Sangue Latino

O ano, 1973. O Brasil vivia o auge da Ditadura Militar, quando surgia na cena do rock brasileiro, uma banda pós tropicalista que revolucionou a Música. Falo dos Secos & Molhados, um projeto de João Ricardo, aos quais aderiram Gerson Conrad e o então desconhecido Ney Matogrosso, que era mais ator do que cator, mas tinha uma voz de tenorino diferenciada.

A banda se notabilizava pelas performances. Todos se apresentavam maquiados, e Ney Matogrosso cantava com gestos, rebolados e olhares que provocavam a plateia… quem ouvia a canção no rádio tinha dúvidas se quem cantava era homem ou mulher. Ney cantava com o torso nu. Tudo isso causou na época muita polêmica.

Toda esta forma de apresentação era pano de fundo para um conjunto de letras com uma forte conotação política, crítica social, que abordava desde racismo a violência policial, de mensagens contra a guerra nuclear, e inspitando-se em textos de poetas como Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes. Anna Maria Bahiana comenta:

Como música e como grupo, o Secos & Molhados calca-se em três elementos básicos e saudavelmente inovadores, dentro do panorama nacional: a bela e aguda voz de Ney Matogrosso […], o espetáculo altamente visual, com maquiagem e movimentação até mesmo sexualmente ambíguo, e a inclusão de textos de poetas – Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Solano Trindade, Vinícius de Moraes – em letras de canções. Nenhum desses elementos é gratuito. Estavam todos “pensados e repensados” no espírito de João Ricardo.

Numa entrevista a Marcelo Pinheiro, em 2012, João Ricardo falou:

“A necessidade é a mãe da invenção e era a época das bandas progressivas, que tinham um aparato sonoro poderoso. Éramos o contrário disso: despojados musicalmente, mas tínhamos referências teatrais e começamos a inventar saídas para não perder terreno, como usar roupas extravagantes e maquiagem. Percebemos que quanto mais nos aventurávamos naquilo que era bizarro, mais as pessoas ficavam estupefatas e atraídas. Alice Cooper fazia sucesso, nos Estados Unidos, o David Bowie, na Inglaterra, e plasticamente levamos as ideias do glam e do glitter ao extremo. Tivemos a sorte de envolver em torno de nós milhões de pessoas de todas as camadas sociais, de todos os credos, cores e idades, algo que não aconteceu nem ao Bowie nem ao Alice Cooper.”

Assim, com o tronco nu, a cara pintada e a voz diferenciada de Ney Matogrosso, foi foi lançada a canção “Sangue Latino”, com direito a clipe no “Fantástico”. Foi a música que abriu as portas para o grupo, numa letra de Paulinho Mendonça para a música de João Ricardo.

Paulinho Mendonça, numa entrevista a Rodrigo Faour, afirmou que aquele momento político em que o Brasil vivia gerava “uma obrigação de ter que se manifestar, que levou a um momento de muita qualidade, muita coisa importante”. Mas que também, pelo advento da censura, “Em termos de poesia, a gente teve que desenvolver os processos metafóricos“.

O interessante é que as mensagens do disco como um todo, com muita crítica social, acabou ficando em segundo plano, pois o que escandalizava era a performance. Tanto que, como conta na sua biografia (Vira-lata de Raça, Ramon Nunes Mello, Tordesilhas, 2018), quando os Secos & Molhados foram se apresentar pela primeira vez na TV Globo, recomendaram que Ney não olhasse diretamente para a câmera.

Mas, para além de toda a repercussão da banda, é certo que, quando se analisa a música “Sangue Latino”, vem logo à mente um famoso livro de Eduardo Galeano, “As veias abertas da América Latina”, escrito em 1971.

O livro retrata a história da América latina desde o período da colonização até a contemporaneidade, retratando a exploração econômica, a dominação política e o sangue derramado dos nativos e dos explorados. A canção “Sangue Latino pega este mote, e faz o lamento do povo subjugado na América Latina.

Em artigo de Suelen Santana Silva e Pedro Marques Neto (Secos & Molhados: para ouvir, olhar e comer), a canção é tida como um desabafo, um grito do povo explorado da América Latina. Embora o sangue do povo não seja propriamente latino (pois é sangue índio, negro, mestiço), a referência é ao sangue do exlporado. Dizem os autores:

A canção concentra em si o próprio legado da colonização, sendo uma espécie de sangue cultural e artístico desse processo. Trata-se, assim, de uma confissão em primeira pessoa, no tempo pretérito perfeito, como podemos observar já na primeira palavra de sua letra: “Jurei” e, em seguida, “rompi”, “quebrei”, “traí” e “lancei”, que, em sequência, compõe outro jogo rítmico e de rima.

