Mentiras – Adriana Calcanhotto

Existem músicas que são inspiradas em outras canções. Às vezes uma frase, uma sequência de acordes, uma ideia presente numa canção serve como centelha para o surgimento de uma nova música. E este foi o mote que fez surgir a canção Mentiras, o primeiro grande sucesso de Adriana Calcanhotto, gravada no seu segundo álbum Senhas (1992). A canção se tornou um sucesso, impulsionado pela sua inclusão na novela global Renascer (1993)

E a inspiração da canção, como Adriana recentemente disse no seu canal no Youtube, se inicia com uma canção de Cazuza: “O Nosso Amor a Gente Inventa (Uma Estória Romântica)”, gravada em 1987, no disco “Só se for a dois”.

A canção de Cazuza, contada a partir de uma desilusão amorosa, já no final, relata uma relação que, ao acabar, “ficou tudo fora do lugar, café sem açúcar, dança sem par”.

Este ficar “tudo fora do lugar” inspirou a primeira frase da canção, em que “nada ficou no lugar”

Em seguida, são listadas alguns tipos de vinganças amorosas, de desforras que se fazem como resposta ou revanche em decorrência de mágoas de amor. E também como forma de chamar a atenção do ser amado. E a canção lista algumas destas represálias:

Eu quero quebrar essas xícaras
Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família
Eu vou escrever no seu muro
E violentar o seu gosto
Eu quero roubar no seu jogo
Eu já arranhei os seus discos

E, na segunda estrofe, continua:

Eu quero entregar suas mentiras
Eu vou invadir sua aula
Queria falar sua língua
Eu vou publicar seus segredos
Eu vou mergulhar sua guia
Eu vou derramar nos seus planos
O resto da minha alegria

E todo o resultado desta desilusão tem um sentido, uma lógica. As “maldades” são o amor pelo avesso (numa referência à canção “Artrás da Porta”, de Chico Buarque). Enfim, uma forma de, com as vinganças, esboçar uma reação da pessoa amada.

No Video, Adriana conta a história:

Era um verão muito chuvoso no Rio de Janeiro e eu fiquei sozinha no apartamento…Eu estava ouvindo muito Cazuza, ele tinha morrido e eu continuava ouvindo, como uma voz, como um poeta que foi embora, que não vai ter nada parecido… E eu lembro de estar ouvindo uma música que dizia: “Mas ficou tudo fora do lugar /café sem açúcar”; a melodia não é essa mais a ideia é essa: ficou tudo fora do lugar e eu estava fazendo as canções, fiquei com isso na cabeça, provavelmente fui a cozinha fazer um café voltei, peguei o violão e ai saiu um “Nada ficou no lugar” que é “ficou tudo fora do lugar”.

Nada ficou no lugar/ eu quero quebrar essas xícaras/ eu vou enganar o diabo/ eu quero acordar sua família”.

Começou assim, a partir dessa coisa do Cazuza “ficou tudo fora do lugar”, me veio uma imagem dessas maldades amorosas que se faz assim… se faz, não, que algumas pessoas fazem quando estão com raiva, quando estão com ciúme.

E eu lembrei da história de uma amiga minha que ela era bem mais velha do que eu, casada com filhos e tudo, e descobriu em um determinado momento que o marido tinha uma amante. Então ela teve um ataque em casa e quebrou tudo o que tinha na casa, menos as coisas que ela tinha dado para ele. A memória dela eram quadros, assim quebrados no chão, os vidros espatifados dos quadros que ela quebrou; os quadros que ela deu ficaram na parede, mas os que ela não deu, os que ela não sabia a origem que ele já tinha qualquer coisa assim….

