Essa Mulher – Elis Regina (história da canção)

“Essa mulher” é o título do álbum lançado em 1979 por Elis Regina. A música mais conhecida do álbum é “O Bêbado e a Equilibrista (João Bosc/Aldir Blanc)”, que se tornou um dos símbolos do movimento pela Anistia no fim da década de 70.

No entanto, hoje é dia de falar da canção título do álbum. “Essa Mulher”, composição de Joyce e Ana Terra, retrata as múltiplas facetas do que significa ser mulher. A letra retrata um dia na vida de uma mulher, e as suas transformações ao longo deste dia.

Pela manhã, uma senhora, cuidando da casa, dos filhos, com um quê de tristaza e resignação.

Ao entardecer, uma menina, que se arruma, se enamora, se apaixona, que se permite sonhar…

Por fim, a mulher que, à noite, seduz, bebe, enlouquece, faz estrago…

E termina, de modo aparentemente paradoxal, por agradecer ao destino por tudo aquilo que a faz infeliz… a luz, a sombra, a lama, a cruz… enfim, a complexidade e multiplicidade dos diversos mundos que habitam numa mulher.

Ana Terra

No livro “Então, foi assim?”, de Ruy Godinho, é contada um pouco da história da canção:

A tão propalada jornada dupla que algumas mulheres se submetem todos os dias, desdobrando-se entre o trabalho profissional e o doméstico, acabou virando uma bela peça musical na junção da letra de Ana Terra e da melodia de Joyce.

A letrista, escritora e produtora Ana Terra conta que escreveu a letra em uma noite em que estava supercansada. “Eu tinha passado o dia cuidando da casa e das crianças, sentia falta do Danilo [Caymmi], meu marido na época. Ele estava há vários dias longe, em excursão pelo Nordeste com o Bituca [Milton Nascimento], quando fazia parte da banda como flautista. Devia estar me sentindo como inúmeras mulheres que têm que dar conta de muitas atividades. Depois que as crianças dormiram, tomei meu banho e me olhei casualmente no espelho do banheiro. Meu rosto parecia cansado e gasto, dei um sorriso e me vi muito jovem. Minhas expressões se alternavam e tive a exata sensação de que eu era três mulheres.”

Ana editou-se no sofá com lápis e papel e começou a escrever. Essa mulher era assim. “Tive a sensação de encontrar em quem esbarro a toda hora num espelho quebrado. Exatamente a parte final da letra, que depois foi burilada e afinada até se tornar o que se tornou”, diz Ana.

O mais interessante é que essa sensação de ser múltipla a remetia à Bahia mística, a uma revelação que lhe foi feita em um terreiro de candomblé. “Quando estive no Gantois levada por Stella e Dorival [Caymmi], a Mãe Menininha jogando búzios me disse que eu tenho três Orixás de frente e todas [são] mulheres: Oxum, Iemanjá e Nanã. Acho que naquele momento em que escrevi a letra senti a presença desses três arquétipos femininos.”

Ana deitou-se no sofá com lápis e papel e começou a escrever: Essa menina, essa mulher, essa senhora/em quem esbarro a toda hora num espelho casual/é feita de sombra e tanta luz/de tanta lama e tanta cruz/que acha tudo natural… Exatamente a parte final da letra, que depois foi burilada e recebeu um início e um meio.

““Quando Danilo voltou de viagem mostrei para ele. Até então, era meu único parceiro”, afirma. “Ele começou a musicar, mas pela primeira vez achei que a música dele não tinha a ver com a minha letra. Tentei explicar isso com delicadeza dizendo que talvez só outra mulher conseguisse perceber o que eu estava sentindo.” Danilo compreendeu e superou.

Como nada acontece por acaso, no dia seguinte a cantora e compositora Joyce passou na casa deles para tratar de um assunto com Danilo, e Ana teve a intuição de que seria ela. “Timidamente mostrei a letra. Joyce a levou e no dia seguinte me ligou dizendo que a música estava pronta.”

O insight de Ana Terra de que a melodia teria de ser feita por uma mulher ganhou uma dimensão maior pelo fato de a letra ter caído nas mãos de uma compositora completa, que domina a criação de melodia e letra, que é uma violonista reconhecida internacionalmente, conviveu com Vinicius de Moraes e Tom Jobim, e transitou naturalmente por diversas tendências e escolas da música brasileira, como a Bossa Nova e o Clube da Esquina: Joyce Silveira Moreno.

Ana então nmostrou a canção a Elis Regina, que se preparava para lançar mais um LP. Elis gostou bastante da música que a escolheu como título do álbum Elis, Essa Mulher (WEA, 1979). “A gravação da música foi num clima de muita emoção. A Elis entendeu tudo”, festeja Ana Terra.

Joyce Moreno

Elis voltou a registrar a canção no LP Elis, Essa Mulher (WEA Latina, 1979), remasterizado em CD em 1988, seguido de diversos álbuns lançados posteriormente. Joyce, por sua vez, a gravou no LP Feminina (Odeon, 1980), no CD Revendo Amigos (EMI, 1994) e no CD Astronauta – Canções de Elis Regina (Pau Brasil, 1998).

A canção seguiu sendo regravada, entre outros, pela cantora Márcia, no CD Pra Machucar Seu Coração – Volume 2 (Velas, 1997); por Dori Caymmi, no CD Contemporâneos (Horipro Inc./Universal Music, 2002); por Alaíde Costa, no CD Alaíde Costa e João Carlos Assis Brasil – Voz e Piano (Lua Discos, 2006); e por Leila Pinheiro, no CD Nos Horizontes do Mundo – Ao Vivo (Biscoito Fino, 2007). Além das versões instrumentais de Nelson Ayres, no CD Perto do Coração (Atração Fonográfica, 2003) e de Marcel Powell Trio, no CD Corda com Bala (Rob Digital, 2009).

Em entrevista à Rádio Nacional, em julho de 1979, Elis Regina comenta a música “Essa Mulher”,

Eu tenho a impressão que a Joyce e a Ana conseguiram falar das artistas, conseguiram falar das mulheres artistas, das mulheres artistas casadas e mães, e mulheres de músicos de uma forma incrível…as duas são mulheres de músicos como eu, as duas tem pencas de filhos, as duas tem a jornada dupla de trabalho de ser dona de casa, ser mãe, ser esposa, ser artista, ter que batalhar e ter que segurar tudo que pinta, ter que organizar essa loucura que é você ter filho, você ter casa, você ter uma profissão e…. ao mesmo tempo, ser mulher e ser menina e ser dona de casa, ser a santa ser a mulher ser a menina…

Essa letra particularmente eu considero em termos de retrato da situação da mulher artista, da mulher que trabalha independentemente de ser artista, a mulher que trabalha, a mulher que tem a sua vida somada à do seu marido por vários aspectos – inclusive o econômico-financeiro – da batalha fora das quatro paredes do seu lar…

Acho que mais difícil… várias coisas a respeito de mulher já foram escritas – via de regra por homens – que conhecem a situação realmente, mas nunca viveram uma situação; viver na carne, passar pelas coisas é muito mais fácil quando você vai se referir ao assunto quando você tem conhecimento de causa, a coisa sai muito mais completa.

É história das duas que é a minha também e que é de uma porção de gente, é de Clara Nunes, é de uma penca de mulher que canta que trabalha que eu conheço, sabe? É uma música emocionante ela é emocionante.

De manhã cedo, essa senhora se conforma
Bota a mesa, tira o pó
Lava a louça, seca os olhos

Ah, como essa santa não se esquece
De pedir pelas mulheres
Pelos filhos, pelo pão

Depois, sorri meio sem graça
E abraça aquele homem, aquele mundo
Que a faz assim feliz

De tardezinha, essa menina se enamora
Se enfeita se decora
Sabe tudo, não faz mal

Ah, como essa coisa é tão bonita
Ser cantora, ser artista
Isso tudo é muito bom

E chora tanto de prazer e de agonia
De algum dia qualquer dia
Entender de ser feliz

De madrugada, essa mulher faz tanto estrago
Tira a roupa, faz a cama
Vira a mesa, seca o bar

Ah, como essa louca se esquece
Quanto os homens enlouquecem
Nessa boca, nesse chão

Depois, parece que acha graça
E agradece ao destino aquilo tudo
Que a faz tão infeliz

Essa menina, essa mulher, essa senhora
Em que esbarro a toda hora
Nos espelhos casuais

É feita de sombra e tanta luz
De tanta lama e tanta cruz
Que acha tudo, natural

“Bicho” (1977) – um dos (muitos) cancelamentos de Caetano. A briga com a imprensa e a patrulha ideológica

O cancelamentos em redes sociais no Século XXI é um fenômeno aparentemente inexorável. Já se fala em “cultura do cancelamento”, como uma espécie de boicote coletivo e difuso a partir de determinada atitude ou opinião expressada; o cancelamento, pois, é uma manifestação pública de censura a uma empresa, artista, atleta e celebridade (ou subcelebridades) em geral.