É possível estabelecer uma personificação do continente, na exploração dos povos originários da América, desde o processo de colonização, como também a difícil realidade da América Latina, em que havia ditaduras militares no Paraguai na década de 50, no Brasil, Bolívia, Peru e Argentina na década de 60, além de Chile e Uruguai na década de 70.

E assim quando a letra afirma “Jurei mentiras e sigo sozinho”, pode se referir às juras aos deuses e costumes ocidentais, no processo colonizatório, como podem ser também as delações de companheiros obtidas mediante tortura. As mentiras para salvar a si próprios, a mentira que gera solidão…

Quando, no segundo verso, a expressão “assumo os pecados” ganha um ar de confissão. Confissão dos pecados dos cultos aos deuses pagãos, ou será os pecados dos crimes políticos? Percebe-se que justamente o sentido metafórico da canção permitira uma interpretação sobre o passado, bem como ao presente da época.

O autor da letra, Paulo Mendonça (na já citada entrevista a Rodrigo Faour), disse, em 2020, que escreveria a mesma letra com a mesma emoção e o mesmo sentimento.

No verso “Os ventos do Norte não movem moinhos”, é muito clara uma visão decolonialista, em que os ventos vindos do hemisfério norte não movem moinhos, seja porque quem trabalhava, quem moviam os moinhos era o povo explorado da América, como também quem inspira não são os colonizadores.

Mas, diante da exploração, somente resta o gemido. De dor. De exploração. Mas que, como se verá adiante, de quem não se entrega.

“Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos, meu sangue latino, minha alma cativa”. Depois do gemido, a constatação da vida, dos mortos, dos caminhos tortos… e a alma que resta cativa, como se a história dos povos da Américsa Latina tivesse sido distorcida, ceifada e capturada.

No referido livro de Eduardo Galeano, há o relato de como os conquistadores espanhóis como Hernán Cortés seguiram dizimando os astecas com espadas e tiros de arcabuz. O Império sucumbia com suas armas primitivas, e os povos originários nada podiam fazer. Lhes restava gritar, jogar suas lanças no ar, ver suas mulheres serem violentadas e seus filhos mortos.

No entanto, na parte seguinte, há a luta, a resistência, afinal, “E o que me importa é não estar vencido”. E por isso, mesmo tendo rompido tratados, tradições ritos, ancestralidade, a lança continua viva, jogada no espaço, e junto com ela um grito, um desabafo, e, afinal de contas, pode-se perder a terra, a língua, a religião, mas o sangue latino resiste.

No fim, sangue latino é um libelo de resistência à opressão, de quem, mesmo oprimido, cativo, subjugado, não se dá por vencido, e deixa viva a esperança.

Numa entrevista, João Ricardo fala sobre a composição:

‘Sei lá… apesar de ser português, moro há muitos anos no Brasil. Sangue Latino nasceu de um estouro: um dia estava lendo uns poemas de um amigo e li aquilo. Puxa, na mesma hora peguei a viola e pintou a música. Nasceu assim. E esta coisa latina sempre pinta nos meus discos” 

Fontes:

BAHIANA, A. M. Nada será como antes: MPB anos 70 – 30 anos depois. 1a ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2006

http://taratitaragua.blogspot.com/2021/07/joao-ricardo-ex-secos-molhados-lanca.html

Secos & Molhados: para ouvir, olhar e comer (Suelen Santana Silva e Pedro Marques Neto)

SANGUE LATINO NO PALCO: NUANCES DE DECOLONIALIDADE NA ARTE DE NEY MATOGROSSO (Roberto Remígio Florêncio e Pedro Rodolpho Jungers Abib)

https://marceloxpinheiro.medium.com/uma-noite-com-secos-molhados-b384ce229200Re

Revista Brasileiros, MARÇO 2012

Festa do Interior – Como o atentado do Riocentro virou uma grande festa de São João

Festa do Interior até hoje é uma das músicas mais lembradas na voz de Gal Costa. Com letra de Abel Silva e música de Moraes Moerira, é uma música alegre, festiva, que conta a história de uma grande festa de São João, através de uma música alegre, animada.

