominada “A paz doméstica de Gilberto Gil”, e que consta do seu livro “Nada Será como Antes: MPB nos anos 70, Gil revela:
“pra ser mais claro: nós estávamos andando pelo Norte, com um trabalho que era com a presença do Dominguinhos, eu, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana e outros. Ao mesmo tempo que nós escutávamos muito Django Reinhart, Bob Marley, a gente vivia todo aquele clima musical do Norte e do Nordeste, de ser Refazenda, de ser lá no habitat básico da Refazenda, de ser Campina Grande, Mossoró, Natal, João Pessoa, ser tudo aquilo e ao mesmo tempo estar discutindo sobre reggae, sobre a emergência de movimentos musicais na América, o punk, e a salsa e o reggae….”
“Então a música foi feita por Moacye e Perinho muito neste sentido, como é que era fazer um xote, uma música que fosse o som daquelas estradas que a gente estava rodando e ao mesmo tempo fosse a soma de todas estas experiências musicais vividas”
Fica evidente o clima musical que contagia músicos fazendo uma excursão.
Em primeiro lugar, dá para imaginar o ônibus com os músicos se deslocando de cidade a cidade no Nordeste;
Depois, a saudade de casa, do amor, do “meu bem”;
Por fim, como o próprio Gil relata, a integração de elementos musicais da vivência atual dos músicos (reggae) com a paisagem específica dos locais (xote).
Todo este clima fez nascer Norte da Saudade, que é uma das músicas do álbum mais presente nos dias atuais. A sonoridade, a temática, o clima, faz “Norte da Saudade” ser uma bela música, revisitada posteriormente pelo próprio Gil em 2010, no disco “Fé na Festa”, já com uma pegada de xote mais explícita.
Eu me divirto com a história de canções que surgem a partir de pequenos acontecimentos dos dia; músicas que viram verdadeiras limonadas a partir de um limão, isto é, um fragmento da criatividade que faz o caminho surgir a partir de pequenas coisas. Neste caso, me refiro à música “Solidão, que nada”, uma música de George Israel que recebeu letra de Cazuza e Nilo Roméro, o “inspirador” da canção. O baixista Nilo Romero contou a história da música, no livro Cazuza – Preciso dizer que te amo: todas as letras do poeta (Globo, 2001), que surgiu depois de um beijo de despedida num aeroporto…
“O meu nome no alto-falante do aeroporto interrompeu o beijo. Senhor Nilo Romero, voo 427 para o Rio de janeiro, embarque imediato! Tchau, a gente se vê. Ah! E o telefone? Tem um papel? tenho. Cadê a caneta? Então tá. Saio correndo, subo as escadas e, finalmente, entro no avião. Me deparo então com todos os passageiros olhando para mim com aquela cara de reprovação. Caí na real.
Procuro então com meu olhar os companheiros de banda, em busca de alguma cumplicidade. Estava atrasado, mas, afinal era por uma boa causa! Não adiantou. Estava todo mundo puto., a fim de ir logo embora pra casa. Tudo bem, então vamos sentar. Mas cadê o meu lugar? Só tinha um lugarzinho no meio, e quem me conhece sabe que odeio viajar no meio. Sou meio claustrofóbico e gosto mesmo é de corredor.
Sentado num das poltronas de corredor, observando tudo, estava Cazuza, uma das únicas pessoas de bom humor naquele avião. Ele sabia que eu detestava a poltrona do meio. ‘Nilo Romero’ (ele tinha a mania de chamar as pessoas pelo nome e sobrenome). Trocamos. Na passagem, eu deixo cair um papel do bolso. Cazuza pega, olha, me sacaneia e pronto. Ele iria chegar em casa e fazer uma de suas maravilhosas letras. Desta vez seria uma road song. Uma homenagem à vida na estrada, com todo seu glamour e vazio.
Cazuza e Nilo Romero em 1987
Cada aeroporto
É um nome num papel
Um novo rosto
Atrás do mesmo véu
Alguém me espera
E adivinha no céu
Que meu novo nome é
Um estranho que me quer
E eu quero tudo
No próximo hotel
Por mar, por terra
Ou via Embratel
Ela é um satélite
E só quer me amar
Mas não há promessas, não
É só um novo lugar
Viver é bom
Nas curvas da estrada
Solidão, que nada
Viver é bom
Partida e chegada
Solidão, que nada
A música faz referência a um encontro numa viagem, uma história que termina no aeroporto. A referência ao nome no papel, numa época em que não havia celulares para se anotar números. O nome escrito no papel é uma esperança de que o que aconteceu na viagem não cabe ali. São os encontros e desencontros que se tem em cada aeroporto, em cada hotel, em cada viagem… esses amores que são deliciosos porque são fugidios, mas que também se tornam enfadonhos quando são repetitivos…
Estes são os amores fugazes da vida da estrada… o novo nome no aeroporto, o rosto novo, o véu antigo… uma pessoa estranha, um amor de retas perpendiculares, que se encontram num ponto da viagem, e depois se afastam para não mais se encontrar… e o refrão final é meio irônico… “Solidão, que nada… ” ou, quem sabe, solidão.
Gestos de amor romântico podem ser grandiosos ou singelos. Há quem goste daqueles gestos exagerados, superlativos, ou há quem goste de algo mais simples, mas com um significado simbólico mais particular.
A história que vou contar aqui mais se adequa ao segundo caso. No Livro “Adoniran: dá licença de contar”, Ayrton Mugnaini jr. conta que o grande amor da vida de Adoniran Barbosa, talvez o maior representante do samba paulistano, foi sua segunda mulher Mathilde de Lutiss.