Então a imagem – ela falava – era um tapete assim de vidro, cacos de vidro e terra das plantas, terra arrasada realmente ficou o apartamento – isso ela contando, eu não vi. Mas aí eu me dei conta dessa coisa passional, dessas reações assim e elaborei uma lista de maldades de vinganças: “eu vou publicar seus segredos, chegando ao ponto de “eu já arranhei os seus discos” e tudo isso eu fui fazendo a lista de maldades, inventando, pensando nas maldades, pensando no Cazuza, pensando na Tânia com o apartamento destruído e chegou um determinado momento: com uma lista maravilhosa de maldades eu pensei pô mas e ai?

Não pode ficar implícito o motivo dessas maldades né? Uma pessoa não é não está fazendo maldades porque quer, porque é da natureza dela. A culpa não é de quem destrói apartamento. Era isso que a canção queria. Então o jeito de dizer isso foi dizer “Que é para ver se você volta/ que é pra ver se você vem/ que é pra ver se você olha pra mim.

E eu fiquei lembrando assim de várias canções que tem esste tipo de apelo, lembrei do Roberto Carlos dizendo “Só me falta ficar nu para chamar sua atenção” (Pra Chamar Sua atenção -1976)

Enfim, a música narra o desespero e o anúncio de vingança de uma pessoa magoada, e o caráter explícito de que é uma forma de chamar atenção.

Palavras no corpo. Ou ninguém diz “Eu te amo” como Gal

Ninguém diz “eu te amo” como Gal Costa. Desta ideia surgiu uma canção. Uma parceria improvável entre o cantor Silva e o poeta Omar Salomão (Filho de Waly Salomão – que dirigiu o show icônico de Gal: “Fa-tal: Gal a todo vapor). Quem fez a ponte entre os dois foi Marcus Preto, cuja história com Gal já mereceria uma postagem à parte.

Marcus Preto conheceu Gal quando pretendia entrevistá-la para um documentário. Depois de muitas idas e vindas, marcações e desmarcações, da entrevista Marcus acabou virando produtor dos discos de Gal, numa parceria que durou nove anos, até os últimos dias da cantora.

Gal Costa e Marcus Preto

Consta, então, que Omar Salomão (que fez o cenário de alguns shows de Gal), numa mesa de bar, teria dito a Marcus Preto que toda a vez que escutava a voz da cantora na música “Sua Estupidez”, de Roberto e Erasmo Carlos, tinha mais certeza de quem ninguém diz “eu te amo” como ela. 

Preto então teria dito: “Então faça uma letra sobre isso!”

Este foi o mote para “Palavras no Corpo”.  A letra foi escrita por Omar especialmente para a voz da cantora.

Interessante que Gal gravou pela primeira vez a canção Sua Estupidez, num compacto simples, e,m 1971, e no mesmo ano, ingerou o já referido álbum Fa-tal , dirigido por Waly Salomão, pai de Omar. Ela posteriormente gravaria também no álbum Acústico, em 1997.

Omar Salomâo

Assim que a letra ficou pronta, o Marcus Preto enviou a letra que Silva fizesse a música. Silva, que já havia acompanhado Gal Costa como tecladista e violinista em turnê cantando Lupicínio Rodrigues, se inspirou em Amy Winehouse, uma das paixões de Gal.

Numa entrevista, Silva Falou:

O novo single “Palavras no Corpo”, da Gal Costa, teve composição sua com o poeta Omar Salomão. Conta para a gente a história dessa música?

Quando Gal me faz o convite e Omar me mandou a letra, eu vi a responsabilidade que era colocar música num texto tão intenso e bonito. “Ninguém diz eu te amo como eu” foi uma frase que eu quis muito ouvir Gal cantar com aquele timbre que ninguém tem igual. Eu já sabia ela amava Amy Winehouse e muitas coisas ligadas à música soul. Sentei para tocar piano e deixei a melodia fluir em cima do texto, como se fosse alguém recitando. O resultado é esse que está registrado na voz de Gal. Pra mim foi uma honra que nem dá para descrever.

Gal Costa e Silva

O arranjo foi desenvolvido sob a direção musical de Pupillo, e membro da Nação Zumbi.

A letra da canção retrata o fim de uma relação, as lembranças de uma felicidade pretérita, e não presente, e guarda consigo as lembranças desta relação que foi feliz.

