De Fugaz a Fullgás: a Musicalidade de Marina Lima e Antônio Cícero

Fullgás é uma das canções mais emblemáticas da parceria entre Marina Lima e seu irmão, o poeta Antônio Cícero. Sua origem mistura uma série de elementos de modernização, quando surgia uma nova música pop brasileira.

A música dos anos 80 começava a incorporar fortemente elementos eletrônicos — drum machines, sintetizadores e arranjos mais “limpos”, influenciados pelo new wave e pelo synth pop internacional. E Fullgas revela a fusão entre tecnologia, poesia e uma estética urbana sofisticada própria da época.

A história começa em 1983, quando Lobão — então baterista de Marina — chega com uma novidade inédita no país: um teclado Casio com bateria eletrônica. Era um teclado pequeno, que já colocava nas músicas uma batida constante. Marina adorou a novidade comprou um para si. Brincando com ritmos pré-programados, cria uma levada híbrida, brasileira e pop ao mesmo tempo, que se tornaria o embrião de Fullgás. Como ela disse, criou a música em cima de uma levada. Trouxe a ideia ao irmão, e ambos finalizam a composição.

O título da música surge de uma brincadeiera. Antônio Cícero havia escrito “fugaz”, no sentido clássico de algo veloz, rápido, passageiro. Marina, que vivera muitos anos nos Estados Unidos, resolveu fazer um trocadilho, e inserio “full-gas”: cheia de energia. A leitura dela transformou o conceito da música e acabou batizando não apenas a faixa, mas o álbum inteiro.

E existem aspectos muito interessantes na letra e na música.

A letra de Antônio Cícero, poeta de formação, imprime à canção uma dimensão filosófica evidente. Numa entrevista, ele explica que a expressão “meu mundo você é quem faz” dialogava diretamente com sua formação clássica. Segundo ele, mundus, em latim, “é aquilo que tá limpo, que brilha, que aparece” — uma imagem que sintetiza a capacidade da canção de iluminar aspectos da vida que lhes interessavam.

A letra imprime, então, uma tentativa de traduzir em música a sensação de brilho que certas pessoas conferem ao ambiente ao seu redor.

Marina, numa entrevista, falou da letra:

A gente ficava fascinado com algumas figuras na noite. Hoje tem isso, mas, na nossa época, quando a gente compôs essa música, havia pessoas que lançavam bem, e que você via que lançavam moda.

A gente volta e meia se via envolvido, afim de alguém assim. Tudo você é quem lança. A pessoa tem um aspecto em que ela lança moda. Tudo dela, ela faz com que se toque. Olha… todo mundo começa a ficar parecido com aquela pessoa, entendeu? Lança mais e mais.

Nada de mal alcança, porque tendo aquela pessoa, nada vai mais vai machucar nem cansar ficar. Um mundo estranho, sem esse charme, sem esse frisson no ar. Ficou um mundo esquisito. Um mundo estranho.

Marina e Antonio Cícero

A música revela um encanto por essas pessoas, encanto que contagia e torna odos em sua volta indestrutíveis.

Quando se fala de “meu brinquedo”, Cícero esclarece que é uma espécie de brincadeira amorosa no jogo de sedução. Nega que tenha o componente de manipulação, mas de brincadeira.

E depois da continuidade do encantamento, da sensação de que a vida não será mais a mesma sem aquela pessoa, vem a frase que fecha a canção: “Você me abre seus braços/E a gente faz um país

Esta frease condensa múltiplos sentidos:
erótico, como a criação de um território íntimo entre dois corpos;
afetivo-existencial, como a capacidade de alguém reconfigurar o mundo de outro;
político, como a possibilidade de imaginar um espaço novo, um país próprio, feito de linguagem, desejo e brilho;
estético, porque o país criado é também a obra de arte, o território simbólico que a música inaugura.

Essa frase ecoa e amplia o verso “meu mundo você é quem faz”: agora, não é apenas o mundo de uma pessoa feita pelo objeto do desejo; é um país inteiro que se faz juntos ao se abrir os braçoe. . O país como horizonte, como corpo, como invenção comum — como obra.

E a música também tem suas nuances. A levada de baixo é manifestamente inspirada em Bille Jean, de Michael Jackson.

Fullgás, portanto, permanece como um marco: uma canção que combina poesia sofisticada, experimentação tecnológica e uma estética de desejo rarefeita, inventiva, urbana. Um lugar onde música, corpo e linguagem criam novos mundos — ou novos países — sempre que alguém abre os braços e permite que a arte, enfim, aconteça.