Esta execração pública, que hoje é difusa e se manifesta pelas redes sociais, era promovida no Século XX pela mídia, quando não concordava ou criticava o posicionamento de determinado artista.

Este fenômeno ocorreu com Caetano Veloso, em 1977, quando ele lançou o disco “Bicho”.

O disco contém algumas canções que se tornaram verdadeiros clássicos de Caetano, como “O Leãozinho” “Tigresa” e “Alguém cantando”. No entanto, provocou uma verdadeira saraivada de críticas da imprensa, que cobrava de Caetano uma postura politicamente mais engajada.

O contexto da época: Em 1977, o Brasil ainda estava sob o regime militar. O presidente era Ernesto Geisel, que prometia uma chamada “abertura lenta, gradual e segura” como forma de transição para um futuro governo democrático.

Não obstante, em 1º de abril de 1977, o Brasil acordou sem Congresso Nacional. O presidente Geisel se valeu do Ato Institucional 5 (AI-5), que não era usado desde 1969, para colocar o Parlamento em recesso, anunciando, no mesmo mês, um conjunto de medidas conhecido como Pacote de Abril, composto por uma emenda constitucional e seis decretos, tudo isso para assegurar maioria na Câmara e no Senado à ARENA, partido do governo.

Neste contexto, o álbum teve uma repercussão negativa justamente por ser considerado “alienante”, pois sua proposta era dançante e sem engajamento político. Numa reportagem de Claudia Arrigoni, no Jornal do Brasil em, 1977, Caetano afirmou:


Passei 12 dias na Nigéria curtindo o Festival de Arte Negra. Agora vou lançar um disco para todo mundo dançar. Eu acho bacana essa coisa de dançar, gosto muito. Talvez eu não seria capaz de fazer esse tipo de música muito bem, mas pensando bem, esse não é um disco para dançar, só feito por alguém que gosta de dançar. Entendeu? Na África, as pessoas dançam e isso é bacana.

O show, em consequência do álbum se chamava Bicho Baile Show, numa clara alusão de que seria um espetáculo para as pessoas dançarem, no qual Caetano seria acompanhado da Banda Black Rio.

Mas a repercussão não foi positiva, como conta Paulo César de Araújo no Livro “Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar

O caso Caetano Veloso é exemplar. Em 1977- ano em que os militares comemoravam os “13 anos da revolução” e que a sociedade civil protestava, o cantor lançou o LP “Bicho”, que indicava uma opção preferencial pelo prazer e trazia na faixa de abertura um quase manifesto: “Deixa eu dançar / pro meu corpo ficar odara…” Palavra do dialeto ioneba (africano), odara, segundo o próprio Caetano, significa “estar bem”, “sentir-se feliz.

Nas entrevistas à imprensa o artista dizia que não tinha maiores interesses por assuntos políticos e reiterava que aquele era um disco “de quem gosta de música para dançar”. Aí é que estava o problema. “Dançar, nesses tempos sombrios?”, indagava a jornalista Ana Maria Bahiana. Um outro jornalista, indignado, afirmava que Caetano “não tinha o direito de pôr uma roupa colorida e sair brincando por aí, dizendo que está tudo bem, isso é oba-oba inconsequente

O ápice do patrulhamento ocorreu durante a temporada do espetáculo Bicho Baile Show, no qual Caetano era acompanhado pela Banda Black Rio – grupo carioca que propunha a fusão do samba com elementos do jazz, soul e funk. A jornalista Margarida Autran dizia que “o artista não pode alienar-se da realidade que o cerca” e que por isso Caetano Veloso não tinha o direito “de não ler jornais, de declarar publicamente nada saber do que se passa em termos políticos – no Brasil e no exterior e, consequentemente, de apresentar um espetáculo como o que está em cartaz no teatro Carlos Gomes, irresponsavelmente ‘feito para dançar’. E que, afinal, nem para dançar serve”. Ela concluía afirmando que ao seguir o rastro do sucesso da Banda Black Rio, o show de Caetano não passava de uma “oportunista e malsucedida incursão ao alienado clima que hoje embala os subúrbios cariocas”.

Vale a pena citar trechos de algumas reportagens sobre o tema:

Luís Carlos Cabral – Revista POP (1977) – Não acredito que Bicho gerasse tanta controvérsia se tivesse sido editado em época de maior silêncio geral. A geral, porém, se agita, e precisa de solidariedades unânimes. Brasil à parte, o poeta Caetano Veloso continua exercitando a sua fina sensibilidade,

Maria Helena Dutra (Jornal do Brasil) – “Afastemos, porém, e outra vez, das ciladas de discutir e refletir sobre conteúdos porque afinal esse show foi feito para esquecer, já que não atinge mesmo sua desejada finalidade de ‘feito para dançar'(…) Parodiando o exímio artista da palavra, o sempre gostável e também senhor Caetano Veloso em sua música Tigresa: ‘As garras do artista Caetano nos marcaram o coração. Mas as besteiras de menino que ele disse, não’.”

Jary Cardosos (Folha de São Paulo)O baiano não esperava uma agressividade tão grande por parte dos críticos em relação às suas propostas dançarinas (‘O certo é dançar’, diz uma de suas músicas) e ‘alienantes’ (o que ele não concorda).

Esta Patrulha ideológica contra Caetano tinha na Canção Odara seu símbolo maior: uma canção livre, leve e solta, certamente inspirada na viagem que Caetano e Gil fizeram a Lagos, na Nigéria, para participar do II Festival Mundial de Artes e Cultura Negra (Festac). Então, se trata de uma música para cima, alto-astral, que cultua o prazer. Caetano, sobre a canção, falou ao Jornal do Brasil : “Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de que Odara era a mais bonita das canções que tinha feito ultimamente. Até hoje, ainda não encontrei bons argumentos em contrário

Mas a patrulha ideológica foi implacável: caetano, preso durante a ditadura e exilado, não teria o direito de cantar a felicidade. Teria um dever de engajamento. Luciana Xavier de Oliveira, no seu escrito “Disputas ideológicas, cultura negra e jornalismo cultural: a crítica musical carioca e os bailes de soul dos anos 1970”, pondera:

O debate em torno das patrulhas ideológicas se refere a um momento muito particular dos anos 1970, em que intelectuais e formadores de esquerda deliberadamente passaram a cobrar uma arte engajada, criticando manifestações que não se enquadrassem em um viés de contestação política. As patrulhas ideológicas estabeleciam claramente uma distinção de valor entre “músicas para dançar” e “músicas para pensar”. Caetano denunciava os cadernos de cultura dos principais jornais e revistas do país, que seriam dominados por uma esquerda repressora representada por críticos que pretendiam policiar a música popular no Brasil. Se os próprios integrantes da MPB poderiam ser criticados por produzir canções e discos que privilegiassem a festa, a alegria, o ritmo e a dança, o que dirá de todo um movimento periférico, popular, baseado em bailes, nos quais se ouvia e se dançava música americana? Risério (1981, p. 32) ainda complementa: “Pior ainda é que esses setores supostamente ‘progressistas’ falavam em nome das massas oprimidas do país exatamente para condenar uma das manifestações estéticas e sociais mais vivas dessas mesmas massas oprimidas.

Paulo César de Araújo prossegue:

Como se vê, mais do que a música em si, os críticos analisavam as atitudes, as opiniões, os posicionamentos políticos de Caetano e Gil. Contra isso insurgiu-se Caetano Veloso numa polêmica entrevista ao Diário de São Paulo. Ali ele afirmou que os cadernos de cultura dos principais jornais e revistas do país eram dominados por uma “esquerda medíocre, de baixo nível cultural e repressora” que pretendia policiar “essa força que é a música popular no Brasil”. E Caetano exemplificava citando nominalmente quatro críticos musicais: Tárik de Souza, José Ramos Tinhorão, Maurício Kubrusly e Maria Helena Dutra, que, segundo ele, distribuíam estrelinhas a discos e shows “fingindo que estão fazendo um trabalho da revolução operária, e se acham no direito de esculhambar com a gente, porque se julgam numa causa nobre; quando não tem nobreza nenhuma nisso“.

Para Caetano, seus críticos não tinham autoridade para questionar nenhuma atitude dele porque “são pessoas que obedecem a dois senhores: um é o dono da empresa, o outro é o chefe do partido” e que por isso eles se expressariam numa “linguagem completamente esquizofrênica”, de difícil assimilação para o leitor.