E as lembranças são sinestésicas: o cheiro na cama, o gosto no queixo…

E, enfim, a música remete ao tato, ao sangue, à dor, aos cacos de vidro, e, enfim, à constatação de que as palavras que vale não estão no vento, mas na pele.

Fomos felizes e felizes fomos
E se já não somos, meu amor
Não se preocupe, não
Aperte a minha mão
Até a luz sumir
Em meio à escuridão
Você vai confiar em mim

Guarde um pedaço de mim
Um cheiro no lado da cama
Seu gosto na ponta do queixo
Meu sangue escorrendo seu peito

Vejo no tato sua pele
Tatuo com dedo o seu gosto
Não sigo mapas, desejo
Segredo e contato

Quero o brilho cortante
Desses cacos de vidro
Palavras no corpo
Respostas ao vento

Você diz pra não falar de amor
E me pede pra fechar os olhos
Esquecer, amor
Poucos versos são precisos

Ninguém diz eu te amo
Ninguém diz eu te amo
Ninguém diz eu te amo
Como eu

Fontes:

https://www.musicjournal.com.br/gal-costa-palavras-no-corpo/#:~:text=Palavras%20no%20Corpo%20%C3%A9%20uma,Waly%20Salom%C3%A3o%2C%20pai%20de%20Omar.

Entrevista: Silva e o amor como ato político

30 anos da Guerra dos Carnavais

Em 24 de fevereiro de 1993, A Revista Veja publicava uma reportagem de capa intitulada “A Bahia Ganhou”, quando, capitaneada pelo sucesso de Daniela Mercury, o carnaval da Bahia “ousou” desafiar a hegemonia do carnaval carioca no gosto popular. 

Na época, o então prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia, numa infeliz declaração, afirmara, quatro dias antes do Carnaval, que o turista que fosse para a Bahia teria “100% de chance de ser assaltado e uma grande possibilidade de ser violentado”. Em resposta, a então prefeita de Salvador, Lídice da Mata, provocou ao afirmar que o Carnaval baiano “não é para inglês ver”, e que o baiano tinha 100% de chance de ser feliz. 

Na época, discutia-se dois modelos de carnaval: o espetáculo promovido pelas escolas de samba, mais bonitos de ser ver pela televisão, e a festa hedonista do Carnaval da Bahia, em que cada folião é parte integrante da festa, na qual se prioriza o carnaval de rua, então monopolizado pelo trio elétrico, e os blocos de carnaval.  

A reportagem da Veja ironizava a postura dos cariocas “irados com a audácia nordestina de roubar da Cidade Maravilhosa o título da dona do maior espetáculo da terra”. 

A reportagem mencionava também a relativa independ|ência da música baiana em relação à indústria fonográfica nacional, e já fazia referência à Timbalada e ao Olodum. 

Naquele momento, a Bahia mais uma vez se reafirmava como pólo independente do carnaval. Centenas de blocos com suas então mortalhas aplaudia suas principais estrelas (Olodum, Daniela Mercury, Chiclete com Banana, Asa de Águia, Cheiro de Amor, Banda Mel, Banda Beijo), e o orgulho do Carnaval da Bahia atingia os Píncaros.  Na época, se destacava que a Bahia não seguia as regras tradicionais da indústria fonográfica, pois o que fazia sucesso eram as músicas locais e os artistas locais.

Na reportagem, pode se destacar o trecho: “É certo que todos os Estados Brasileiros, assim como todas as tribos e nações do mundo, se consideram especiais, de um modo geral. Só que os baianos se consideram especiais mesmo e ponto final

Isto foi quase uma resposta a uma reportagem do Jornal O Globo, ouvindo apenas representantes do Rio de Janeiro, que considerava um acinte, uma ofensa, a discussão sobre o título de melhor carnaval do mundo.

