O nego e eu? (de João Cavalcanti por Roberta Sá). Um Passeio por Chico, Gil, Caetano e Caymmi

Que menina é aquela, que entrou na roda agora? Ela tem um remelexo que valha-me Deus Nossa Senhora” Essa frase é da música Remelexo, de Caetano Veloso e gravada por Simonal na década de 60. Essa mulher, aquela que seduz a todos com sua dança e o requebrado dos seus quadris é cantada e decantada sobretudo pelo samba da Bahia…

Francisco Bosco, num belo ensaio que fez sobre Caymmi na série “Folha Explica”, faz uma referência às mulheres dos seus sambas:

Trata-se de um rebolado gracioso, a um tempo sensual e discreto, extremamente feminino, poderoso e consciente do seu poder, mas como que brejeiro, delicado, sutil.”

No entanto, há poucas notícias dessas mulheres como o eu-lírico de uma canção. E aí vem o mérito de uma das músicas que se destaca no álbum Segunda Pele, gravado em 2012 por Roberta Sá: É a música “O nego e eu“, composta por João Cavalcanti, do Casuarina

Não por coincidência, O nego e eu é o único samba de um disco que tem uma toada mais pop, e que, segundo o próprio sítio digital de Roberta Sá, entrou no disco depois que o repertório já estava inicialmente definido. 

Essa entrada posterior certamente se deve ao fato de que Roberta, nesse trabalho, pretendia mostrar-se como mais do que uma cantora vinculada ao samba. Ela mesmo disse que o samba estava ficando”óbvio” para ela (nos anos e álbuns seguintes, o samba voltaria com toda força). Por isso havia uma certa relutância em incluí-la no disco, mas, como dito no site, “a importância do estilo musical na sua história e a conexão com os fãs falaram mais alto”.

E, mais adiante:

A ideia era gravar uma resposta ao samba “Sou eu”, composto por Chico Buarque para Diogo Nogueira. Desde que eu escutei essa música, falei: eu quero uma resposta, porque a mulher também pode ir para o baile. Cadê o ponto de vista dessa mulher, que vai para o baile, deixa tudo, mas que prefere o homem dela?“.

Pediu a música a João, que compôs “O nego e eu”

Pra quem não sabe, “Sou eu” é uma canção de Chico em que o homem se enciúma com o rebolado de sua mulher, mas que, ao final da noite, será ele, o eu-lírico, que vai levá-la pra casa. 

Então surge a versão da mulher, daquela mulher típica dos sambas que gosta de dançar e enfeitiçar os homens, gosta de sentir-se desejada, como se o desejo alheio fosse o combustível para animar o eu-lírico feminino. 

Mas aí, assim como Gil, na canção “Sandra”, o eu-lírico feminino tem sua torre, amarrada à qual ela dá pra ver o mundo inteiro, a torre na qual ela dá o salto no alto da montanha, e que é só balançar, que a corda o leva de volta para ela… 

E quem é essa torre? O “nego”, aquele que ela prefere após ser desejada por todos, aquele, que, mesmo com ciúmes, é para quem a mulher dança e se entrega no fim da noite.

João Cavalcanti,  o compositor da música, tratou um pouco da história da canção: 

É uma ficção não tão ficicional porque acontece pra cacete, isto é, da mulher que ‘abre o pavão’ na noite, no baile, na gafieira, e que na verdade é apaixonada e dedicada a seu marido” 

João (que é filho de Lenine) também gravou a canção no seu disco “Garimpo”, em 2018.

É uma bela homenagem a essa mulher que habita muitos desejos,  e que para a própria Roberta, é como se fosse  sua própria relação com o gênero musical. “Para mim, tem muito a ver com a minha história com o samba, o nego sendo o samba. Posso flertar com outros ritmos, posso experimentar outras coisas, mas só tem sentido o nego e eu“.

A letra: 

Gosto de ser vista pelas festas, ser seguida pelas frestas,
Protagonista do sonho alheio.
Gosto de deixar pelos lugares um punhado de olhares
Incendiados no fogo que ateio
Gosto que me vejam por inteira. gosto de solar na gafieira.
Gosto se me sinto desejada, mas eu levo a madrugada pra mim.
Porque gosto mais é do chamego e dos beijos do meu nego no fim.

O nego, o nego, o nego e eu.
Ele é o grande amigo que o destino concedeu.
Só tem sentido o nego e eu.

Ele não é dado pra ciúme,
Mas encabulado assume que prefere até que eu não vá.
Digo que meu jogo se resume a um rastro de perfume
Que eu deixo nos ares de lá.
Gosto que me vejam por inteira.
Gosto de solar na gafieira.
Gosto se me sinto desejada,
Mas eu levo a madrugada pra mim.
Porque gosto mais é do chamego
E dos beijos do meu nego no fim.

O nego, o nego, o nego e eu.
Ele é o grande amigo que o destino concedeu.
Só tem sentido o nego e eu.

Fonte: http://robertasa.com.br/site/os-bastidores-de-o-nego-e-eu/ (acesso em abril de 2012)