O que poucos sabem que a inspiração para uma composição tão alegre vem de um episódio triste. O atentado no Riocentro, ocorrido em 30 de abril de 1981, em que setores do Exército Brasileiro e da Polícia Militar do Rio de Janeiro visavam explodir bombas no Centro de Convenções do Riocentro, no Rio de Janeiro, onde se realizava uma apresentação de MPB em comemoração do Dia do Trabalhador. No local estavam mais de 20 mil pessoas. As explosões tencionavam incriminar grupos que se opunham à ditadura militar no Brasil e, assim, justificar a necessidade de recrudescimento do processo de abertura política.

Assim, Abel Silva, filho de Pastor metodista, que não teve festa de Carnaval nem São João, jamais imaginaria que faria uma música que tivesse o São João como tema. A partir do episódio do Riocentro, ele pensou que no São João também tinha bombas, mas ele queria falar algo contra o terrorismo, de modo absolutamente diferente, em que nas bombas, ninguém mata, ninguém morre, e o que explode era o amor. Mandou a letra para Moraes Moreira e o resto é história.

Esta era a resposta lírica de Abel ao terrorismo, que é relatada por Ruy Godinho, no seu IV Volume do livro “Então, foi Assim?”

FESTA DO INTERIOR

Iniciavam-se promissores os anos 1980. O governo brasileiro claudicava na tentativa de promover a abertura política, preconizada pelo general João Batista Figueredo, depois de duas décadas com o país vivendo os horrores da ditadura militar. Mas no dia 30 de abril de 1981, uma quinta-feira, às nove e meia da noite, uma bomba explodiu no estacionamento do Centro de Convenções Riocentro, dentro de um automóvel Puma e no colo de um sargento do exército, matando-o e ferindo gravemente um capitão também do exército, que o acompanhava, ambos agentes do DOICODI, a polícia política do Exército.

    Lá dentro se realizava um grande show em comemoração ao dia do Trabalho, promovido pelo centro Brasil Democrático (Cebrade) – entidade ligada ao partido comunista Brasileiro (PCB) – com a participação de diversos artistas e a presença de um público estimado em 20 mil pessoas. Nessa hora, sintomaticamente quem cantava era outra explosão, esta de alegria: Elba Ramalho. A bomba que pulverizou as pernas e as partes intimas sargento tinha destino certo. Seria instalada junto à plateia, mas, providencialmente, explodiu antes da hora, no colo do terrorista, um “especialista” em explosivos. O atentado foi cometido por militares “linha dura,” na tentativa transloucada de conter o processo de abertura política comandado pelo general conhecido por sua arrogância e autenticidade, que dizia gostar mais do cheiro de cavalo do que do povo. Se os meliantes tivessem logrado êxito, teria ocorrido uma tragédia, com consequências imensuráveis.

    Na época, eram comuns os atentados á bomba em entidades do movimento social, nas casas de políticos oposicionistas e nas bancas de revistas que vendiam publicações consideradas subversivas.

    Foi nesse clima conturbado e doentio que, paradoxalmente, nasceu uma das canções que mais desencadeiam a alegria nas multidões: Festa do Interior, da parceria do baiano Moraes Moreira com o poeta fluminense Abel Silva.

    “Estava acontecendo uma onda de bombas e de explosões nas bancas de jornal. A direita estava completamente enlouquecida. Além de torturar, um bando da Marinha, do Exército e da Aeronáutica começou a agir por conta própria. Os famosos terrorismos de direita, quando as próprias Forças Armadas de um país – estabelecidas para defender o cidadão, defender o território – por uma ideologia começa a fazer do seu próprio povo um inimigo, a partir de ideias, de religiões… Então, o povo em vez de ser como inimigos os bárbaros, os vizinhos, os colonizadores, tem o próprio exército, que ele paga com o seu imposto – porque são os caras pagos para defender o cidadão que começam a substituir o bandido. A velha lição da máfia: vender proteção contra você próprio e o cara tem que pagar”, revolta-se Abel Silva.