Por trás da guerra de carnavais, tinha a guerra da TV ( A Manchete iria transmitir o carnaval da Bahia para todo o Brasil, sendo seguida anos depois pela BAND), das cervejarias (Daniela Mercury era garota propaganda da Cerveja Antarctica) e de patrocinadores.

Tudo isso se refletia num pano de fundo musical: o carnaval carioca é, inegavelmente, o carnaval do samba.

O carnaval de Recife-Olinda é o carnaval do Frevo.

Na Bahia, o samba esteve sempre presente. Também o frevo, só que o frevo “trieletrizado”, a partir da criação do Trio elétrico de Dodô & Osmar, seguido de Moraes Moreira, Caetano Veloso, Novos Baianos, Baby, pepeu e etc.

Ocorre que o protagonismo dos tambores dos blocos afro de Salvador colocou um novo tempero à mistura, daquilo que depois se convencionou chamar de Axé Music, ou samba-reggae, mas que antes também era chamada de fricote, deboche, ou genericamente “música baiana”.

Assim, com o samba, o trio e os tambores, a Bahia assumia um ritmo pra chamar de seu, o como intitula do documentário “Axé: canto do povo de um lugar”, de Chico Kertesz. O Axé passou a ser o ritmo da Bahia, o canto dos baianos. Embora o samba – que tem origens na Bahia- e o Frevo – que está nas origens do trio elétrico – se mantivessem presentes, o novo ritmo passava a contagiar e tomar conta do Brasil.

Este movimento marcou uma mudança de patamar do carnaval baiano, e se contrapôs como um modelo viável de carnaval diferente do carnaval do Rio.

Curiosamente, em 1994, a Mangueira fez um desfile de carnaval homenageando os Doces Bárbaros (Caetano, Gal, Gil e Bethânia). No entanto, ficou num modesto 11o lugar.

30 anos depois, pode-se dizer que o modelo baiano se espalhou. Ao mesmo tempo em que se fala de crise do carnaval da Bahia. Curioso é que o carnaval de rua no Rio de Janeiro ganha cada vez mais força, enquanto na Bahia os blocos perdem força para os camarotes. Um caminho inverso que parece não ter feito bem ao carnaval daqui, e que se recupera com a retomada de blocos menores, em que há espaço para a criatividade e o improviso.  

Nossos ídolos ainda são os mesmos, como dizia Belchior, havendo pouca renovação no chamado Axé Music de 30 anos para cá. A alegria, sim continua a mesma.  

Sangue Latino

O ano, 1973. O Brasil vivia o auge da Ditadura Militar, quando surgia na cena do rock brasileiro, uma banda pós tropicalista que revolucionou a Música. Falo dos Secos & Molhados, um projeto de João Ricardo, aos quais aderiram Gerson Conrad e o então desconhecido Ney Matogrosso, que era mais ator do que cator, mas tinha uma voz de tenorino diferenciada.

A banda se notabilizava pelas performances. Todos se apresentavam maquiados, e Ney Matogrosso cantava com gestos, rebolados e olhares que provocavam a plateia… quem ouvia a canção no rádio tinha dúvidas se quem cantava era homem ou mulher. Ney cantava com o torso nu. Tudo isso causou na época muita polêmica.

Toda esta forma de apresentação era pano de fundo para um conjunto de letras com uma forte conotação política, crítica social, que abordava desde racismo a violência policial, de mensagens contra a guerra nuclear, e inspitando-se em textos de poetas como Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes. Anna Maria Bahiana comenta:

Como música e como grupo, o Secos & Molhados calca-se em três elementos básicos e saudavelmente inovadores, dentro do panorama nacional: a bela e aguda voz de Ney Matogrosso […], o espetáculo altamente visual, com maquiagem e movimentação até mesmo sexualmente ambíguo, e a inclusão de textos de poetas – Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Solano Trindade, Vinícius de Moraes – em letras de canções. Nenhum desses elementos é gratuito. Estavam todos “pensados e repensados” no espírito de João Ricardo.