Assim, Adoniran pegou a corda “mi” do cavaquinho (uma curiosidade, as cordas do cavaquinho são 4 – ré/si/sol/ré. Logo, não existe a corda “mi”) e fez uma aliança e ofereceu para Mathilde, em 1942.
Assim, tendo por mote esta oferta, Adoniran pôs a letra na melodia do maestro Hervé Cordovil, mineiro de Viçosa, que então trabalhava com Adoniran na Rádio Record.
O Eu-lírico conta a história de alguém que tira uma corda de um cavaquinho e forja uma aliança, como prova de amor. A canção reflete uma situação típica de meados do século passado, quando havia um conflito entre o casamento e a boemia. Na canção, são relatados os sacrifícios feitos por ter escolhido a aliança (a mulher amada) em detrimento da boemia (as serenatas que se deixou de fazer pela corda ausente no instrumento).
Assim, na canção, o sujeito tira a corda do cavaquinho como prova de amor.
No texto disco póstumo de Adoniran, denominado o sambista – ‘Documento Inédito’ -, Mathilde relatou : “Ele fez a aliança com a corda do cavaquinho, e eu tenho essa aliança até hoje, que é verdade, ele fez uma aliança pra mim com a corda do cavaquinho”.Ima
A aliança foi divulgada pela filha do compositor, Maria Helena Rubinato, e faz parte do acervo de Adoniran Barbosa…..
Com a corda mi
Do meu cavaquinho
Fiz uma aliança pra ela
Prova de carinho
Quanta serenata
Eu tenho que perder
Pois meu cavaquinho
Já não pode mais gemer
Quanto sacrifício
Eu tive que fazer
Para dar a prova pra ela
Do meu bem querer
Ninguém nega a importância de Ruy Barbosa, como grande jurista, advogado, escritor e político. Mas ele também tinha suas quizilas e preconceitos. Um deles se refere ao episódio chamado “Escândalo do Corta-Jaca”, em 1914, quando foram revelados alguns dos seus preconceitos musicais, tudo isso motivado por Nair de Teffé, esposa do presidente Hermes da Fonseca, o qual derrotara Ruy Barbosa na eleição de 1910.
Nair de Teffé, caricaturista e tida como “moderninha”, casou-se com Hermes da Fonseca em 1913, após ele ficar viúvo em 1912 de sua primeira esposa, Orsina da Fonseca.
Nair, de uma família aristocrática (era filha do Barão de Teffé, sobrinha de Jorge João Dodsworth, Baão de Javari e Neta do Conde von Hoonholtz, era caricaturista, tendo estudado em Paris e Nice, na França, onde passou a infância e adolescência.
Tendo regressado ao Brasil com 19 anos, entre 1905-6, Nair volta ao Brasil influenciada pela Bella Époque, cheia de ideias na cabeça e inspirada nos cartunistas europeus. Assim, começa a desenhar caricaturas para várias revistas como O Malho e a Fon-Fon e os periódicos O Binóculo e A Careta.
No começo ela assinava como o pseudônimo Rian (seu nome ao contrário). Ela foi responsável, entre outras coisas, por lançar a moda de calças compridas para mulheres e montar a cavalos “como homens” (antes, as mulheres montavam a cavalos sentadas de lado.
Entusiasta da Música popular, promovia saraus no Palácio do Catete (então palácio presidencial), sendo entusiasta da música brasileira e amigo de Catulo da Paixão Cearense (músico, poeta e compositor que, apesar do nome, é de São Luiz do Maranhão).
Nair de Teffé um dia ouviu de Catulo que nas festas palacianas nunca se executava música nacional. Intrigada, ela resolveu consultar Emilio Pereira, seu ex-professor de violão, no momento morando em Petrópolis. Foi ele quem lhe apresentou o tango Corta-Jaca de Chiquinha Gonzaga.
O Corta-jaca é o nome popular pelo qual se tornou conhecido a canção “Gaúcho”. Nasceu nos palcos dos teatros musicados, onde foi dançado na cena final da opereta burlesca Zizinha Maxixe, imitada do francês por autor anônimo, representada no Teatro Éden Lavradio, em agosto de 1895.
Em 1914, era uma música conhecida nas ruas do Rio de Janeiro…
Na noite de 26 de outubro de 1914, houve um desses saraus, nos quais foram apresentados números musicais de música erudita, tendo na programação músicas de compositores como Arthur Napoleão, Gottschalk, e Franz Liszt,
Ao final do sarau, Nair pegou o violão (instrumento que então era considerado “menor”, associado à malandragem) e executou o Corta-Jaca, acompanhado de Catulo ….
Pela primeira vez na história do Brasil a música eminentemente popular fora executada na sede do governo, diante do corpo diplomático
O fato gerou muito disse-me-disse, havendo muitas críticas nos jornais e nos meios acadêmicos, pois havia quem considerasse inadequado música popular no Palácio do Catete, sede da Presidência da República.
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O que aconteceu naquela noite de 26 de outubro de 1914 vem relatado e documentado no jornal A Ruado dia 6 de novembro às vésperas da transmissão do cargo de presidente de Hermes da Fonseca para Venceslau Brás, que ocorreria no dia 15 de novembro.
“Nos salões do palácio do Catete houve no dia 26 do mês passado, uma ‘soirée’ muita fina a que compareceram os representantes do nosso corpo diplomático e da ‘elite’ carioca. Na ‘soirée’, que era a última recepção dada pelo sr. presidente da República, ‘fez-se música’, como costumam dizer os cronistas mundanos.
“‘Fez-se música’ e em grande escala. Houve piano, bandurra e até violão…
“Ao som deste último instrumento tocou-se a festejada e dengosa produção da maestrina Francisca Gonzaga — ‘Corta-Jaca’. Os jornais desde esse dia não têm cessado de criticar, de muitos e diferentes modos, a inclusão do tango magnífico no programa de uma festa diplomática no Catete.