Ninguém entende os artigos que os imbecis escrevem porque é uma mistura de Roberto Marinho e Luiz Carlos Prestes.” Chamando a crítica militante de “canalha”, Caetano dizia que “se eles não se tornarem uma União Soviética e mandarem me matar, não conseguirão jamais nada comigo, a não ser que eles ganhem os tanques. Se eles tiverem os tanques nas ruas, nas mãos deles, aí eles poderão me impedir em alguma coisa. Fora isso, é impossível” porque “eles não são de nada. É uma canalha que eu digo que vou acabar, que a gente já acabou, já matou, são defuntos que fingem que estão vivos”.

Na contramão da crítica, Tarso de Castro afirmou em 31 de julho de 1977: Mas é realmente formidável que agora se esteja vivendo o repeteco das perseguições a Caetano Veloso. Ah, que belos críticos temos: se não se especializaram em música são totais admiradores do próprio fascismo. (…) Falemos de uma coisa boa: ‘Bicho’, de Caetano Veloso, é um disco lindo, limpo, de uma correção assustadora, irritante“.


Mais tarde, em 1991, Caetano Veloso, em reportagem de Marcia Cezimbra no Jornal do Brasil, apontava: Odara é uma confissão de namoro com as discotecas. Eu me sentia bem em me aproximar do movimento Black Rio que surgia na época, quando começaram os grandes bailes funks. Tinha voltado de uma excursão na África com o Gil, onde tive contato com a juju music da Nigéria. É um disco histórico, porque traz pela primeira vez a juju music para o Brasil em Two naira fifty kobo, que era o preço que a gente mais ouvia na Nigéria e o apelido do motorista que nos acompanhava. Fiz a música pensando no motorista. Tem Um índio, com uma levada reggae. Tem Leãozinho, deslumbrante. Uma vez fui cantar numa assembleia não sei de quê na Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Ia fazer um número para animar as pessoas, igual ao dessas, cantoras que cantam para os soldados na guerra, e recebi um bilhete de que levaria porrada se cantasse Leãozinho. Na hora ia cantar, mas fiquei com medo. Nem sabia direito que manifestação era aquela. Foi um amigo que me pediu para ir. Tem Tigresa, que cita na letra a discoteca Dancin’ Days, uma boate do Nelson Motta que eu adorava. Aliás, eu encontrava muito desses críticos de esquerda dançando nas discotecas.”

O tempo terminou fazendo com que Bicho, a despeito de todas as críticas, permanecesse. Não sei se poderia ser considerado propriamente um disco dançante. muitas de suas canções são canções para serem ouvidas. Talvez “Odara” e “Gente” seriam as músicas mais dançáveis. Mas, por outro lado, clássicos permaneceram, e “Leãozinho”, “Tigresa” , “Alguém Cantando” permanecem no repertório dos shows de Caetano até hoje.

Fontes:

Paulo César de Araújo: Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar Record, 2010  

Agência Senado (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/03/31/ha-40-anos-ditadura-impunha-pacote-de-abril-e-adiava-abertura-politica#:~:text=H%C3%A1%2040%20anos%2C%20ditadura%20impunha%20Pacote%20de%20Abril%20e%20adiava%20abertura%20pol%C3%ADtica,-Compartilhe%20este%20conte%C3%BAdo&text=No%20dia%201%C2%BA%20de%20abril,colocar%20o%20Parlamento%20em%20recesso.)

Luciana Xavier de Oliveira – Disputas ideológicas, cultura
negra e jornalismo cultural: a crítica musical carioca e os bailes de soul dos anos 1970

https://www.ibahia.com/caetano80anos/caetano-80-anos-veja-criticas-de-cinco-albuns-do-icone-da-mpb

 

Tom Zé – Menina amanhã de manhã (Vai) – Uma canção de protesto disfarçada

A canção “Vai” (Menina amahã de manhã), de Tom Zé, foi gravada no disco “Estudando o samba”, de 1976. A música, na sua gravação original, tem um arranjo delicado, só com violão, e num primeiro momento emula uma certa suavidade, em que a felicidade parece algo inexorável, inescapável…

Menina , amanhã de manhã
quando a gente acordar
quero te dizer que a felicidade vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens.
Na hora ninguém escapa
de baixo da cama ninguém se esconde
e a felicidade vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens vai
desabar sobre os homens.

Mas quando a gente se depara com o resto do texto, percebe que não é bem assim. Pois, na letra, começa a falar que a felicidade mete medo, fecha a roda, não tem saída… afinal, deve-se tomar cuidado com a felicidade? É algo de que não se pode escapar?

Menina, ela mete medo
menina, ela fecha a roda
menina, não tem saída
de cima, de banda ou de lado.
Menina, olhe pra frente
menina, tome cuidado
não queira dormir no ponto
segure o jogo
atenção (de manhã)

Então, numa apresentação no SESC Pompeia em 2010, Tom Zé explicou o sentido da canção:

No decorrer da apresentação, ele fala:

A gente aqui nessa desgraça, a gente não podia falar claramente, o que é que vocês estão pensando… era uma porra de uma ditadura. Uma ditadura, ditadura. Torce pescoço de gente, a gente tinha que falar camuflado. Esta música “menina amanhã de manhã”, Monica Salmaso gravou agora. Agora, já não podia, a música já era bonitinha não precisa ter nenhuma referência a ditadura quase… era só a beleza que Monica Salmaso é capaz de cantar.

Vocês vão subentender o que tem aí de cuidado pra ditadura não compreender o que a gente tá falando dela.  

Depois de cantar a primeira parte da música, ele faz uma pausa para explicar:

A ditadura fazia campanha dizendo que o Brasil era um pais felicíssimo: Ame-o ou deixe-o!

A felicidade fecha a roda, não tem saída! Tem que ser feliz! Se não for feliz vai ser preso!!

A gente que é Brasileiro reage até a opressão pelo menos a gente termina de perna aberta

No fim da canção, a música passa a ter um quê de poesia concreta:

Menina, a felicidade
é cheia de praça
é cheia de traça
é cheia de lata
é cheia de graça

Menina, a felicidade
é cheia de pano
é cheia de peno
é cheia de sino
é cheia de sono

Menina, a felicidade
é cheia de ano
é cheia de Eno
é cheia de hino
é cheia de ONU

Menina, a felicidade
é cheia de an
é cheia de en
é cheia de in
é cheia de on

Menina a felicidade
é cheia de a
é cheia de e
é cheia de i
é cheia de o

A capa do disco “Estudando o Samba”, com a capa branca e cordas e arame farpado ao fundo, fazia uma referência à ditadura, mas também ao aprisonamento ritmico do samba, e foi responsável pela retomada da carreira artística do cantor. Foi quando David Byrne se impressionou, já na década de 80, com a capa, com a musicalidade e originalidade, e fez com queTom Zé – que estava quase abandonando a carreira para voltar para Irará (interior da Bahia) para trabalhar num posto de gasolina – retomasse sua carreira, com projeção internacional.

Fonte:

https://www.brasildefators.com.br/2021/07/12/o-encontro-com-nossa-identidade-cultural-atraves-do-canto-de-monica-salmaso

Sangue Latino

O ano, 1973. O Brasil vivia o auge da Ditadura Militar, quando surgia na cena do rock brasileiro, uma banda pós tropicalista que revolucionou a Música. Falo dos Secos & Molhados, um projeto de João Ricardo, aos quais aderiram Gerson Conrad e o então desconhecido Ney Matogrosso, que era mais ator do que cator, mas tinha uma voz de tenorino diferenciada.

A banda se notabilizava pelas performances. Todos se apresentavam maquiados, e Ney Matogrosso cantava com gestos, rebolados e olhares que provocavam a plateia… quem ouvia a canção no rádio tinha dúvidas se quem cantava era homem ou mulher. Ney cantava com o torso nu. Tudo isso causou na época muita polêmica.

Toda esta forma de apresentação era pano de fundo para um conjunto de letras com uma forte conotação política, crítica social, que abordava desde racismo a violência policial, de mensagens contra a guerra nuclear, e inspitando-se em textos de poetas como Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes. Anna Maria Bahiana comenta:

Como música e como grupo, o Secos & Molhados calca-se em três elementos básicos e saudavelmente inovadores, dentro do panorama nacional: a bela e aguda voz de Ney Matogrosso […], o espetáculo altamente visual, com maquiagem e movimentação até mesmo sexualmente ambíguo, e a inclusão de textos de poetas – Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Solano Trindade, Vinícius de Moraes – em letras de canções. Nenhum desses elementos é gratuito. Estavam todos “pensados e repensados” no espírito de João Ricardo.