Numa entrevista a Marcelo Pinheiro, em 2012, João Ricardo falou:

“A necessidade é a mãe da invenção e era a época das bandas progressivas, que tinham um aparato sonoro poderoso. Éramos o contrário disso: despojados musicalmente, mas tínhamos referências teatrais e começamos a inventar saídas para não perder terreno, como usar roupas extravagantes e maquiagem. Percebemos que quanto mais nos aventurávamos naquilo que era bizarro, mais as pessoas ficavam estupefatas e atraídas. Alice Cooper fazia sucesso, nos Estados Unidos, o David Bowie, na Inglaterra, e plasticamente levamos as ideias do glam e do glitter ao extremo. Tivemos a sorte de envolver em torno de nós milhões de pessoas de todas as camadas sociais, de todos os credos, cores e idades, algo que não aconteceu nem ao Bowie nem ao Alice Cooper.”

Assim, com o tronco nu, a cara pintada e a voz diferenciada de Ney Matogrosso, foi foi lançada a canção “Sangue Latino”, com direito a clipe no “Fantástico”. Foi a música que abriu as portas para o grupo, numa letra de Paulinho Mendonça para a música de João Ricardo.

Paulinho Mendonça, numa entrevista a Rodrigo Faour, afirmou que aquele momento político em que o Brasil vivia gerava “uma obrigação de ter que se manifestar, que levou a um momento de muita qualidade, muita coisa importante”. Mas que também, pelo advento da censura, “Em termos de poesia, a gente teve que desenvolver os processos metafóricos“.

O interessante é que as mensagens do disco como um todo, com muita crítica social, acabou ficando em segundo plano, pois o que escandalizava era a performance. Tanto que, como conta na sua biografia (Vira-lata de Raça, Ramon Nunes Mello, Tordesilhas, 2018), quando os Secos & Molhados foram se apresentar pela primeira vez na TV Globo, recomendaram que Ney não olhasse diretamente para a câmera.

Mas, para além de toda a repercussão da banda, é certo que, quando se analisa a música “Sangue Latino”, vem logo à mente um famoso livro de Eduardo Galeano, “As veias abertas da América Latina”, escrito em 1971.

O livro retrata a história da América latina desde o período da colonização até a contemporaneidade, retratando a exploração econômica, a dominação política e o sangue derramado dos nativos e dos explorados. A canção “Sangue Latino pega este mote, e faz o lamento do povo subjugado na América Latina.

Em artigo de Suelen Santana Silva e Pedro Marques Neto (Secos & Molhados: para ouvir, olhar e comer), a canção é tida como um desabafo, um grito do povo explorado da América Latina. Embora o sangue do povo não seja propriamente latino (pois é sangue índio, negro, mestiço), a referência é ao sangue do exlporado. Dizem os autores:

A canção concentra em si o próprio legado da colonização, sendo uma espécie de sangue cultural e artístico desse processo. Trata-se, assim, de uma confissão em primeira pessoa, no tempo pretérito perfeito, como podemos observar já na primeira palavra de sua letra: “Jurei” e, em seguida, “rompi”, “quebrei”, “traí” e “lancei”, que, em sequência, compõe outro jogo rítmico e de rima.

É possível estabelecer uma personificação do continente, na exploração dos povos originários da América, desde o processo de colonização, como também a difícil realidade da América Latina, em que havia ditaduras militares no Paraguai na década de 50, no Brasil, Bolívia, Peru e Argentina na década de 60, além de Chile e Uruguai na década de 70.

E assim quando a letra afirma “Jurei mentiras e sigo sozinho”, pode se referir às juras aos deuses e costumes ocidentais, no processo colonizatório, como podem ser também as delações de companheiros obtidas mediante tortura. As mentiras para salvar a si próprios, a mentira que gera solidão…

Quando, no segundo verso, a expressão “assumo os pecados” ganha um ar de confissão. Confissão dos pecados dos cultos aos deuses pagãos, ou será os pecados dos crimes políticos? Percebe-se que justamente o sentido metafórico da canção permitira uma interpretação sobre o passado, bem como ao presente da época.