“O ‘Corta-Jaca’ andou tanto tempo pelos arraiais da pândega e da populaça que se desmoralizou por completo, tornando-se indigno do Palácio das Águias… por muito que as produções de D. Chiquinha Gonzaga sejam tidas como a essência da música genuinamente indígena.
“E tão mal estão a considerar o pobre tango que muita gente acredita ser toda essa crítica uma simples intriga de oposição.
“O ‘Corta-Jaca’ no Catete?
“Pode lá ser isso, dizia ontem no Senado o velho Sr. Glicério ao sr. Raimundo de Miranda.
“— Esses jornais são medonhos. Pois V. não viu a maneira por que está sendo atacado o Lalau… V. conhece o Lalau e sabe que ele é incapaz dessas coisas…
“Pois se tocou sim. Tocou-se ao violão o ‘Corta-Jaca’, no dia 26, no Catete. E querem provas? A melhor prova que podemos dar é a publicação do programa da festa. Vêde. Ele encima esta notícia.
“Esta, tenham paciência, não foi obra da oposição, não, foi obra e talvez a última dele…”
Em sessão do Senado Federal, Ruy Barbosa, como dito, opositor de Hermes, solta sua verve contra a atitude da polícia, que reprimia os estudantes das Faculdades de Direito, Engenharia e Medicina, os quais colavam inúmeros cartazes com caricaturas do presidente, ridicularizando o episódio. Vejam as críticas de Ruy:
“Por que, Sr. Presidente, quem é o culpado, se os jornais, as caricaturas e os moços acadêmicos aludem ao Corta-Jaca?
“Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao pais o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!”(5. Diário do Congresso Nacional, 8/11/1914, p. 2789. Refere-se á 147ª sessão do Senado Federal, em 7 de novembro de 1914.)
Ou seja, o batuque, o cateretê e o samba eram, segundo Ruy, as mais vulgares manifestações populares, que deveriam ser afastadas das solenidades e eventos oficiais. De fato, ainda bem que Ruy Barbosa não se notabilizou por ser crítico musical…
Maria da Graça Costa Penna Burgos. Este é o nome de batismo de uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos. Gal Costa. Sempre tive curiosidade para saber a origens dos nomes artísticos de grandes ícones da Musica.
Neste caso, a história é contada por caetano , no seu livro Verdade Tropical, como Guilherme Araújo, empresário dos tropicalistas, acabou escolhendo o nome de Gal:
Uma discussão paradigmática desses conflitos sutis foi a que envolveu o nome artístico de Gal. Seu nome de batismo é Maria da Graça Costa Penna Burgos. Desde Salvador, escrevíamos Maria da Graça nos cartazes e nos programas dos shows do Vila Velha, e a chamávamos de Gracinha no dia-a-dia e, carinhosamente, de Grau. Havia e há milhares de Graus na Bahia: é o apelido carinhoso de todas as Marias das Graças ou da Graça de lá. Na verdade, no caso da nossa Gal, Maria das Graças era apenas o nome que constava na carteira de identidade e era usado como nome artístico; para todos os efeitos, seu nome era Gracinha: assim é que a apresentávamos a novos amigos. Na intimidade, no entanto, nós a chamávamos de Grau.
Guilherme achava Maria da Graça inviável como nome de cantora. Ele concordava que era belo e nobre, mas sugeria uma antiga intérprete de fados portugueses, não poderia servir para uma cantora moderna, muito menos – e aqui ele voltava a sorrir diabolicamente – para uma nova rainha do iê-iê-iê. Ele gostava de Gau. Nós também. Em primeiro lugar porque era seu nome real (isso era fundamental para nós), e depois porque era bonito e fácil de aprender, além de ser marcante, uma vez que no Rio (e em São Paulo, pelo menos) esse não era um apelido comum como na Bahia.
Guilherme Araújo, Gal e Caetano
Mas havia dois problemas: Guilherme achava vulgar e “pobre” artista de nome único (para ele era indispensável um sobrenome se o nome não fosse composto, e mesmo os nomes compostos raramente eram aceitáveis: Maria Bethânia era, é claro, uma exceção genial); e Gau, escrito assim, com u, parecia-lhe pesado e pouco feminino. Como em quase todo o Brasil Gal e Gau tem pronuncia idêntica, achamos praticamente indiferente que a grafia fosse a escolhida por ele (que se referia a uma cantora francesa chamada Francis Gal como exemplo).
Restava a questão do sobrenome. Gal Penna? Gal Burgos? Guilherme, não sem razão, preferiu Gal Costa. Este era mais eufônico do que os outros dois. Ele não ousava sair dos nomes verdadeiros por saber de nossa intransigência quanto a isso. Mas eu não gostei. Eu achava que já tinha concedido o bastante em aceitar o l, que ele aceitasse o nome único: Gal, simplesmente, era a melhor solução. Mas ele insistiu no sobrenome e eu disse que Gal Costa parecia um nome inventado, parecia nome de produto, parecia nome de pasta de dentes e, finalmente, se Gau não era suficientemente feminino, Gal era abreviatura de general. Com a subida de general Costa e Silva ao poder, em substituição ao marechal Castelo Branco, Gal Costa passava a ser homônima do segundo presidente do período militar. Mas a própria Gal, de quem afinal devia ser a última palavra, aceitou o nome e ele funcionou muito bem com a imagem pop que se criou para ela.
Até hoje me irrita ouvir alguém comentar que Gal Costa é um nome criado e que o verdadeiro nome dela é Gracinha ou Maria da Graça, e só quem não a conhecia de perto é que pensa que seu nome íntimo era Gracinha – e, no entanto, esse nome Gal Costa teve sabor de coisa inventada para mim mais do que para qualquer outro.