Numa entrevista a Marcelo Pinheiro, em 2012, João Ricardo falou:

“A necessidade é a mãe da invenção e era a época das bandas progressivas, que tinham um aparato sonoro poderoso. Éramos o contrário disso: despojados musicalmente, mas tínhamos referências teatrais e começamos a inventar saídas para não perder terreno, como usar roupas extravagantes e maquiagem. Percebemos que quanto mais nos aventurávamos naquilo que era bizarro, mais as pessoas ficavam estupefatas e atraídas. Alice Cooper fazia sucesso, nos Estados Unidos, o David Bowie, na Inglaterra, e plasticamente levamos as ideias do glam e do glitter ao extremo. Tivemos a sorte de envolver em torno de nós milhões de pessoas de todas as camadas sociais, de todos os credos, cores e idades, algo que não aconteceu nem ao Bowie nem ao Alice Cooper.”

Assim, com o tronco nu, a cara pintada e a voz diferenciada de Ney Matogrosso, foi foi lançada a canção “Sangue Latino”, com direito a clipe no “Fantástico”. Foi a música que abriu as portas para o grupo, numa letra de Paulinho Mendonça para a música de João Ricardo.

Paulinho Mendonça, numa entrevista a Rodrigo Faour, afirmou que aquele momento político em que o Brasil vivia gerava “uma obrigação de ter que se manifestar, que levou a um momento de muita qualidade, muita coisa importante”. Mas que também, pelo advento da censura, “Em termos de poesia, a gente teve que desenvolver os processos metafóricos“.

O interessante é que as mensagens do disco como um todo, com muita crítica social, acabou ficando em segundo plano, pois o que escandalizava era a performance. Tanto que, como conta na sua biografia (Vira-lata de Raça, Ramon Nunes Mello, Tordesilhas, 2018), quando os Secos & Molhados foram se apresentar pela primeira vez na TV Globo, recomendaram que Ney não olhasse diretamente para a câmera.

Mas, para além de toda a repercussão da banda, é certo que, quando se analisa a música “Sangue Latino”, vem logo à mente um famoso livro de Eduardo Galeano, “As veias abertas da América Latina”, escrito em 1971.

O livro retrata a história da América latina desde o período da colonização até a contemporaneidade, retratando a exploração econômica, a dominação política e o sangue derramado dos nativos e dos explorados. A canção “Sangue Latino pega este mote, e faz o lamento do povo subjugado na América Latina.

Em artigo de Suelen Santana Silva e Pedro Marques Neto (Secos & Molhados: para ouvir, olhar e comer), a canção é tida como um desabafo, um grito do povo explorado da América Latina. Embora o sangue do povo não seja propriamente latino (pois é sangue índio, negro, mestiço), a referência é ao sangue do exlporado. Dizem os autores:

A canção concentra em si o próprio legado da colonização, sendo uma espécie de sangue cultural e artístico desse processo. Trata-se, assim, de uma confissão em primeira pessoa, no tempo pretérito perfeito, como podemos observar já na primeira palavra de sua letra: “Jurei” e, em seguida, “rompi”, “quebrei”, “traí” e “lancei”, que, em sequência, compõe outro jogo rítmico e de rima.

É possível estabelecer uma personificação do continente, na exploração dos povos originários da América, desde o processo de colonização, como também a difícil realidade da América Latina, em que havia ditaduras militares no Paraguai na década de 50, no Brasil, Bolívia, Peru e Argentina na década de 60, além de Chile e Uruguai na década de 70.

E assim quando a letra afirma “Jurei mentiras e sigo sozinho”, pode se referir às juras aos deuses e costumes ocidentais, no processo colonizatório, como podem ser também as delações de companheiros obtidas mediante tortura. As mentiras para salvar a si próprios, a mentira que gera solidão…

Quando, no segundo verso, a expressão “assumo os pecados” ganha um ar de confissão. Confissão dos pecados dos cultos aos deuses pagãos, ou será os pecados dos crimes políticos? Percebe-se que justamente o sentido metafórico da canção permitira uma interpretação sobre o passado, bem como ao presente da época.

O autor da letra, Paulo Mendonça (na já citada entrevista a Rodrigo Faour), disse, em 2020, que escreveria a mesma letra com a mesma emoção e o mesmo sentimento.

No verso “Os ventos do Norte não movem moinhos”, é muito clara uma visão decolonialista, em que os ventos vindos do hemisfério norte não movem moinhos, seja porque quem trabalhava, quem moviam os moinhos era o povo explorado da América, como também quem inspira não são os colonizadores.

Mas, diante da exploração, somente resta o gemido. De dor. De exploração. Mas que, como se verá adiante, de quem não se entrega.

“Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos, meu sangue latino, minha alma cativa”. Depois do gemido, a constatação da vida, dos mortos, dos caminhos tortos… e a alma que resta cativa, como se a história dos povos da Américsa Latina tivesse sido distorcida, ceifada e capturada.

No referido livro de Eduardo Galeano, há o relato de como os conquistadores espanhóis como Hernán Cortés seguiram dizimando os astecas com espadas e tiros de arcabuz. O Império sucumbia com suas armas primitivas, e os povos originários nada podiam fazer. Lhes restava gritar, jogar suas lanças no ar, ver suas mulheres serem violentadas e seus filhos mortos.

No entanto, na parte seguinte, há a luta, a resistência, afinal, “E o que me importa é não estar vencido”. E por isso, mesmo tendo rompido tratados, tradições ritos, ancestralidade, a lança continua viva, jogada no espaço, e junto com ela um grito, um desabafo, e, afinal de contas, pode-se perder a terra, a língua, a religião, mas o sangue latino resiste.

No fim, sangue latino é um libelo de resistência à opressão, de quem, mesmo oprimido, cativo, subjugado, não se dá por vencido, e deixa viva a esperança.

Numa entrevista, João Ricardo fala sobre a composição:

‘Sei lá… apesar de ser português, moro há muitos anos no Brasil. Sangue Latino nasceu de um estouro: um dia estava lendo uns poemas de um amigo e li aquilo. Puxa, na mesma hora peguei a viola e pintou a música. Nasceu assim. E esta coisa latina sempre pinta nos meus discos” 

Fontes:

BAHIANA, A. M. Nada será como antes: MPB anos 70 – 30 anos depois. 1a ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2006

http://taratitaragua.blogspot.com/2021/07/joao-ricardo-ex-secos-molhados-lanca.html

Secos & Molhados: para ouvir, olhar e comer (Suelen Santana Silva e Pedro Marques Neto)

SANGUE LATINO NO PALCO: NUANCES DE DECOLONIALIDADE NA ARTE DE NEY MATOGROSSO (Roberto Remígio Florêncio e Pedro Rodolpho Jungers Abib)

https://marceloxpinheiro.medium.com/uma-noite-com-secos-molhados-b384ce229200Re

Revista Brasileiros, MARÇO 2012

“Aqui na terra tão jogando futebol” – A história de “Meu caro Amigo”. De Chico Buarque para augusto Boal

Em épocas de comunicação quase instantânea, você imaginaria uma correspondência feita por intermédio de um isco? Através de uma canção? 

Foi justamente esse o mote que inspirou Chico Buarque a escrever uma carta-canção para seu amigo Augusto Boal, que estava exilado em Portugal. 

Chico Buarque e Augusto Boal

Augusto Boal, como consta do seu próprio site, “foi um dos dramaturgos que mais contribuiu para a criação de um teatro genuinamente brasileiro e latino americano. Desde os primórdios de sua carreira, no teatro de Arena, até o Teatro do Oprimido, técnica que o tornou mundialmente conhecido, passando pelas Sambóperas, sua preocupação foi a de criar uma linguagem que pudesse traduzir a realidade do seu país, uma maneira brasileira de falar, sentir e pensar”.

Em 1971, Boal tinha sido o, foi preso e torturado, acusado de ser o portador de uma carta cubana, na qual se descreviam armamentos, supostamente entregue ao líder de uma organização comunista no Brasil. Então exiluou-se em Buenos Aires. Em 1976, Só que Augusto Boal estava exilado em Portugal (também passara antes por Argentina, Peru, e depois iria a Paris), e reclamava da falta de notícias do Brasil. 

Chico então fez uma carta, escrita em julho de 1975, e encaminhou junto com ela uma fita cassete com o choro de Francis Hime e a letra que ele colocou.

Assim, de forma bem-humorada, Chico conta a rotina do Brasil, em que se joga futebol, tem samba, choro e rock’n roll, mas que a coisa no Brasil está preta, restando então, as alternativas de fumar, de beber e  de se amar pra esquecer um pouquinho as coisas tristes ue aconteciam por aqui. 

