Chico e Caetano falam sobre Elza Soares

No dia 20 de janeiro de 2022 falece Elza Soares. Talvez seja impossível classificar seu estilo, sua voz, sua vida. A história de Elza é única. De tantas homenagens que recebeu, vale aqui a transcrição dos textos de Chico Buarque e Caetano Veloso sobre a cantora, quando ela fez 90 anos:

Músicas, vídeos, estatísticas e fotos de Elza Soares | Last.fm

Se acaso você chegasse a um bairro residencial de Roma e desse com uma pelada de meninos brasileiros no meio da rua, não teria dúvida: ali morava Elza Soares com Garrincha, mais uma penca de filhos e afilhados trazidos do Rio em 1969. Aplaudida de pé no Teatro Sistina, dias mais tarde Elza alugou um apartamento na cidade e foi ficando, ficando e ficando.

Se acaso você chegasse ao Teatro Record em 1968 e fosse apresentado a Elza Soares, ficaria mudo. E ficaria besta quando ela soltasse uma gargalhada e cantasse assim: “Elza desatinou, viu.”

Se acaso você chegasse a Londres em 1999 e visse Elza Soares entrar no Royal Albert Hall em cadeira de rodas, não acreditaria que ela pudesse subir ao palco. Subiu e sambou “de maillot apertadíssimo e semi-transparente”, nas palavras de um jornalista português.

Elza Soares: Chico Buarque e Caetano Veloso escreveram textos inéditos nos  90 anos da cantora - Jornal O Globo

Se acaso você chegasse ao Canecão em 2002 e visse Elza Soares cantar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, ficaria arrepiado. Tanto quanto anos antes, ao ouvi-la em “Língua’’ com Caetano.

Se acaso você chegasse a uma estação de metrô em Paris e ouvisse alguém às suas costas cantar ‘Elza desatinou’, pensaria que estava sonhando. Mas era Elza Soares nos anos 80, apresentando seu jovem manager e os novos olhos cor de esmeralda.

Se acaso você chegasse a 1959 e ouvisse no rádio aquela voz cantando “Se acaso você chegasse’’, saberia que nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares.

Caetano, por sua vez, fez a seguinte homenagem:

Elza Soares é uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu. Quando apareceu cantando no rádio, era um espanto de musicalidade. Logo ficaríamos sabendo que ela vinha de uma favela e desenvolvera seu estilo rico desde o âmago da pobreza.

Elza Soares: Caetano Veloso lamenta morte da cantora e amiga: 'Fui fã'

Ela cresceu, brilhou, quis sumir, não deixei, ela voltou, seguiu e prova sempre, desde a gravação de “Se acaso você chegasse’’ até os discos produzidos em São Paulo por jovens atentos, que o Brasil não é mole não.

Celebrar os 90 anos e Elza é celebrar a energia luminosa que os tronchos monstros não conseguirão apagar da essência do Brasil.

Depois de tão belas homenagens, só se pode dizer que Elza sempre será uma estrela da música e da vida.

Porque cantar, parece com não morrer, é igual a não se esquecer, que a vida é que tem razão

O Trecho é de uma música cantada por Ednardo (composição Ednardo/Climério), cujo título é “Enquanto eu engomo a calça”.

A música parece uma pequena história cantada enquanto o eu lírico engoma sua calça. Cantar parece como algo necessário à sobrevivência… afinal,  o autor diz que cantar parece com “não morrer”. Não diz que cantar é viver, mas sim uma forma de permanecer vivo.

Em seguida, se faz a referência a um “voar maneiro”, que não foi ensinado pelo passarinho, mas pelo pelo olhar do seu amor….

Mas, ao final, há um lamento da vida de artista, que perde um amor para a distância (São Paulo), e o outro amor, pela segurança (representada pelo dentista). 

O interessante é que a canção, pelo que consta, foi feita em menos de 5 minutos, quando Climério estava passando férias na casa de Ednardo, enquanto Rosane (esposa de Ednardo) estava passando (engomando) a calça que estava amassada.

A história é contada no volume 2 do livro de Ruy Godinho, “Então, foi assim?”

ENTÃO FOI ASSIM? (Vol. 2) - Ruy Godinho - A melhor seleção da música  brasileira!

Conta Ednardo:

Em 1978 eu estava passando férias em Fortaleza e convidei o Climério para ficar uns dias junto com a gente. Ele foi e ficou hospedado na minha casa. Coincidiu do Dominguinhos estar fazendo shows na região (…) E coincidiu também que o apartamento em que ele morava era na frente do meu”

E nós pegamos uma aposta naqueles 20 dias de férias para  ver quem fazia mais músicas.