Hoje, que todos a chamam simplesmente de Gal, fico inteiramente em paz com essa história: é seu nome, seu nome verdadeiro, e é um nome baiano, profundamente autêntico e revelador da cultura particular do recôncavo da Bahia e da Cidade do Salvador, além de ser bonito sonoramente e o modo mais carinhoso de se a chamar. É, como queria Guilherme, internacional e pop, mas é pessoal e regional até a ponta da raiz. É, um lance de poesia profunda, feito de acaso e equívocos, que serve como síntese do drama tropicalista.
Mas na altura, eu que hoje o amo mais que ninguém, fui quem mais reagiu contra esse nome. Lembro de comentar com Rogério a discussão e ouvir dele a declaração de que sempre estaria no extremo oposto de Guilherme, de quem se sabia fatal antípoda: E impossível que o que ele planeja seja o mesmo que eu planejo, pois ele é o empresário e eu sou o desempresário”.
Contudo, e apesar de falar com alguma ira na voz, ele se esforçava para me fazer entender que ele pensava mais numa dialética necessária ao processo, ou, melhor ainda, numa complementaridade, do que numa competição que implicasse inimizade reles. O mais bonito de tudo foi que Roberto Carlos e Erasmo Carlos, atendendo a um pedido de fazer uma canção para o primeiro disco tropicalista que ela gravou, apresentaram” Meu nome é Gal”, em que, sem nada saberem das exigências de Guilherme, insistem no apelido monossilábico e, num texto escrito para ser declamado por ela, frisam que “não precisa sobrenome, pois é o amor que faz o homem”.
Tunai se foi no dia 26 de janeiro de 2019. Aos 69 anos, deixou como maior sucesso a música “Frisson”, cuja história conto aqui.
“Você caiu do céu, um anjo lindo que apareceu….”
Essa frase talvez seja a mais marcante da música Frisson, uma música que celebra a chegada de um amor arrebatador, á primeira vista.
Mas quem seria a mulher que inspirou a canção? A letra é do Poeta Sérgio Natureza. Interessante é que algumas mulheres com quem ele se relacionou acharam que a música foi feita para elas. E aí, negar ou alimentar a ilusão? Sérgio conta o episódio, no Livro “Então, foi assim?”, de Ruy Godinho:
“Ainda há pouco, apareceu uma senhora americana. Senhora hoje, mas que eu namorei quando ela estava com 20 anos. Linda e loira. Hoje uma senhora bonita e casada. Mas ela apareceu e depois de muita timidez me disse, falando em inglês:
‘ – Aquela música você fez para mim, não foi?
‘ – É, foi. Com certeza. Como é que você adivinhou?
Não, porque não custa nada. Pra bem da verdade a música foi feita um pouco pra cada uma, senão, não faz sentido. Como ela alcança todo mundo, as pessoas se veem na música. Algumas se acham as próprias musas, outras não. .
Mas quem é a verdadeira musa? Sérgio conta a história:
“Tinha um lugar aqui no Rio chamado Beco da Pimenta. Era um sobrado na rua Real Grandeza, no Botafogo. E havia shows. Um desses foi do cantor e compositor Moacyr Luz, que eu conheço há duzentos anos. Ele estava tocando e de repente começou a fazer sinais com a cabeça. .
“Ele insistiu. Eu olhei pro lado e vi uma mulher linda, um tipo totalmente diferente, parecia uma camponesa do leste europeu, com um pano na cabeça. E eu que sempre fui extremamente recatado, tímido mesmo – eu nunca fui de atacar – nesse dia não me contive. A entrada para os toaletes era comum e depois bifurcava. E era bastante ampla. Aí eu me tomei de sem-vergonhice e decidi: “Eu vou atrás dessa mulher”. Tomei coragem e fui. Quando eu a vi não conseguia falar. Ela era linda, parecia uma coisa onírica mesmo. Isso não existe. Ela me olhou e disse:
‘ – Oi’!
‘ – Oi’!
‘ – Me desculpe eu estar olhando pra você assim. Você é linda’.
‘ – Obrigada’.
‘ – Você não existe’.
‘ – Não, não sou nada disso que você está falando’.
‘ – Você realmente caiu do céu. Você é um anjo’.
‘ – Que nada. Obrigada’.
‘ – O que é que você faz’?
‘ – Eu, sou modelo fotográfico’.
‘ – Olha, eu estou assim com falta de ar’.
‘ – Que nada’.
‘ – Você deve estar com alguém’…
‘ – Não. Eu estava com uma amiga, mas ela já foi’.
‘ – Depois a gente conversa’.
Era a modelo Isabel, conhecida como Bebel. “Na verdade, partiu disso. Depois eu a encontrei, a namorei, mas eu sempre fiquei um pouco distante, porque eu achava que era meio uma criação da minha cabeça. Ela era muito linda. Uma pessoa adorável, doce. E depois, não era só a beleza. Era a simplicidade. E a vestimenta era uma coisa meio oriental. Ela estava com uma roupa que me pirou. Eu acho que é porque ela desfilava, fazia fotografias.
E a música?
“O Tunai me mostrou uma música que ele já tinha, chegou assim em cima do laço. E a letra partiu de ‘você caiu do céu, um anjo lindo que apareceu’ e foi embora. Ela era bonita e eu acho que a música passava a leveza que eu queria dizer. .
Mais tarde, Tunai acabou conhecendo a beldade. “Ele a conheceu anos depois, por uma circunstância de vida, acho que na praia e falou pra mim. Ela se apresentou: “Eu sou a Bebel. Você que é o Tunai? O Sergio fez aquela música pra mim’. Tunai confirmou que fez a música comigo”, conta Sergio.