Como não dá pra fazer uma visita, a tarifa do telefone “não tem graça” e o correio “anda arisco”, Chico acaba fazendo uma canção histórica, narrada assim no livro organizado por Wagner Homem – História das canções”. A Cecília referida na obra é a esposa de Augusto, Cecília Boal… A Marieta, é Marieta Severo, então casada com Chico. Augusto Boal faleceu em 2009. 

O teatrólogo Augusto Boal, exilado em Portugal, vivia se queixando de que  os amigos não mandavam notícias do Brasil. Na ocasião, Chico estava tentando  fazer a letra para uma música romântica, mas não conseguia avançar. 

Pediu a  Francis Hime um chorinho — e, utilizando como refrão “a coisa aqui tá preta”,  atualizou a correspondência e informou não só o amigo, mas todos os  brasileiros, sobre a situação do país. 

Em depoimento para o livro Chico  Buarque do Brasil, organizado por Rinaldo de Fernandes, Boal descreve a  emoção de ouvir a homenagem pela primeira vez:  

 Foi assim, tranquilo e a gosto, que me lembrei do dia em que estávamos  almoçando bacalhau à Braz — com Paulo Freire, sua esposa e sua  equipe, Darcy Ribeiro e outros amigos exilados — na casa onde  morávamos Cecília, eu e nossos filhos, em Lisboa, no Campo Pequeno —  onde ainda se humilham touros com bandeirolas coloridas espetadas no  sangue, sendo retirados da arena depois da faina, vivos, mas  envergonhados, por doze vacas corpulentas com guizos no pescoço! —, quando, na sobremesa, minha mãe visitante me disse que tinha trazido do Brasil uma carta do Chico.  Pusemos a carta-cassete na vitrola e, pela primeira vez, ouvimos “Meu caro amigo”, com Francis Hime ao piano. Falávamos tristezas, e ouvimos um canto da esperança.

 Chico resistia, aqui no Brasil, escrevendo “Apesar de você” e “Vai passar”; e nos ajudava a resistir, lá fora, cantando sua amizade. Sua  lírica era a mais pura poesia épica: seu caro amigo eram todos os nossos  amigos, e todos os nossos amigos eram seus.

No trecho acima da carta conta um pedaço da letra que não entrou na música definitiva que falava “Meu caro amigo eu sei que é triste a situação/ sei que a saudade está danada/ mas se você quiser a minha opinião/você não está perdendo nada”

Boal conta, no link abaixo, como foi:

“Estava o Darcy Ribeiro, na minha casa, em Portugal, estava o Paulo Freire com uma boa parte da equipe dele. Estavamos todos almoçando lá, e minha mãe falou: “olha, eu esqueci de te avisar que eu trouxe uma carta do Chico”. Porque eu tinha escrito para o Chico umas três, quatro cartas e ele não tinha respondido. Aí eu falei “então tá bem, me dá que depois eu vou ler ” Aí a mãe falou “põe na vitrola” e eu falei “como vai colocar a carta do Chico na vitrola?” Ela me deu uma cassetezinha nós pusemos na vitrola e era “Meu caro amigo” cantada por ele com o Francisa Hime no Piano, só tinha isso, o piano e ele cantando, e ós tomamos um susto especialmente minha mulher a Cecília que foi a primeira argentina a entrar na música popular brasileira porque tem uma horaque ele fala assim “A Marieta manda um beijo para os seus Um beijo na família, na Cecília e nas crianças”. Foi uma emoção muito grande porque eu estava exilado há muitos anos já, e o exilado quando ele recebe uma carta, mesmo escrita à mão, não precisa ser gravada com cantor e compositores tão bons quanto esse dois, é muito importante, a solidariedade de quem fica é fundamental pra quem vai embora”

https://fb.watch/hiW3CEa_PZ/

Abaixo, a letra definitiva

Meu caro amigo, me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando que também sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo, eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

É pirueta pra cavar o ganha-pão
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo, eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita careta pra engolir a transação
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo, eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal
Adeus!

Fontes: HOMEM, Wagner. Histórias de Canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya Brasil, 2009.

Vida e Obra

O Mestre-sala dos Mares (João Bosco/Aldir Blanc). Homenagem ao Almirante Negro, João Cândido

Algumas músicas se tornam mais interessantes quando se descobre a história por trás da canção. As musas, as inspirações, as circunstâncias em que uma música surgiu podem torná-la mais bonita. É o caso, sem sombra de dúvida, da canção “O mestre-sala dos mares“, de João Bosco e Aldir Blanc, em 1975, em homenagem ao marinheiro João Cândido, conhecido como “O Almirante Negro“, que liderou a “Revolta da Chibata”, em 1910. 

Para quem não sabe, a Revolta da Chibata foi um movimento idealizado por Francisco Dias Martins, o “Mão Negra” e os cabos Gregório e Avelino, e depois liderado pelo cabo da Marinha João Cândido, o “Almirante Negro”,  semi-analfabeto, que se insurgia contra os desmandos na marinha: o descontentamento com os baixos soldos, a alimentação de má qualidade e, principalmente, os humilhantes castigos corporais (chibatadas), que tinham sido reativados pela Marinha como forma de manter a disciplina a bordo.Por isso a revolta, iniciada em novembro de 1910, ficou conhecida como Revolta da Chibata.

Os marinheiros assumiram o comando de navios, ameaçando bombardear o Rio de Janeiro, inclusive o Palácio do Governo, caso os castigos corporais não fossem suprimidos. Em Princípio, o governo de Hermes da Fonseca cedeu. Foram aprovadas  medidas que acabam com as chibatadas, bem como  um projeto que anistia os amotinados. 

Mas a anistia não durou dois dias. Em 28 de novembro, os marinheiros foram surpreendidos pela publicação do decreto número 8400, que autorizava demissões, por exclusão, dos praças do Corpo de Marinheiros Nacionais “cuja permanência se torne inconveniente à disciplina“. O Governo traiu os revoltosos, que foram presos, perseguidos, e encaminhado para uma prisão subterrânea na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. Quase todos morreram sufocados, pois a cela era subterrânea, sem ventilação e estava cheia de cal. Apenas João Cândido sobreviveu, juntamente com o soldano Naval João Avelino. João Cândido foi perseguido, considerado louco e morreu aos 89 anos, em 1969, quase no anonimato, como vendedor de peixes.

João Cândido

No auge da ditadura militar, João Bosco e Aldir Blanc fizeram uma música em homenagem ao “Almirante Negro”. Numa entrevista, Aldir Blanc afirmou:  

“Tivemos diversos problemas com a censura. Ouvimos ameaças veladas de que a Marinha não toleraria loas e um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais, etc. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não mutilar o que considerávamos as idéias principais da letra. Minha última ida ao Departamento de Censura, então funcionando no Palácio do Catete, me marcou profundamente. Um sujeito, bancando o durão, (…) mãos na cintura, eu sentado numa cadeira e ele de pé, com a coronha da arma no coldre há uns três centímetros do meu nariz. Aí, um outro, bancando o “bonzinho”, disse mais ou menos o seguinte:

 – Vocês não então entendendo… Estão trocando as palavras como revolta, sangue, etc. e não é aí que a coisa tá pegando…

– Eu, claro, perguntei educadamente se ele poderia me esclarecer melhor. E, como se tivesse levado um “telefone” nos tímpanos, ouvi, estarrecido a resposta, em voz mais baixa, gutural, cheia de mistério, como quem dá uma dica perigosa:

– O problema é essa história de negro, negro, negro…”

Decidimos dar uma espécie de saculejo surrealista na letra para confundir, metemos baleias, polacas, regatas e trocamos o título para o poético e resplandecente “O Mestre-Sala dos Mares”, saindo da insistência dos títulos com Almirante Negro, Navegante Negro, etc. O artifício funcionou bem e a música fez um grande sucesso nas vozes de Elis Regina e João Bosco. Tem até hoje dezenas de regravações e foi tema do enredo “Um herói, uma canção, um enredo – Noite do Navegante Negro”, da Escola de Samba União da Ilha, em 1985.

Noutra ocasião, Aldir Blanc disse:

O João [Bosco] no início da carreira era da [gravadora] RCA. Havia um funcionário lá, muito malandro, que levava de presente dezenas de LPs para aqueles caras da censura. Um dia, ele encosta na gente e diz assim: “Eles estão pedindo a tua ida lá pra falar sobre ‘Almirante Negro'”.

Aí eu fui ao Palácio do Catete, para onde tinha se mudado a censura, procurei o setor.

Vi uma coisa cômica. Logo na entrada, tinha três escrivaninhas iguais, com três sujeitos já bem idosos, de cabelo branco. Aí eu sentei na primeira escrivaninha, onde mandaram eu sentar, o cara me fez algumas perguntas e disse: “Passa para a segunda escrivaninha”.

