Tom Zé sempre foi um artista surpreendente, seja nos shows, seja nas entrevistas. Luiza França numa obra sobre o artista, faz referência a uma tênue linha na qual o artista se equilibra, na qual é possível perceber duas impressões:
a) uma incrível capacidade de improvisação e interação;
b) a de observar uma esquete cuidadosamente planejada.
Com efeito, cada show de Tom Zé tem movimentações, elementos cênicos e histórias contadas, tudo isso aliado a um pensamento criativo rápido, capaz de compatibilizar atos pré-programados em contextos diversos com fluidez.

Mas esta característica de Tom Zé se revelava antes mesmo de tornar-se um artista conhecido, ou o “último tropicalista”. Num capítulo de Verdade Tropical, livro autobiográfico que lançou em 1997, Caetano Veloso descreve o dia em que Tom Zé trocou Salvador por São Paulo para participar do tropicalismo. Leia o trecho logo abaixo.
“[Em 1967], numa de minhas idas à Bahia — eu não passava mais de dois meses sem ir a Salvador — convidei Tom Zé para ir para São Paulo comigo. Tom Zé tinha sido nosso companheiro dos shows do Teatro Vila Velha. Quando comecei a frequentar os meios artísticos e boêmios de Salvador, ele já era uma figura conhecida dos estudantes universitários. Assim como Capinan — com quem, de resto, ele tinha colaborado em alguma peça do braço baiano do Centro Popular de Cultura (CPC) —, Tom Zé tinha prestígio entre os artistas que eu conhecia: as pintoras Sônia Castro e Lena Coelho, a dançarina Laís Salgado, os professores Paulo e Rena Faria, todos me falavam dele. Quando afinal nos conhecemos, ele me cativou pelo seu ar de sertanejo, por suas observações pseudomal-humoradas expressas num sotaque rural que mais realçava do que escondia a elegância clássica de seu português culto e correto. Seu físico de duende mameluco, de personagem de lenda cabocla confirmava sua condição de pessoa especial. Tom Zé tem uns olhos muito vivos, como que a provar que uma intensíssima concentração de energia é a razão de ele ser tão miúdo. Essas indicações de excepcionalidade eram em parte confirmadas por suas canções satíricas feitas em tom deliberadamente folclórico. Consistindo em longas crônicas da vida urbana de Salvador e em retratos de personagens típicos ou de exceção, essas composições de sua primeira fase mostravam-se a um tempo atraentes e insatisfatórias aparentemente pela mesma razão de não estarem em sintonia com os interesses estéticos da bossa nova. Sua inteligência e originalidade pessoal asseguravam que sua produção não fosse simplesmente antiquada. (…)

Inicialmente, no entanto, ele resistiu muito ao meu convite. Lembro-me de uma conversa nossa perto do Cine Guarany (atual Glauber Rocha), na praça Castro Alves, em que ele me dizia que a ideia era uma loucura. Eu e seu desejo profundo de assumir seu destino de músico o convencemos. A simples viagem de avião com Tom Zé de Salvador para São Paulo já deu o tom do que seria sua atuação. O Caravelle da Cruzeiro do Sul — aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de [Tom] Jobim ou um prédio de [Oscar] Niemeyer —, voando em céu azul, parecia que ia explodir com a vibração da presença de Tom Zé. E isso chegou a exteriorizar-se até o conhecimento da aeromoça e quem sabe de outros passageiros. Não que ele se mostrasse nervoso por estar voando — embora sua ostentação de estranheza em relação a tudo o que se passava no avião indicasse (talvez enganosamente) que ele nunca tinha voado —, mas seu sotaque e suas expressões arcaicas pareciam agredir a realidade tecnológica da aviação e o conforto burguês dos “serviços” de consumo: ele estava me dizendo — e dizendo a si mesmo e ao mundo — que ia, sim, para São Paulo, mas que permaneceria irredutível quanto a certos princípios e certos traços de caráter. Ele lidava de modo inventivo — e bizarramente elegante — com o medo da mudança de situação. Referia-se ao avião em que estávamos como “essa caravela”, indicando intimidade e estranheza ao mesmo tempo, e, por trás dessa ironia, comentando o sentido de partida para outro continente que essa viagem tinha para ele.
Quando a aeromoça se aproximou para perguntar o que queríamos beber, ele respondeu cortantemente: ‘Cachaça‘. Havia humor na obviedade de seu conhecimento de que não deviam servir cachaça a bordo. Mas a sinceridade de seu ar desafiador — embora não impolido — levava a pensar em como era ridícula a pretensão de refinamento da freguesia desses serviços (não havia, por exemplo, uma só aeromoça preta em qualquer companhia de aviação brasileira) tornados amorfamente “internacionais”, e em como Tom Zé estava disposto a não contemporizar com isso. À esperada resposta da aeromoça — “Desculpe, não temos” — ele começou a desapertar o cinto de segurança e, fazendo menção de levantar-se, disse — dirigindo-se a mim, não a ela: ‘Então eu vou-me embora. Mande parar essa caravela’.

A verdade com que essas palavras foram ditas assustou-nos, a mim e a moça, pois, embora soubéssemos impossível obedecer a tão absurda ordem, sentíamos, na determinação com que esta fora dada, que ela se imporia de alguma maneira. Claro que Tom Zé não criou um caso dentro do avião, mas tampouco desconcertou-se ou deixou seu movimento se retrair: ele, que parecera por um instante que ia sair dali custasse o que custasse, agora desistia educadamente irritado, como quem achasse inútil o gesto, mantendo total independência até o fim. Tudo isso sem que se perdesse o humor distanciado de quem diz ao mesmo tempo que tudo é uma brincadeira — e de quem sabe que tem charme.

Mais tarde, numa entrevista à Revista “E”, Caetano afirmou que Tom Zé vinha tornou-se não apenas o “Último Tropicalista”, mas também o tropicalista mais radical de todo o movimento. “Ele, estudando o samba, sintetizou tudo o que sugeríamos em nossas espalhafatosas letras paródicas e colagísticas“.
Além de ser do sertão (todos nós outros éramos do recôncavo, nascemos colados ao litoral), ele estudara nos seminários livres de música. Assim, sua dicção, sua perspectiva crítica e sua ambição experimentadora teriam de mostrar-se mais concentradas e consequentes. Já em 1968, quando as explosões tropicalistas tinham se dado (com Alegria, Alegria, Domingo no Parque e meu primeiro LP, que continha Tropicália), achei que o panorama da canção popular já seria acolhedor da originalidade do estilo criativo de Tom Zé. Tenho muito orgulho de não ter errado
Fontes:
Veloso, Caetano, 1942. Verdade Tropical / Caetano Veloso. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997
França, Luíza. Tom Zé [recurso eletrônico] : estudando o estranho- Belo Horizonte, MG: Fafich/Selo PPGCOM/UFMG, 2020







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Neguinho do samba
Guilherme Araújo, Gal e Caetano