Frisson foi gravada por Tunai no CD Em Cartaz (1984). Ivete Sangalo e grupo Ketama ( Espanha) a regravaram em português e espanhol, no CD Eu e Você (Banda Eva).
A letra:
Meu coração pulou
Você chegou, me deixou assim
Com os pés fora do chão
Pensei: que bom…
Parece, enfim acordei
Pra renovar meu ser
Faltava mesmo chegar você
Assim sem me avisar
Pra acelerar…
Um coração que já bate pouco
De tanto procurar por outro
Anda cansado
Mas quando você está do lado
Fica louco de satisfação
Solidão nunca mais
Você caiu do céu
Um anjo lindo que apareceu
Com olhos de cristal
Me enfeitiçou
Eu nunca vi nada igual
De repente…
Você surgiu na minha frente
Luz cintilante
Estrela em forma de gente
Invasora do planeta amor
Você me conquistou
Me olha, me toca, me faz sentir
Que é hora, agora, da gente ir
Como Reconvexo, um dos mais belos sambas de Caetano, foi uma espécie de resposta a Paulo Francis, que costumeiramente criticava Caetano em suas crônicas. O ápice do azedume veio quando Caetano, convidado pela extinta TV Manchete, entrevistou Mick Jagger. Paulo Francis não gostou da entrevista e escreveu o artigo “Caetano, pajé doce e maltrapilho“, na Folha de São Paulo do dia 25 de junho de 1983. Eis a crônica:
PAULO FRANCIS,de Nova York
Se a intelectualidade oficial no Brasil é representada por bacharéis como Roberto Campos, e é, não é difícil entender por que a juventude se rende a alguém como Caetano Veloso. Tudo é preferível ao pedantismo, à auto-satisfação mascarada de bonomia e humor, à cara selvagem de Campos. Crianças, como animais, sabemos “sentem” os bichos ainda que não saibam o que pretendem.
Caetano, claro é um compositor de talento, ainda que não crie músicas que sobrevivam sem ele, como Tom Jobim e Chico Buarque fazem. E é na minha opinião um cantor que sabe como ninguém unir e valorizar ritmos brasileiros e os subprodutos populares que vieram do “jazz cool” e do “bebop”, esses dois marcos da história da música popular.
Quando não o vejo, gosto. E até vendo no palco, nos tempos pós-golpe de 1964-1968, era uma presença poderosa, naquela minirrenascença que foi a reação das chamadas classes artísticas ao advento do urubu Campos e outros tecnocratas pela mão militar. Nada saiu que perdurasse dessa “mini”, talvez porque o Brasil seja um país de “máxis”. Mas a “mini” foi “legal”. Quem viveu, sabe. Mas Caetano não era então um totem. Não falava de tudo com autoridade imediatamente consagrada pela imprensa, que é mais deslumbrada do que o público em face dele. É evidente, por exemplo, que Mick Jagger zombou várias vezes de Caetano na entrevista na TV Manchete. O pior momento foi aquele em que Caetano disse que Jagger era tolerante e Jagger disse que era tolerante com latino-americanos (sic), uma humilhação docemente engolida pelo nosso representante no vídeo. E não só ele. Li duas matérias, uma na “Folha” e outra no “Jornal do Brasil”, em que as duas repórteres prostradas como sempre ficam diante de Caetano, citaram essa resposta ofensiva sem acharem nada de mais. O totem não pode errar. É Deus na carne humana, Daí a origem tribal de Jesus Cristo.
O primeiro totem foi Frank Sinatra. Não quero dizer que antes dele (década de 1940) não houvessem cantores, sem falar de estrelas de Hollywood, que o público jovem não adorasse. Mas Sinatra literalmente iniciou o fenômeno de adolescentes tendo ataques de histeria em público, para horror do filósofo Theodor Adorno, exilado nos EUA, que viu nisso uma forma de totalitarismo cultural, em que a massa se submerge sensorialmente a um ruidoso cavalheiro de microfone, como alemães caíram sob a “hipnose” de Hitler. E Adorno só pegou o início da histeria dos anos 60. John Lennon, filósofo, eros encarnado, Paul McCartney, escritor, o rock como filosofia de vida, etc. O pobre Caetano não é bem dessa corrente (que deverá chegar ao Brasil pelos meus cálculos em 1990).
Na mesma entrevista, ele fez uma pergunta que deve ter dado ao amável e brilhante Roberto D’Ávila vontade contida de matá-lo. É aquela de “como você situa o rock na história da música ?”. D’Ávila e companheiros (Fernando Barbosa Lima e Walter Moreira Salles Jr.) afinal idealizaram a entrevista, um grande evento jornalístico em TV. Caetano é uma atração. Ninguém resistiria incluí-lo. Mas essa pergunta simplesmente não se faz em televisão, ou até em jornal. É de um amadorismo total. Só serve para seminários de “comunicação” no interior da Bahia. Não é uma pergunta jornalística. Jagger começou a debochar aí. Estava delicado com a figura década de 1960 de Caetano. A moda agora é a de Jagger, cabelo curto e roupa simples, sem adornos. Começou aqui e na Europa em 1970. No Brasil chegará também nos 1990 ? E foi nesse charme perverso que Jagger, que lê tudo, não disse a Caetano que rock não é música (ver obras completas de Ellen Willis, entrevistas com Janis Joplin, etc.), mas uma manifestação de vida, ou, clichê abominável, de estilo de vida. Willis sempre se refere desdenhosamente aos “music boys”. Uma leitura ocasional como a minha é do “Rolling Stone” deixaria claro. Mas no Brasil é difícil… Sabemos tudo.