O cara me fez exatamente as mesmas perguntas e disse: “Passa para a terceira escrivaninha”.

Outra vez a mesma merda, e o cara falou “pode entrar”. Ou seja, aquilo era um tremendo cabide para policial aposentado ou qualquer coisa assim. Eu entro -aí é que eu acho um negócio revoltante-, vem um cara de paletó e gravata, com o paletó aberto com o coldre aparecendo, andando de um lado para o outro. A coronha do revólver só faltava passar no meu nariz.

João Bosco e Aldir Blanc

O cara de repente diz para mim assim: “Mas, então… Vocês estão errando o foco. Vocês estão mudando a letra, insistindo, insistindo e o problema é ó…”. E esfregava o dedo na pele do braço. Eu não entendi. “Toda hora esse troço na letra aí, o negro isso, o negro aquilo.”

Isso me deu um mal-estar tremendo. E eu fui salvo por um escândalo. Um cara na sala ao lado começa a gritar que tinham que matar o Ney Matogrosso. Porque ele tinha entrado em casa e encontrado um neto dançando com uns panos imitando o Ney Matogrosso.

Eu nunca consegui saber se aquilo era verdade ou se era um processo de intimidação para sobrar para mim, porque era meio teatral demais, meio armado demais.

Aí o cara volta, fica parado assim, abre o paletó, coloca a coronha quase dentro da minha narina e diz: “Acho que deu para entender, né, cara? Esse negócio do negro tá pegando!”. Aí eu saio de lá zonzo, tomo uma cerveja a um quilômetro dali, falo com o João sobre esse troço e a gente transforma em “O Mestre-Sala dos Mares”.​

A música, para ser aprovada pela censura, sofreu várias modificações, que podem ser vistas na tabela abaixo:

Fonte: http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/revoltachibata.html; http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/canhoes-chibata-433714.shtml

https://www.folhape.com.br/diversao/diversao/musica/2020/06/01/NWS,142441,71,581,DIVERSAO,2330-ALDIR-BLANC-ENTREVISTA-COMPOSITOR-LEMBRA-COMO-VERTEU-HISTORIAS-REAIS-CANCOES.aspx

quinta 15 setembro 2011 06:21 , em MPB

A briga de Beth Carvalho com Elis Regina por conta de “Folhas Secas”

“Folhas Secas” é uma das maiores composições de Nelson Cavaquinho, em parceria com Nelson Antônio da Silva e Guilherme de Brito. Está na história do cancioneiro nacional. Trata-se de uma homenagem à Estação Primeira de Mangueira, música cantada num tom nostálgico, em que o eu-lírico, ao pisar em folhas caídas de uma mangueira, se lembra da sua escola, na qual, por inúmeras vezes, subiu o morro cantando…

Em seguida, vem um anúncio de um tempo em que a velhice vem chegando e que o cantor não poderá mais cantar, mas sentirá saudade de seu violão e da sua mocidade, e uma frase que tem um duplo sentido “e assim vou me acabando…”, de cantar? Ou será que tem a ver com o envelhecimento?

O fato é que a canção rendeu muitas polêmicas, e não por conta de sua letra. Sua gravação é que gerou polêmicas. Na verdade, Elis Regina e Beth Carvalho gravaram a música no mesmo ano (1973). A versão de Beth, um samba, com direito a “laraiá” e tudo; a versão de Elis é quase um samba-canção, com uma interpretação mais intimista e com um andamento mais lento.

Três livros contam versões diferentes sobre o tema:

Na biografia de Elis escrita por Arthur de Faria, consta que Elis teria ouvido a canção na fita que Beth Carvalho enviara a César Camargo Mariano e teria “pulado na frente”;

Cumpre ressaltar que César era quem faria os arranjos do disco de Beth Carvalho, mas casaria com Elis naquele ano (1973).

Danilo Casaletti, no livro organizado por Célio Albuquerque (1973 – O ano que reinventou a MPB), conta que César teria mostrado para Elis, ao piano em casa, a canção em que estava trabalhando para o disco de Beth. Elis teria ficado encantada e pediu a música para Nelson Cavaquinho. O compositor, mesmo já tendo prometido a faixa a Beth, foi incapaz de dizer “não” ao pedido – sobretudo pelo fato de que Elis tinha mais destaque, por ser contratada de uma grande gravadora (Philips).

Sérgio Cabral, na Biografia que escreveu sobre Tom Jobim, conta que César Camargo ouvia a fita em casa, com a voz de Nelson Cavaquinho, tentando elaborar o arranjo para o disco de Beth. Elis escutou e não pensou duas vezes: “Que Beth Carvalho, que nada! Este samba vai para o meu disco”.

Mas quem terminou por trazer novas luzes sobre o tema foi Leonardo Bruno, no livro Canto de rainhas – O poder das mulheres que escreveram a história do samba. E quem assumiu a responsabilidade foi Roberto Menescal, compositor e produtor do disco de Elis.

    No epicentro do terremoto estava César Camargo Mariano, amigo que Beth havia convidado para fazer o arranjo do compacto Só quero ver, em 1971, e que chamou novamente para a produção de Canto para um novo dia. Na seleção de repertório para o no LP, Beth escolheu a canção de Nelson Cavaquinho e mostrou a César. O que Beth não sabia era que ele estava namorando Elis Regina. Pouco tempo depois, Beth descobriu que o disco Elis, que seria lançado pela Philips, traria “Folhas secas”. A sambista ficou furiosa. Apressou sua gravação da canção e pediu à Tapecar que colocasse no mercado um compacto simples com o registro, o que foi feito com velocidade razoável.

    Mas as “Folhas secas” de Elis chegaram primeiro as rádios, com formação de jazz (piano-baixo-bateria) e uma percussão suave, numa interpretação mais lenta. As de Beth vieram logo depois, com a instrumentação mais tradicional de samba, abertura com direito a “laralaia”, andamento mais pra frente e acompanhamento do conjunto nosso samba. Ambos os arranjos são de César Camargo Mariano.

    As duas versões fizeram sucesso radiofônico. Mas a que entrou para a história foi mesmo a gravação de Beth Carvalho, até por ter na faixa o violão de Nelson Cavaquinho, em seu estilo peculiar, tocado com apenas dois dedos. O curioso é que Nelson também lançou um disco no mesmo ano de 1973, considerado o melhor de sua carreira, e resolveu incluir “Folhas secas” – que, no fim das contas, teve três registros memoráveis num espaço de poucos meses.

    Mas, afinal, como a música escolhida por Beth foi parar no disco de Elis? Há algumas versões para a história, e um consenso de que a ligação de César Camargo Mariano com Elis foi o caminho para que a fita chegasse aos ouvidos da Pimentinha.

        A versão de Beth Carvalho é que ela adorava o trabalho de César Camargo e achou natural convidá-lo para fazer os arranjos e a regência do novo disco. Escolheu o repertório e mandou para ele numa fita de rolo. Tempos depois, ouviu o boato de que Elis Regina teria gravado “Folhas secas” e telefonou para o músico, que negou. Mas o zum-zum-zum foi aumentando. Nesse meio tempo, encontrou César no trânsito, emparelhados num sinal. Abriu a janela e perguntou: Ô, César, qual é o nome da música do Nelson Cavaquinho que a Elis vai gravar?” Ele disse que não se lembrava. Uma semana depois, uma jornalista prima de Beth, que entrevistara Elis, tirou a dúvida: a Pimentinha havia gravado “Folhas secas”. Elis não me deu nenhuma satisfação por isso. Fiquei muito chateada, nunca mais falei com ela”, contou Beth. O rompimento com César Camargo também durou mais de uma década.