    “Aí eu queria fazer alguma coisa sobre isso, mas eu nunca entrei na onda da canção do protesto. A minha não é essa. Eu acho que deu algumas músicas bonitas, como o próprio Caminhando (Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores), que é linda, Disparada, que é linda. Geraldo Vandré fez algumas bonitas, Chico também fez de uma maneira mais poética. Mas eu achava que eu tinha que falar isso de uma maneira tão poética que só eu mesmo explicaria a revolta. E eu estava levando o meu filho no jardim-de-infância, na escola, em Ipanema, quando me veio a ideia: nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor. O meu raciocínio era o seguinte: há uma trincheira da morte no Brasil. Os caras estão entrincheirados, atirando, jogando bombas. E do outro lado estava a alegria, a felicidade, coisas como Os Novos Baianos, o futebol brasileiro, o carnaval brasileiro, a poesia brasileira. E eles são a morte. Agora, como é que eu vou falar isso? Eu percebi que eu poderia fazer a metáfora de uma guerra que fosse uma festa do interior brasileiro, uma festa de São João. De onde veio o outro verso, onde tem bomba, mas ninguém mata e ninguém morre. São bombas da guerra magia, ninguém matava e ninguém morria. Aí eu falei: Então eu vou botar uma festa de São João que seja a metáfora dessa guerra.’ Eu comecei a descrever a festa de São João sem canjiquinha, sem barraquinha, com pinceladas absolutamente originais,” relata sem falsa modéstia o poeta Abel Silva.

    “Aí eu falei: Isso é Moraes. Liguei pro Moraes. Fiquei um pouco entre Moraes e Dominguinhos, que também é meu parceiro, é muito alegre, mas mora em São Paulo. Moraes mora no Rio. Aí eu peguei e mandei pro Moraes por telefone: Moraes, pega aí a caneta. Eu fiz muita música assim. Aí eu fui ditando pra ele. Quando chegou nessa parte fagulhas, ponta de agulhas, brilham estrelas de São João… Bombas na guerra magia, ninguém matava ninguém morria… Nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor Moraes falou: Abel é carioca. Mandando esse negócio de São João pra mim? Pô, parceiro, que coisa linda! Vamos fazer, vamos fazer! Aí você vê a leitura que ele fez. Arrebentou. Eu desliguei. Deve ter demorado uma meia hora, 40 minutos, ele telefonou cantando música inteirinha, exatamente como ela é hoje. Ele fez praticamente lendo. Foi lendo e foi fazendo. Quando ele chegou ao fim da quarta, quinta vez, a música já estava pronta”, desvenda Abel entusiasmado.

    “aí a D. Maria da Graça, Gal Costa, estava preparando o show para o Canecão – no tempo em que o Canecão era o Canecão. Não tinham outras grandes casas no Rio de Janeiro. Era um show preparado para arrebentar. Lincoln Olivetti como arranjador, grandes músicos, cheio de alegria. Inclui a música que saiu puxando o show, o disco e ainda levou a Gal a fazer outro show no Maracanãzinho, chamado Festa do Interior. Eu fui lá assistir. Vi aquele Maracanãzinho, no bis, o público cantando a música toda. E não queria parar. Era para cantar a noite inteira”, regozija – se o poeta.

    Ainda de acordo com Abel Silva, Festa do Interior tem mais de quinze versões no exterior: finlandês, japonês, espanhol-mexicano, espanhol- cucaracha, espanhol-cubano, cubano -americano, italiano- cada uma mais engraçada do que a outra. No Brasil é uma música que toca em qualquer época, principalmente no carnaval e nas festas de São João.

    O frevo Festa do Interior foi gravado por Gal Costa, no LP Fantasia (1981), no CD Gal – Série Grandes Nomes (1994) : pelo conjunto Ferves, no LP A Maior Festa do Mundo (1983), por Moraes Moreira – Acústico (1995), e no CD Bahião com H (2000), além de outros registros.

    “Eu só conseguiria falar contra um terrorista esfregando na cara dele uma Festa do Interior, mostrando que ele é a morte. E que ele não deveria ter o direito de levar a morte dele para pessoas felizes e alegres, ele não quer saber se tem uma criancinha no colo de uma mãe de 30 anos. Então a minha linguagem sempre foi essa. Eu digo de uma maneira clara, mas eu não digo de uma forma unívoca, que tenha uma leitura só. Eu não conseguiria dizer soldados armados, amados ou não. Eu estaria sendo muito óbvio. Eu acho fortíssimo, mas eu não diria assim”, finaliza o poeta Abel.