Caetano é melhor compositor e cantor do que Jagger. Mas não fez nada comparável a “The Citadel”, cuja letra terrível foi adotada pelos soldados americanos no Vietnã, como hino de desespero. E por que não pode ? Quando me lembro que Caetano, esse doce de coco é conterrâneo de Antonio Conselheiro, tremo, tremeria, se ainda conseguisse. Mas ele prefere fazer o que chamei outro dia de “maltrapilho estilizado”. Simbolizar a miséria raquítica do baiano e interiorano brasileiro, para efeito de mero consumo visual, enquanto muito agradavelmente acaricia as fantasias de amor ilimitado que fazem o narcisismo da classe média confortável no Brasil, um conforto porque pagam cerca de 100 milhões de brasileiros no nosso “Alagados” nacional. Não é que eu queira que ele faça música “enganjada”. A poesia nada faz acontecer, notou Auden, e concordo, sempre concordei, me forçando muito na época do meu engajamento, é bem diferente do que adular os privilegiados.
Jagger, é claro, é um farsante. Aquele sotaque de Londres (e não “cockney”, que é outra coisa) é pose, pois Jagger é de classe média e estudou na London School of Economics, onde se falasse assim seria rudemente corrigido. É uma pose, uma imitação de trash dos Beatles, estes sim, autenticamente proletários. Mas está zombando quando diz que subiu por sorte. Ninguém sobe por sorte. Não dá para escrever neste jornal de família como se sobe no mundo do “rock”. Jagger tem pelo menos 150 milhões de dólares, segundo meus banqueiros, mas fala de “algum dinheirinho”. Essa grana aplicada legalmente dá 1,5 milhão de dólares por mês, depois dos impostos, ou no “negro”, 1 bilhão e 200 milhões de cruzeiros por mês
Caetano não gostou. Em entrevistas, chamou Paulo Francis de “Bicha amarga”. No seu blog, pode-se encontrar uma resposta inteligente à crítica de Paulo Francis…
Incrível. Como é que o Paulo Francis escreveu que Mick Jagger tinha me respondido que era tolerante com latino-americanos — e ainda pôs um “sic”? Perguntei a Mick de sua tolerância com jovens. Ele fez uma cara safada e respondeu que era tolerante, “especialmente na Colômbia”. Bem, a cara safada foi dirigida ao dono da casa, Julio Santo Domingo, um colombiano que, amigo de Walter Salles, tinha emprestado o apartamento nova-iorquino para a entrevista. Walter era o diretor. Mas quem me convidou para ajudar na conversa com Jagger foi Roberto D’Ávila. Sinceramente, pensei que a cara maliciosa de Mick sugeria sexo: Julio era muito bonito. Mas Waltinho me disse que não (claro): sugeria droga. Colômbia nos anos 1980, você sabe. Mas Francis precisava dizer que Jagger nos humilhara e que eu não tinha sido valente o suficiente para revidar o golpe: ele queria que o leitor aderisse ao rancor contra mim, e para isso apelava ao fácil nacionalismo ressentido. D’Ávila, comigo, chiou do que Francis escrevera e disse que ia responder de público. Nunca vi tal resposta.
Eu não guardei o artigo. Reli agora. Na altura, li a bordo de um avião a caminho da Europapara uma turnê longa. Mostrei a Guilherme Araújo. Rimos, protestamos, e eu, como sempre, tentei sem sucesso dormir no voo. Cheguei a Lisboa exausto e no dia seguinte já estava num palco. No fim da excursão o assunto já era algo remoto. De volta ao Brasil, percebi que não era tão remoto assim. Demonstrei minha indignação caracterizando Francis como bicha travada. Ele respondeu. Primeiro: que eu devia ser infeliz, pois usava como xingamento minha própria condição. Comentei, numa entrevista, que Francis não entendia nada de bicha. Depois: “Fiz uma crítica cultural a Caetano e ele responde com ofensas: puro Brasil.” E eu: Francis é quem me ofendeu, e eu fiz, em resposta, uma crítica cultural à figura dele: “bicha travada” era análise de tipo encontradiço em sua geração. Ele preferiu não entender que o núcleo pejorativo era “travada”, não “bicha”.
Li outros textos do livro antes desse. Queria sentir o artigo em meio ao que ele escrevia então. Escrevendo sobre mim ele me mostrou demais os defeitos de caráter que se podia notar em quase todo o resto. Por exemplo, ele descreve minha música como fusão ineditamente bem-sucedida de ritmos brasileiros com bebop e cool jazz. Numa frase, ele finge que conhece muito bem o que desconhece. E termina sendo injusto com Tom Jobim. Ninguém fez melhor do que Jobim o que ele descreve. Em outro trecho, ele corrige Deus e o mundo que dizem que Mick imita sotaque cockney: seria sotaque londrino, cockney “é outra coisa”. Que outra coisa? Cockney é o dialeto popular de Londres. Por muito tempo significou simplesmente “de Londres”. Dizer que rock não é música era lugar-comum. Francis faz de conta que eu não sabia. Eu não era (e não estava ali) como jornalista. A certa altura ele afirma que sou melhor compositor do que Jagger, mas pergunta por que eu não fiz “Citadel”, cantada por soldados no Vietnã. A resposta simples seria: porque o Brasil não invadiu o Vietnã.
A força de dominação da cultura anglófona é assunto que pervade tudo. Ninguém mais esmagado por essa força do que o próprio Francis. Ficava no Rio sonhando que conversava no Algonquin. Fez esforço para desprovincianizar o ambiente cultural brasileiro. Tema também meu. Desde sempre. Mas eu não tive oportunidade de bater cabeça para ele. Simplesmente não calhou, no ritmo de sucessão de gerações, de termos um encontro amigável. Glauber, que o arrasou na Bahia, cooptou-o aqui. O Algoquinho carioca grilou com o surgimento de minha geração: Millôr contra Chico, “Pasquim” contra “baihunos”. Zé Agrippino, em 1968, achava Francis um atraso de vida. Seus esforços de aggiornamento me atingiram em Santo Amaro, em 1959, na revista “Senhor”. Devo muito a Francis.