    Beth Carvalho deixou evidente seu desagrado com o episódio quando foi lançar o disco no Sambão, da TV Record, programa apresentado por Elizeth Cardoso, uma das “rivais” de Elis. Ao ser anunciada para cantar “Folhas secas”, Beth entrou no palco, pegou o microfone e, já com a banda dando a introdução da música, aproveitou para dar uma alfinetada: “Antes eu quero dar uma palavrinha. Essa música que eu vou cantar é de um compositor que eu adoro, Nelson Cavaquinho, em parceira com Guilherme de Brito. Mas antes de eu gravar, eu cantei essa música num teatro, e Elizeth Cardoso estava presente. Eu soube que ela adorou a música e queria gravar também. Mas quando ela descobriu que eu ia gravar, ela disse: ´Não, então se a Beth já vai gravar, mais tarde eu gravo; Por isso é que ela é a Divina Elizeth Cardoso! (vídeo abaixo)

    Em entrevista para este livro, Roberto Menescal dá uma nova versão, assumindo a responsabilidade pelo entrevero e de certa forma absolvendo César e Elis. Menescal, autor da primeira música gravada por Beth, “Por quem morreu de amor”, a esta altura era produtor de Elis Regina, e muito amigo do casal Elis-César Camargo. Além disso, atuava como diretor artístico da gravadora. “Eu fiz uma ´baianada` com a Beth. César era casado com a Elis e estava produzindo o LP da Beth Carvalho. Ele fez um arranjo da música ´Folhas secas’, do Nelson Cavaquinho, e me mostrou. Eu disse: Eu vou gravar essa música. O César falou: ´Não, Menescal, eu não posso fazer isso com a Beth. Respondi: ´Fala que fui eu que peguei a música. Fizemos um arranjo pra Elis e estouramos. Beth nunca me falou nada, mas deve ter ficado mordida. César ficou mal com a situação. Elis não sabia de nada. Depois eu mandei um recado pra Beth Carvalho: Beth, me desculpe, mas pelo meu artista eu faço qualquer coisa.’”

    Enfim, Roberto Menescal assumiu a responsabilidade pela polêmica que fez com que Elis e Beth Carvalho jamais se falassem de novo… Paulinho Lima, no seu livro, “Anjo do Bem, Gênio do Mal”, disse ter perguntado a Nelson Cavaquinho qual das gravações ele gostava mais. Ele, de forma relutante, disse: “A de Beth…”

“Como fosse um par, que nessa valsa triste…” A história de Bandolins, de Oswaldo Montenegro

Foi em 1979 que Oswaldo Montenegro gravou “Bandolins”, música sobre uma moça que dança sozinha, como um par…

A música foi inspirada, ao que consta, na cunhada de Zé Alexandre, amigo do cantor, que era uma bailarina que tinha um namorado também bailarino. O casal, contudo, teve que se separar, pois o namorado foi morar na França, e a bailarina, por ser menor, não pôde acompanhá-lo, pois a família da moça não permitiu. Oswaldo diz que, na música, tentou retratar “esta moça dançando sozinha”

A história é retratada por Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano, no segundo volume do livro “A canção no tempo” 

Bandolins” foi um presente de aniversário que Oswaldo Montenegro ofereceu a uma amiga bailarina. A intenção era reanimá-la, pois na ocasião a moça estava inconformada por seu namorado ter viajado para a França, enquanto ela, menor de idade, fora impedida de acompanhá-lo.

Daí o imaginário ‘pas de deux’ narrado na letra, que ela dança sozinha: “Como se fosse um par / que nessa valsa triste se desenvolvesse / ao som dos bandolins / e como não e por que não dizer / (…) / ela valsando só na madrugada / se julgando amada / ao som dos bandolins…”

Oswaldo estava mesmo a ponto de desistir da carreira, quando surgiu a oportunidade de inscrever “Bandolins” no Festival 79 de Música Popular da TV Tupi. Na realidade, ele não se sentia muito esperançoso de um bom resultado. 

Foi nesse estado emocional que Oswaldo pisou o palco do Anhembi, em São Paulo, para mostrar sua valsa, ao lado do amigo José Alexandre. Mas, para sua surpresa, a reação da platéia ao ouvir “Bandolins” foi altamente positiva, tendo a canção conquistado o terceiro lugar e projetado Oswaldo bem mais até do que os dois concorrentes que chegaram à sua frente. Então, além de um compacto inteiro, a Warner deu- lhe o segundo elepê e sua carreira deslanchou.

 (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Oswaldo Montenegro, no vídeo acima, conta:

“Bailarina: ela namorava um bailarino que foi dançar na França e ela não pôde ir, ela perdeu o partner e o namorado ao mesmo tempo, e eu fiz para ela como presente de aniversário. Por isso que a música fala de uma mulher que está se julgando amada e dançando um ‘pas de deux’ quando na verdade ela está sozinha, ela está louca achando que está acompanhada, é o retrato dela… foi um presente para ela….”

Como fosse um par que
Nessa valsa triste
Se desenvolvesse
Ao som dos bandolins

E como não,
E por que não dizer
Que o mundo respirava mais
Se ela apertava assim?
Seu colo como
Se não fosse um tempo
Em que já fosse impróprio
Se dançar assim

Ela teimou e enfrentou
O mundo
Se rodopiando ao som
Dos bandolins

Como fosse um lar
Seu corpo a valsa triste
Iluminava e a noite
Caminhava assim

E como um par
O vento e a madrugada
Iluminavam a fada
Do meu botequim

Valsando como valsa
Uma criança
Que entra na roda
A noite tá no fim

Ela valsando
Só na madrugada
Se julgando amada
Ao som dos bandolins…

Deus, o Diabo, o carnaval e a censura

Em 1973, a censura fazia parta do cotidiano dos artistas brasileiros. Depois do AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, institucionalizou a censura, vetando, mutilando e reprimindo qualquer manifestação que pudesse ser interpretada como sendo nociva ao Regime.

Mas se engana quem pensa que a censura se limitava a questões político-partidárias. Havia censura por questões morais, por questçoes de “bom gosto” ou até mesmo por ignorância, pura e simples.

Uma das canções que pode ilustrar como a atuação da censura no Brasil, para além do alinhamento com a ditadura militar, beirava o moralismo ou mesmo a paranoia é a marcha carnavalesca, “Deus e o Diabo”, de Caetano Veloso, composta em 1973, mas somente gravada em 1977.

A música é uma ode ao carnaval. Uma marcha simples, que alude ao carnaval como antítese do medo e do pavor, e que se manifesta nas ruas do Rio e da Bahia.

Você, tenha ou não tenha medo

Nego, nega, o carnaval chegou

Mais cedo ou mais tarde acabo

De cabo a rabo com essa transação de pavor

O carnaval é invenção do diabo

Que Deus abençoou

Deus e o diabo no Rio de Janeiro

Cidade de São Salvador

Não se grile

A rua Chile sempre chega pra quem quer

Qual é! qual é! qual é!

Qual é! qual é!…

Quem pode, pode

Quem não pode vira bode

Foge pra Praça da Sé

Cidades maravilhosas

Cheias de encantos mil

Cidades maravilhosas

Os pulmões [bofes] do meu Brasil

No entanto, a música incomodou a censura No livro “Mordaça: Histórias de Música e censura em tempos autoritários” (João Pimentel e Zé McGill. Sobnora, 2021), narra-se um pouco do episódio:

Voltando ao tempo das vacas gordas da censura, em 1973, a marchinha “Deus e o Diabo” foi outra composição de Caetano a gerar atrito com os censores, que muitas vezes se colocavam na condição de educadores, tutores da sociedade – como se esta fosse uma criança indefesa que precisa ser protegida da realidade. A música foi vedada e, no verso do documento oficial com o parecer do censor, há a seguinte justificativa:

  1. Conteúdo desrespeitoso à imagem da pátria (por conta do verso ´Dos bofes do meu Brasil`);
  2. Figura semântica insurrecional (´A Rua Chile sempre chega pra quem quer`);
  3. Possível distorção da pronúncia em ´Quem pode, pode.”

Além da justificativa, estão marcados com um X os versos “Dos bofes do meu Brasil”, “A rua Chile sempre chega pra quem quer” e “O carnaval é a invenção do Diabo que Deus abençoou”.

Neste último caso, não é difícil supor que o verso tenha se tornado antipático aos censores por motivos de religião. Já no verso da rua Chile, a suposta “figura semântica insurrecional” estaria ligada ao fato de que a ditadura de Pinochet havia se instalado no Chile no mesmo ano de 73. Por tanto, o censor julgava que aquela seria uma metáfora em alusão à insurreição contra a ditadura chilena. Quanto à “possível distorção da pronúncia” em Quem pode, pode”, podemos presumir que havia um receio de que, na gravação, Caetano contasse o verso no passado, mudando a conjugação do verbo de “pôde”, ou, quem sabe, trocando a letra p pela letra f…

Nota-se, também os grifos aos versos “mais cedo ou mais tarde acabo com essa transação de pavor”, o que pode ser uma alusão ao fim da ditadura militar.

