“Meu som te cega, careta, quem é você…”
A letra de Reconvexo, um belo samba de roda de Caetano Veloso gravado por Maria Bethania, revela um orgulho de ser brasileiro, de ser baiano, de ser de uma parte do mundo que é “out“, e que, pelo mesmo motivo, é “in“.
A canção estabelece uma dicotomia entre o “eu” – que é uma séria de referências baianas, brasileiras e universais – e o “você”, o careta, “que não que não e nem disse que não”. Assim a identidade do eu-lírico é construída pelos sons, pelas imagens, pelas referências, em contraposição àquilo que o “careta” não consegue perceber.
A música faz muitas referências baianas (a novena de dona Canô, a elegância sutil de Bobô, o Olodum balançando o Pelô), brasileiras (o mendigo Joãozinho/Beija Flor – em referência ao célebre enredo “ratos e urubus- larguem minha fantasia” de Joãozinho Trinta na Beija-Flor de 1989, a destemida Iara da Amazônia), e universais (A risada de Andy Warhol, o suingue do Francês da Guiana Henri Salvador, o americano negro com brinco de ouro na orelha).

Caetano e Paulo Francis vez ou outra protagonizavam polêmicas. Francis vivia em Nova Iorque e tinha um estilo sarcástico/irônico sobre o Brasil.
Então, ao reafirmar ao todo tempo o que é Recôncavo (fazendo referência à região da Bahia no entorno da Baía de Todos os Santos), e ao “careta” que sequer pode ser Reconvexo (um neologismo, como uma forma de dizer que ele sequer pode ser o outro lado, a antítese do que é o Recôncavo), a música faz uma homenagem a “Gita” de Raul Seixas (que viria a falecer naquele ano) e a “Fruta Gogóia”, canção folclórica gravada por Gal Costa no famoso disco “Fa-Tal: Gal a todo vapor”. A estrutura do “eu sou, eu sou eu sou” como se fosse uma lista tem inspiração em ambas as canções

Caetano, no livro “Sobre as letras”, organizado por Eucanaã Ferraz (Cia das Letras, 2003), explica a canção:
Compus para Bethania gravar. Eu estava em Roma quando um dia acordei e vi os carros empoeirados, todos cobertos de areia. Perguntei: ‘Gente, o que tem nesses carros aí?’. Uns italianos, amigos meus, responderam: ‘isso é areia que vem do deserto do Saara, que o vento traz’. Com essa imagem, comecei imediatamente a compor a música.
“A letra fala em Gita Gogóia, porque a letra de Gita diz ‘eu sou, eu sou, eu sou’… e porque a a canção ‘Fruta Gogóia’ também se estrutura do mesmo modo eu sou, eu sou, eu sou’.
A letra é meio contra o Paulo Francis, uma resposta àquele estilo de gente que queria desrespeitar o que era brasileiro, o que era baiano, a contracultura, a cultura pop, todo um conjunto de coisas que um certo charme jornalístico, tipo Tom Wolf, detestava e agredia.

Segue a letra e o belo samba de roda, que descarta quem “não é recôncavo e nem pode ser reconvexo”
eu sou a chuva que lança
areia do Saara
sobre os automóveis de Roma
sou a sereia que dança
destemida Iara, água e folha
da Amazônia
eu sou a sombra da voz
da matriarca da Roma negra
você não me pega
você nem chega a me ver
meu som te cega careta
quem é você?
que não sentiu o suingue
de Henri Salvador
que não seguiu olodum
balançando o pelô
e que não riu com a risada de
Andy Warhol
que não que não
e nem disse que não
sou um preto norte-americano
forte com um brinco de ouro na orelha
sou a flor da primeira música
a mais velha e a mais nova
espada e seu corte
sou o cheiro dos livros desesperado
sou Gita Gogóia
seu olho me olha
mas não me pode alcançar
não tenho escolha careta
vou descartar
quem não rezou a novena de
D. Canô
quem não seguiu o mendigo
Joãozinho Beija-flor
quem não amou a elegância sutil
de bobô
quem não é recôncavo e nem pode
ser reconvexo
quarta 09 junho 2010 21:56 , em MPB