Passou parte da juventude em Nova York: natural que visse em mim o tabaréu. Ele percebia que entendo mal o inglês falado. Algo da crítica seria utilizável. Até por mim. Mas o que há de bebop ou cool em “Tropicália”, “É proibido proibir” ou “Nine out of ten”? E ele me descreve talvez com imagens já então velhas da paródia de grupo que foi Doces Bárbaros. Depois da entrevista, Marina Schiano fez um jantar para mim, com Mick, Bianca, Jerry Hall, Warhol. Este me perguntou se eu não o queria para fazer a capa do meu novo disco. Era “Uns”. Respondi que já tinha capa (de Oscar Ramos), em que apareço de cabelo curto e terno. Mick Jagger nunca teve cabelo curto. O fato de ele ser inglês encandeia Francis. Jovens paulistanos com veleidades de gênios da crítica o seguiriam como cães alemães.
No artigo sobre mim ele está dando adeus às agressões a Roberto Campos e acenando pela última vez para quem chora com frases como “adular os privilegiados”. Dois anos depois ele saudava Campos como um guerreiro. Um pouco mais e ele louvava Collor por ser “bonito e branco”.
Mas o retrato de Jango, as análises que juntam Schumpeter e Lenin, a ligeireza com que narra as conversas de Golbery com Ênio Silveira, toda essa competência periodística compensa o desconforto da prosa de seus romances, embora não dê para justificar as tiradas racistas. Sou vítima de uma delas. Ele escreveu que o Rio começou a decair quando Bethânia substituiu Nara no Opinião e, com ela, “veio essa gente”.
Tropicalistas são referência. Francis não emplacou nem uma frase no “NYT”.
Terminando a saga sobre a histórica briga entre Paulo Francis e Caetano Veloso, segue aqui uma reportagem de Ruy Castro sobre o assunto. Durante a polêmica, Ruy Castro escreveu a reportagem que segue abaixo, com histórias divertidas.
QUEM FAZ MAIS A SUA CABEÇA: PAULO FRANCIS OU CAETANO VELOSO
Por RUY CASTRO
8 de outubro de 1983 – Ilustrada Com colaboração de Âmbar de Barros
É a polêmica do século. Ou a deste fim de semana – por aí. A cidade está acompanhando, entre perplexa e apaixonada, a briga entre o jornalista Paulo Francis, correspondente da Folha em Nova York, e o cantor e compositor Caetano Veloso, pelas páginas deste caderno. Há algumas semanas, Paulo Francis criticou a entrevista que Caetano realizou com Mick Jagger no programa “Conexão Internacional”, da TV Manchete, classificando de reverente e submissa a postura de Caetano diante do complacente líder dos Stones.
Caetano não gostou e, numa entrevista coletiva nesta terça-feira, rompeu publicamente com Francis, a quem sempre admirou, chamando-o de “bicha amarga” e “boneca travada”. A resposta de Paulo Francis foi publicada na edição de quinta, em que ele devolve a Caetano os epítetos e lamenta que um argumento cultural seja respondido com insultos.
Tsk, tsk. Mas a briga existe e não se fala em outra coisa. Espera-se que ela sirva pelo menos como base de discussão sobre o conceito do intelectual no Brasil, a liberdade de expressão e a maior ou menor qualidade da nossa atual produção artística. Afinal, ambos têm mais do que cacife para isso.
São pessoas corajosas, inteligentes e talentosas. E estão entre os intelectuais e artistas que mais fizeram cabeças neste país nos últimos 20 anos. Quem faz mais a sua cabeça: Paulo Francis ou Caetano Veloso? Esta foi a pergunta que a Folha fez a várias pessoas influentes. Eis as respostas. (E, ah sim, antes que eu me esqueça: nenhum dos dois é bicha.)
AUGUSTO DE CAMPOS, poeta e tradutor: “Não tem dúvida: sou 100% Caetano”.
JÚLIO MEDAGLIA, maestro e um dos inventores do tropicalismo: “Neste momento, Paulo Francis é mais criativo. Ultimamente, Caetano só tem feito boleros”.
DÉCIO PIGNATARI, poeta e professor de literatura: “Os dois fazem igualmente a minha cabeça. Paulo Francis é um homem claramente ideológico e às vezes incursiona no terreno artístico. Caetano é o contrário”.
MINO CARTA, jornalista e editor da revista Senhor: “Com respeito por ambos, nem um nem outro”.
GILBERTO BRAGA, autor de novela “Louco Amor”: “Pela emoção, Caetano. Pela razão, Paulo Francis. Mas, pelo que andam dizendo um do outro, eu poria os dois de castigo durante uma hora”.
CARLOS BRICKMAN, jornalista, editor de economia da Folha: “Entre os dois, graças a Deus fico com Millôr Fernandes”.
HENFIL, cartunista: “Paulo Francis. Pela sabedoria, pelo compromisso com as outras pessoas e pelo seu orgulho de ter sido preso por suas idéias, enquanto Caetano se envergonha disso. Caetano diz que não lê jornais, mas é capaz de citar o dia e a página de qualquer jornal que tenha falado dele, mesmo que seja a ‘Gazeta de Nanuque’. E eu gosto mais da música do Francis”.
BELISA RIBEIRO, apresentadora do programa “Canal Livre”: “Caetano. Porque, por ele, dá para a gente se apaixonar”.
ZÓZIMO BARROZO DO AMARAL, colunista: “Paulo Francis. Eu faço parte da macaquice do auditório dele”.