Manchete de O Globo, 21/12/73

Voltando ao Livro de João Pimentel e ZÉ McGill:

Conversando sobre a censura a “Deus e o Diabo”, Caetano se lembra do contratempo com a palavra “bofes”, mas não com os outros versos: “Eles falaram que não poderia ficar o verso Os bofes do meu Brasil; e eu disse:Mas bofe quer dizer pulmão. Eu estou dizendo que são os pulmões do Brasil.Eles achavam que “bofe” era uma palavra chula. As atrizes de teatro rebolado chamavam os homens, os caras que elas pegavam, de bofes e as bichas adotaram essa gíria das vedetes. Eu botei Os bofes do meu Brasil’ na letra, que tem um ar de conversa de bicha, mas, ao mesmo tempo, era porque eu estava dizendo: Rio de Janeiro/Cidade de São Salvador/ os pulmões do meu Brasil. Então, eu falei: Se vocês estão grilados com a palavrabofes, eu boto pulmões’ mesmo... E tem uma vantagem: do ponto de vista da prosódia, pulmões’ fica até melhor, porquebofestem um defeito de prosódia. Sobre os outros versos nunca me disseram nada. Pode ser que eles tivessem essas questões lá entre eles, mas nunca chegarem até mim. Só chegou o bofe. Eu mudei pra pulmões’ e a música foi liberada. Agora, ´O carnaval é invenção do Diabo que Deus abençoou` é uma coisa subversiva para o lado católico que eles tinham, mas não me pediram pra mudar isso, não.”    

Ainda assim, segundo reportagem do Globo, de 30/12/73, ainda assim a expressão “pulmões” foi desaconselhada, porque eventualmente ela poderia ser substituída pelo populares por algum terno chulo… O censor certamente desconhece Salvador e a Rua Chile, umas das ruas famosas do circuito do carnaval baiano, sobretudo nos anos 70. O censor, todavia, pensava referir-se à situação política do Chile, quando o General Pinochet instituiu uma ditadura após a deposição de Salvador Allende, em detembro de 1973.

Mas a música acabou liberada com a substituição de “bofes” por “pulmões”, e foi gravada no álbum “Muitos carnavais”, em 1977

Revista Amiga 15/01/1974

As musas por trás da canção “Tigresa”, de Caetano Veloso

A canção “Tigresa”, de Caetano Veloso, sempre gerou controvérsias de quem seria a musa que inspirou a canção. A necessidade de se personificar a mulher “de unhas negras e íris cor de mel” gerou uma série de discussões, que se iniciaram com o lançamento da música, no álbum Bicho, de 1977.

Na verdade, Tigresa é um mosaico de várias mulheres, que Caetano contou, à época, e depois foi publicado na compilação “O mundo não é chato”

Gente” ainda não estava de todo pronta quando fiz, sem pensar, a melodia do que veio a se chamar “Tigresa”. Algumas pessoas estavam conversando aqui na sala de som da minha casa e eu não estava a fim de prestar atenção na conversa delas. Fiquei tocando violão e assoviando e cantarolando qualquer coisa. Fui dormir sem planos de voltar a pensar nela, uma vez que meu projeto era compor canções doces suingadas. Mas a música era linda mesmo e resolvi fazer uma letra. Mas não sabia o que dizer com palavras, uma coisa que ficasse dentro do clima que já era para nós essa melodia. Mas também não quis forçar muito a cabeça“.

Portanto, primeiro veio a música. A inspiração da letra veio depois. Conta Caetano:

Um dia estava com Moreno vendo um seriado de televisão no qual apareciam uns meninos indianos que andavam com um elefante e encontravam outro menino, que era selvagem e não sabia falar e reagia como um felino. Quando eles tentavam se aproximar do menino selvagem, um grande tigre vinha protegê-lo. O menino tinha sido criado por aquele tigre que, na verdade, era fêmeo. O fato é que pensei que tigre fêmeo diz-se tigresa, e aí estava a palavra.  Dessa palavra parti para inventar uma letra que mantivesse o clima da música. Imaginei logo uma mulher e queria algo assim como uma história. Essa mulher foi se nutrindo de imagens de mulheres que conheço e conheci, e essa história foi se nutrindo de histórias que vivo.

Imagino que a série seja Maya, inspirada num filme de 1966, e que foi transmitida pela NBC nos Estados Unidos, e no Brasil pelas Tv’s Record e Tupi na década de 70.     E assim Caetano prossegue:

Terminou pintando também um pouco de história, uma vez que o interesse que as pessoas da minha classe e da minha geração uma vez demonstraram pelo assunto política aparece datado. Mil pessoas me perguntaram quem é a “Tigresa”, ou para quem a música foi feita.

Pois bem. Depois da mamãe tigresa da televisão, a primeira imagem de mulher que veio à minha cabeça foi a de Zezé Mota, e isso está bem evidente nas unhas e na pele. Mas terminei descobrindo que os olhos cor de mel são da Sônia Braga, embora não deixem de ter um parentesco com os cabelos da menina Maribel. Mas Bethânia e Gal já estavam lá. E Norma Bengell, Clarice, Claudinha, Helena Ignêz, Maria Ester, Silvinha Hippy, Marina, muitas outras meninas que eram bebês em 1966, Suzana e Dedé. Por fim a “Tigresa” sou eu mesmo. É minha primeira canção parecida um pouco com Bob Dylan.

O fato é que a primeira pessoa a se “apropriar” da canção foi Sônia Braga. Protagonista da novela “Espelho Mágico”, cujo tema musical era a “Tigresa”, na voz de Gal Costa. No ano seguinte, Sônia Braga protagonizava a novela “Dancin’ Days”, interpretando uma ex-presidiária. Mais um ponto que ligava Sônia Braga à canção.

Zezé Motta e Caetano

Além disso, Sônia era atriz e trabalhou no espetáculo Hair. Rosane Queiroz conta um pouco desta história no seu livro “Musas e Músicas ”

“Roubei ‘Tigresa’ para mim”, admitiu Sônia Braga, em uma entrevista que fizemos em 2006, publicada na Marie Claire. “Comecei a encontrar Caetano na praia, não lembro bem a época, só sei que a gente acordou juntos pra assistir o casamento da Lady Di [1981]. Foi uma relação bonita, de amor mesmo. A gente fez uma viagem de trem inesquecível de São Paulo ao Rio, daí ele compôs ‘Trem das cores’ para mim (Teu cabelo preto/ Explícito objeto…). A ‘Tigresa’ ele começou pensando na Zezé Motta, logo depois a gente se conheceu”, diz ela.

Caetano e Sônia Braga

Tanto que Ivete Sangalo, em 2012, no especial que fez com Gil e caetano, perguntou se a música teria sido feita para Sônia Braga, ao que Caetano respondeu “Mais ou Menos”. “Nós mulheres sempre achamos que as músicas são feitas para nós”, brincou a cantora…. “‘Trem das cores’ eu fiz para Sônia, mas ‘Tigresa’ não, encerrou o compositor.

Zezé Mota, também na história contada por Rosane Queiroz, se apresenta:

“Só o fato de ter meu nome associado a uma música tão bonita do Caetano já é o máximo…

“A pele marrom e as unhas negras eu sei que são minhas. Eu usava esmalte preto, que comprava na Biba [boutique famosa em Ipanema, nos anos 1970]. Hoje a cor é comum, mas naquele tempo não. Eu fazia o estilo exótico, com os cabelos curtinhos e o batom também preto.

Mas não trabalhei no Hair nem namorei Caetano. O trecho que diz ‘com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher’, vamos combinar, serve para todas nós, né? [risos] Mas quando ele fala de ‘uma mulher, uma beleza que me aconteceu’, evidentemente se refere a alguém com quem teve um caso afetivo. Notei que a letra não era só para mim.

Encontrei Sônia Braga em vários momentos. Gravamos juntas o filme Tieta, mas nunca falamos nesse assunto de a canção ser mais dela. Não importa que ‘Tigresa’ seja uma colagem. Na época, Caetano era casado com Dedé (Gadelha), acho que até ela entrou na história. O que importa é que estou no pacote.

Mais recentemente, Caetano fala mais uma vez sobre a canção e Zezé Motta, relatada por Cacau Hygino, na biografia de Zezé Motta :

A música Tigresa foi escrita na época da [discoteca] Dancin’ Days. Zezé tinha as unhas pintadas de preto. A figura física da Tigresa veio muito mesmo de Zezé. E ela sabe disso. Mas a canção não é sobre ela só. Tem muito Sônia e pensamentos sobre as mulheres daquele tempoFaz anos, me fizeram essa pergunta numa revista e eu disse que tinha Zezé e Sônia, mas também muitas outras mulheres. Finalmente, eu preferia fazer como Flaubert (que disse ‘Madame Bovary c’est moi’): a ‘Tigresa’ sou eu”, diz Caetano

Fontes:

Caetano Veloso, O mundo não é chato, Cia das letras, 2005

Rosane Queiroz, Musas e Músicas: A mulher por trás da canção, Tinta Negra, 2017

Cacau Hygino, Zezé Motta: Um canto de luta e resistência, Companhia Editora Nacional, 2018