O autor da letra, Paulo Mendonça (na já citada entrevista a Rodrigo Faour), disse, em 2020, que escreveria a mesma letra com a mesma emoção e o mesmo sentimento.

No verso “Os ventos do Norte não movem moinhos”, é muito clara uma visão decolonialista, em que os ventos vindos do hemisfério norte não movem moinhos, seja porque quem trabalhava, quem moviam os moinhos era o povo explorado da América, como também quem inspira não são os colonizadores.

Mas, diante da exploração, somente resta o gemido. De dor. De exploração. Mas que, como se verá adiante, de quem não se entrega.

“Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos, meu sangue latino, minha alma cativa”. Depois do gemido, a constatação da vida, dos mortos, dos caminhos tortos… e a alma que resta cativa, como se a história dos povos da Américsa Latina tivesse sido distorcida, ceifada e capturada.

No referido livro de Eduardo Galeano, há o relato de como os conquistadores espanhóis como Hernán Cortés seguiram dizimando os astecas com espadas e tiros de arcabuz. O Império sucumbia com suas armas primitivas, e os povos originários nada podiam fazer. Lhes restava gritar, jogar suas lanças no ar, ver suas mulheres serem violentadas e seus filhos mortos.

No entanto, na parte seguinte, há a luta, a resistência, afinal, “E o que me importa é não estar vencido”. E por isso, mesmo tendo rompido tratados, tradições ritos, ancestralidade, a lança continua viva, jogada no espaço, e junto com ela um grito, um desabafo, e, afinal de contas, pode-se perder a terra, a língua, a religião, mas o sangue latino resiste.

No fim, sangue latino é um libelo de resistência à opressão, de quem, mesmo oprimido, cativo, subjugado, não se dá por vencido, e deixa viva a esperança.

Numa entrevista, João Ricardo fala sobre a composição:

‘Sei lá… apesar de ser português, moro há muitos anos no Brasil. Sangue Latino nasceu de um estouro: um dia estava lendo uns poemas de um amigo e li aquilo. Puxa, na mesma hora peguei a viola e pintou a música. Nasceu assim. E esta coisa latina sempre pinta nos meus discos” 

Fontes:

BAHIANA, A. M. Nada será como antes: MPB anos 70 – 30 anos depois. 1a ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2006

http://taratitaragua.blogspot.com/2021/07/joao-ricardo-ex-secos-molhados-lanca.html

Secos & Molhados: para ouvir, olhar e comer (Suelen Santana Silva e Pedro Marques Neto)

SANGUE LATINO NO PALCO: NUANCES DE DECOLONIALIDADE NA ARTE DE NEY MATOGROSSO (Roberto Remígio Florêncio e Pedro Rodolpho Jungers Abib)

https://marceloxpinheiro.medium.com/uma-noite-com-secos-molhados-b384ce229200Re

Revista Brasileiros, MARÇO 2012

Festa do Interior – Como o atentado do Riocentro virou uma grande festa de São João

Festa do Interior até hoje é uma das músicas mais lembradas na voz de Gal Costa. Com letra de Abel Silva e música de Moraes Moerira, é uma música alegre, festiva, que conta a história de uma grande festa de São João, através de uma música alegre, animada.

O que poucos sabem que a inspiração para uma composição tão alegre vem de um episódio triste. O atentado no Riocentro, ocorrido em 30 de abril de 1981, em que setores do Exército Brasileiro e da Polícia Militar do Rio de Janeiro visavam explodir bombas no Centro de Convenções do Riocentro, no Rio de Janeiro, onde se realizava uma apresentação de MPB em comemoração do Dia do Trabalhador. No local estavam mais de 20 mil pessoas. As explosões tencionavam incriminar grupos que se opunham à ditadura militar no Brasil e, assim, justificar a necessidade de recrudescimento do processo de abertura política.