FÁBIO MAGALHÃES, secretário da Cultura municipal: “Nenhum dos dois”.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, filósofo e professor: “Os dois não fazem nem o meu pé, quanto mais a minha cabeça”.
CARLITO MAIA, publicitário: “Quem faz a minha cabeça é o Goulart, que me corta o cabelo”.
FLÁVIO GIKOVATE, psicanalista: “Caetano Veloso. Sem comentários”.
JOÃO CÂNDIDO GALVÃO, jornalista, editor-assistente de Veja: “Paulo Francis, porque é mais paradoxal. Caetano anda muito óbvio”.
SÓCRATES, jogador do Corinthians e da Seleção: “Admiro os dois como profissionais destacados em suas respectivas áreas, mas nenhum deles faz a minha cabeça. Aprecio informações do Paulo Francis, gosto de muitas músicas do Caetano, mas nenhum deles influi na minha maneira de pensar ou agir”.
CASAGRANDE, centroavante do Corinthians: “Caetano Veloso. É um poeta. Gosto também do comportamento dele, que é agressivo com a sociedade. Aliás, como o meu”.
MARÍLIA GABRIELA, apresentadora do programa “TV Mulher”: “Quando eu quero poesia, prefiro Caetano. Quando quero bom jornalismo, prefiro Paulo Francis”.
JOÃO DÓRIA JR., presidente da Paulistur: “Nenhum dos dois. Mas eu prefiro a doçura musical do Caetano à acidez redacional do Paulo Francis”.
ANGELI, cartunista: “Eu misturo os dois. Pego o lado doce do Paulo Francis e o ferino do Caetano”.
GERALDO MAYRINK, jornalista, editor-assistente de IstoÉ: “Paulo Francis – porque, pelo menos, nunca pediu a minha cabeça, como fez o outro. Além disso, Francis se tornou um dos maiores entertainers do nosso show business”.
EDUARDO MASCARENHAS, psicanalista: “Caetano, claro, porque tem mais humor, talento e arte que o sr. Paulo Francis. Caetano já me faz a cabeça há 15 anos. Já o sr. Paulo Francis, no que respeita a subjetividade, é extremamente primário. Mas eu não sei como andam os interiores do sr. Paulo Francis”.
WASHINGTON OLIVETTO, publicitário: “Que país mais chato este, em que os inteligentes brigam e os burros andam de mãos dadas!”.
ANTONIO MASCHIO, ator e proprietário do Spazio Pirandello: “Paulo Francis, sem dúvida. É um homem do mundo. Caetano, quando muito, é um homem do Brasil. Se todas as bichas do Brasil fossem ‘travadas’ como o Paulo Francis, este país estaria muito melhor”.
CLODOVIL, costureiro: “Eu, hein? Nesse angu, eu não me meto!”.
APARÍCIO BASÍLIO DA SILVA, escultor e perfumista: “Paulo Francis. É um conselheiro literário formidável”.
PIETRO MARIA BARDI, diretor do Museu de Arte de São Paulo: “Na minha idéia, é Paulo Francis, hoje o maior, mais atual, mais vivo, mais inteligente e mais inventivo escritor brasileiro”.
TÃO GOMES PINTO, jornalista da Folha: “Caetano Veloso”.
CAIO TÚLIO COSTA, jornalista, secretário da Redação da Folha: “Entre a razão e a emoção, eu fico com Paulo Francis”.
MARTA SUPLICY, sexóloga: “Eu gosto dos dois, mas nenhum faz a minha cabeça”.
TAVARES DE MIRANDA, colunista social da Folha: “Quem faz a minha cabeça é Jesus Cristo”.
RUBENS GERCHMAN, artista plástico: “Paulo Francis. Ele está há anos no centro da ação –sempre no front”.
JOSÉ GUILHERME MERQUIOR, diplomata, ensaísta e acadêmico: “Não gosto da expressão ‘fazer a cabeça’. Acho-a alienada. Quem faz as minhas idéias, com muita dificuldade, sou eu mesmo. Não tenho nada a considerar sobre esses dois personagens”.
THOMAZ FARKAS, produtor cinematográfico e empresário: “Os dois me fazem a cabeça, cada qual do seu jeito”.
HELENA SILVEIRA, jornalista e colunista da Folha: “Quem me faz a cabeça é Anthonio Carlos, meu cabeleireiro. Admiro Paulo Francis como colega, gosto de Caetano com restrições. Guru é coisa que já era”.
JOSÉ ROBERTO AGUILAR, artista plástico: “Caetano é meu amigo, moramos três anos juntos em Londres. Mas o Francis também é genial e seus livros são monumentais. O problema do Francis é que ele é de uma geração que só ouve jazz e música clássica, e passou a largo da geração do rock. Assim, fica reduzindo tudo a uma coisa de ‘lumpenproletariat’. Mas o rock não é só isso. O rock já tem sua literatura e sua cultura”.
CARLOS VOGT, lingüista e professor da Unicamp: “Gosto da música do Caetano e acho divertida a destemperança com que escreve Paulo Francis”.
JOSÉ MIGUEL WISNIK, professor de literatura: “Cada um de nós faz a sua própria cabeça, mas as sete faces do Caetano ressoam mais em mim do que a cabeça de papel do Paulo Francis”.
JULIO BRESSANE, cineasta: “Minha cabeça é feita pelos dois. A região que Caetano ocupa, que é a da poesia e onde habito, é a maior. Mas o Paulo Francis, que é hoje o maior articulista do Brasil, também ocupa uma região imprescindível. Inclusive já começamos a trabalhar juntos numa adaptação para o cinema do seu romance ‘Cabeça de Papel'”.
ZIRALDO, teatrólogo e humorista: “Sou Caetano. Mas não assumo”.
MILLÔR FERNANDES, pensador e humorista: “Olhem, não me meto em briga de baianos”.