Letras de canciones de EdnardoEdnardo

No final de um destes dias, Ednardo convidou Climério para tomar uma cervejinhas .

“A gente ia saindo, a Rosane, minha mulher, disse assim: ‘Ednardo tua calça está toda amassada. Parece que saiu de dentro de uma garrafa. Deixa eu engomar aqui’ -que lá  no Nordeste o povo diz engomar para o ato de passar a roupa.  Ai eu concordei e permiti que ela engomasse’

Enquanto Rosane engomava a calça, Ednardo afirma que transcorreu o seguinte diálogo.

– Climério, não repare não, mas enquanto engoma a calça vamos fazer mais uma música’?

-Mas uma bem curtinha, fácil de cantar:

-Por que cantar’? ‘

-Por que cantar? Porque parece com não morrer, igual a não se esquecer  que a  vida é que tem razão: ‘

‘Aí, pronto. A música saiu em dois e meio a três minutos. Foi uma das músicas mais rápidas que eu já vi, em melodia e letra. Até o arranjo a gente já pensou na hora. Foi assim que nasceu’:

Ednardo - Ednardo (1979) - Estilhaços Discos

“Tinha um piano na sala, um violão e ali mesmo a gente fez. Essa é a história que eu lembro” conta Climério

Climério Ferreira - Geleia TotalClimério Ferreira

Ednardo, todavia, narra a inclusão da parte final da letra, que só foi introduzida depois.

“‘Tem um trechinho dela que a gente não tinha feito na hora. Eu achei a música muito curta.  E como eu estava lendo o livro Bar do Pedro e Outras Canções,  e eu encontrei esta pérola: ‘ah, mas como é triste vida de artista, depois de perder Vilma pra São Paulo, perder Maria Helena prum dentista.  Incluí e gravei sem o Climério saber. Ele já tinha viajado. Quando eu lancei o disco, já em 1979, eu mandei para ele, que ficou surpreso. “Mas rapaz, você botou outra coisa aqui ? Pois e, mas é sua também.

Em entrevista ao site farofafa, em setembro de 2021, Climério contou de onde vem Vilma e Maria Helena:

Não tinha esses versos na canção original. Ednardo acrescentou para me fazer uma surpresa. Quando eu trabalhava no INPE fiz uma canção chamada “Baderna” – na verdade, uma brincadeira com a despedida dos amigos de projeto. Vilma era a gerente do projeto e, muito competente que era, foi contratada pela editora Abril, indo, portanto pra São Paulo; e, no mesmo tempo, Maria Helena – uma das produtoras de rádio do nosso projeto – casou-se com o dentista que nos atendia em São José dos Campos. Sentindo que o nosso projeto estava sendo desmontado com a saída das pessoas, fiz ‘Baderna’”:

“Baderna” (Climério Ferreira)

Foi a maior baderna

Quando Vilma foi embora

A vida perdeu a perna

A saudade deu o fora

Apagou-se o riso largo

Na boca de quem sorria

E eu fui tomar um trago

No mesmo dia

Ai, pobre de nós

Nós que só vivemos de ilusão

Que temos que ouvir rádio sem voz

E sem imagem assistir televisão

Ah, mas como é triste

Essa nossa vida de artista

Depois de perder Vilma pra São Paulo

Perder Maria Helena prum dentista.

E assim surgiu um clássico da MPB, que continua a ser cantada … afinal, cantar parece com não morrer….

 

Arrepare não
Pois enquanto engomo a calça eu vou lhe cantar
Uma história bem curtinha fácil de contar
Porque cantar parece com não morrer
É igual a não se esquecer
Que a vida é que tem razão
Porque cantar parece com não morrer
É igual a não se esquecer
Que a vida é que tem razão

Esse voar maneiro foi ninguém que me ensinou
Não foi passarinho
Foi olhar do meu amor
Me arrepiou todinho quando olhou meu coração

Ai, mas como é triste
Essa nossa vida de artista
Depois de perder Vilma pra São Paulo
Perdi Maria Helena pro dentista

domingo 15 agosto 2010 05:44 , em MPB

Fontes:

GODINHO, Ruy. Então, foi assim? vol. 2. Abravideo, 2010

https://farofafa.com.br/2021/09/23/climerio-ferreira/