Assim, Abel Silva, filho de Pastor metodista, que não teve festa de Carnaval nem São João, jamais imaginaria que faria uma música que tivesse o São João como tema. A partir do episódio do Riocentro, ele pensou que no São João também tinha bombas, mas ele queria falar algo contra o terrorismo, de modo absolutamente diferente, em que nas bombas, ninguém mata, ninguém morre, e o que explode era o amor. Mandou a letra para Moraes Moreira e o resto é história.

Esta era a resposta lírica de Abel ao terrorismo, que é relatada por Ruy Godinho, no seu IV Volume do livro “Então, foi Assim?”

FESTA DO INTERIOR

Iniciavam-se promissores os anos 1980. O governo brasileiro claudicava na tentativa de promover a abertura política, preconizada pelo general João Batista Figueredo, depois de duas décadas com o país vivendo os horrores da ditadura militar. Mas no dia 30 de abril de 1981, uma quinta-feira, às nove e meia da noite, uma bomba explodiu no estacionamento do Centro de Convenções Riocentro, dentro de um automóvel Puma e no colo de um sargento do exército, matando-o e ferindo gravemente um capitão também do exército, que o acompanhava, ambos agentes do DOICODI, a polícia política do Exército.

    Lá dentro se realizava um grande show em comemoração ao dia do Trabalho, promovido pelo centro Brasil Democrático (Cebrade) – entidade ligada ao partido comunista Brasileiro (PCB) – com a participação de diversos artistas e a presença de um público estimado em 20 mil pessoas. Nessa hora, sintomaticamente quem cantava era outra explosão, esta de alegria: Elba Ramalho. A bomba que pulverizou as pernas e as partes intimas sargento tinha destino certo. Seria instalada junto à plateia, mas, providencialmente, explodiu antes da hora, no colo do terrorista, um “especialista” em explosivos. O atentado foi cometido por militares “linha dura,” na tentativa transloucada de conter o processo de abertura política comandado pelo general conhecido por sua arrogância e autenticidade, que dizia gostar mais do cheiro de cavalo do que do povo. Se os meliantes tivessem logrado êxito, teria ocorrido uma tragédia, com consequências imensuráveis.

    Na época, eram comuns os atentados á bomba em entidades do movimento social, nas casas de políticos oposicionistas e nas bancas de revistas que vendiam publicações consideradas subversivas.

    Foi nesse clima conturbado e doentio que, paradoxalmente, nasceu uma das canções que mais desencadeiam a alegria nas multidões: Festa do Interior, da parceria do baiano Moraes Moreira com o poeta fluminense Abel Silva.

    “Estava acontecendo uma onda de bombas e de explosões nas bancas de jornal. A direita estava completamente enlouquecida. Além de torturar, um bando da Marinha, do Exército e da Aeronáutica começou a agir por conta própria. Os famosos terrorismos de direita, quando as próprias Forças Armadas de um país – estabelecidas para defender o cidadão, defender o território – por uma ideologia começa a fazer do seu próprio povo um inimigo, a partir de ideias, de religiões… Então, o povo em vez de ser como inimigos os bárbaros, os vizinhos, os colonizadores, tem o próprio exército, que ele paga com o seu imposto – porque são os caras pagos para defender o cidadão que começam a substituir o bandido. A velha lição da máfia: vender proteção contra você próprio e o cara tem que pagar”, revolta-se Abel Silva.

    “Aí eu queria fazer alguma coisa sobre isso, mas eu nunca entrei na onda da canção do protesto. A minha não é essa. Eu acho que deu algumas músicas bonitas, como o próprio Caminhando (Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores), que é linda, Disparada, que é linda. Geraldo Vandré fez algumas bonitas, Chico também fez de uma maneira mais poética. Mas eu achava que eu tinha que falar isso de uma maneira tão poética que só eu mesmo explicaria a revolta. E eu estava levando o meu filho no jardim-de-infância, na escola, em Ipanema, quando me veio a ideia: nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor. O meu raciocínio era o seguinte: há uma trincheira da morte no Brasil. Os caras estão entrincheirados, atirando, jogando bombas. E do outro lado estava a alegria, a felicidade, coisas como Os Novos Baianos, o futebol brasileiro, o carnaval brasileiro, a poesia brasileira. E eles são a morte. Agora, como é que eu vou falar isso? Eu percebi que eu poderia fazer a metáfora de uma guerra que fosse uma festa do interior brasileiro, uma festa de São João. De onde veio o outro verso, onde tem bomba, mas ninguém mata e ninguém morre. São bombas da guerra magia, ninguém matava e ninguém morria. Aí eu falei: Então eu vou botar uma festa de São João que seja a metáfora dessa guerra.’ Eu comecei a descrever a festa de São João sem canjiquinha, sem barraquinha, com pinceladas absolutamente originais,” relata sem falsa modéstia o poeta Abel Silva.

    “Aí eu falei: Isso é Moraes. Liguei pro Moraes. Fiquei um pouco entre Moraes e Dominguinhos, que também é meu parceiro, é muito alegre, mas mora em São Paulo. Moraes mora no Rio. Aí eu peguei e mandei pro Moraes por telefone: Moraes, pega aí a caneta. Eu fiz muita música assim. Aí eu fui ditando pra ele. Quando chegou nessa parte fagulhas, ponta de agulhas, brilham estrelas de São João… Bombas na guerra magia, ninguém matava ninguém morria… Nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor Moraes falou: Abel é carioca. Mandando esse negócio de São João pra mim? Pô, parceiro, que coisa linda! Vamos fazer, vamos fazer! Aí você vê a leitura que ele fez. Arrebentou. Eu desliguei. Deve ter demorado uma meia hora, 40 minutos, ele telefonou cantando música inteirinha, exatamente como ela é hoje. Ele fez praticamente lendo. Foi lendo e foi fazendo. Quando ele chegou ao fim da quarta, quinta vez, a música já estava pronta”, desvenda Abel entusiasmado.

    “aí a D. Maria da Graça, Gal Costa, estava preparando o show para o Canecão – no tempo em que o Canecão era o Canecão. Não tinham outras grandes casas no Rio de Janeiro. Era um show preparado para arrebentar. Lincoln Olivetti como arranjador, grandes músicos, cheio de alegria. Inclui a música que saiu puxando o show, o disco e ainda levou a Gal a fazer outro show no Maracanãzinho, chamado Festa do Interior. Eu fui lá assistir. Vi aquele Maracanãzinho, no bis, o público cantando a música toda. E não queria parar. Era para cantar a noite inteira”, regozija – se o poeta.

    Ainda de acordo com Abel Silva, Festa do Interior tem mais de quinze versões no exterior: finlandês, japonês, espanhol-mexicano, espanhol- cucaracha, espanhol-cubano, cubano -americano, italiano- cada uma mais engraçada do que a outra. No Brasil é uma música que toca em qualquer época, principalmente no carnaval e nas festas de São João.

    O frevo Festa do Interior foi gravado por Gal Costa, no LP Fantasia (1981), no CD Gal – Série Grandes Nomes (1994) : pelo conjunto Ferves, no LP A Maior Festa do Mundo (1983), por Moraes Moreira – Acústico (1995), e no CD Bahião com H (2000), além de outros registros.

    “Eu só conseguiria falar contra um terrorista esfregando na cara dele uma Festa do Interior, mostrando que ele é a morte. E que ele não deveria ter o direito de levar a morte dele para pessoas felizes e alegres, ele não quer saber se tem uma criancinha no colo de uma mãe de 30 anos. Então a minha linguagem sempre foi essa. Eu digo de uma maneira clara, mas eu não digo de uma forma unívoca, que tenha uma leitura só. Eu não conseguiria dizer soldados armados, amados ou não. Eu estaria sendo muito óbvio. Eu acho fortíssimo, mas eu não diria assim”, finaliza o poeta Abel.