Essa Mulher – Elis Regina (história da canção)

“Essa mulher” é o título do álbum lançado em 1979 por Elis Regina. A música mais conhecida do álbum é “O Bêbado e a Equilibrista (João Bosc/Aldir Blanc)”, que se tornou um dos símbolos do movimento pela Anistia no fim da década de 70.

No entanto, hoje é dia de falar da canção título do álbum. “Essa Mulher”, composição de Joyce e Ana Terra, retrata as múltiplas facetas do que significa ser mulher. A letra retrata um dia na vida de uma mulher, e as suas transformações ao longo deste dia.

Pela manhã, uma senhora, cuidando da casa, dos filhos, com um quê de tristaza e resignação.

Ao entardecer, uma menina, que se arruma, se enamora, se apaixona, que se permite sonhar…

Por fim, a mulher que, à noite, seduz, bebe, enlouquece, faz estrago…

E termina, de modo aparentemente paradoxal, por agradecer ao destino por tudo aquilo que a faz infeliz… a luz, a sombra, a lama, a cruz… enfim, a complexidade e multiplicidade dos diversos mundos que habitam numa mulher.

Ana Terra

No livro “Então, foi assim?”, de Ruy Godinho, é contada um pouco da história da canção:

A tão propalada jornada dupla que algumas mulheres se submetem todos os dias, desdobrando-se entre o trabalho profissional e o doméstico, acabou virando uma bela peça musical na junção da letra de Ana Terra e da melodia de Joyce.

A letrista, escritora e produtora Ana Terra conta que escreveu a letra em uma noite em que estava supercansada. “Eu tinha passado o dia cuidando da casa e das crianças, sentia falta do Danilo [Caymmi], meu marido na época. Ele estava há vários dias longe, em excursão pelo Nordeste com o Bituca [Milton Nascimento], quando fazia parte da banda como flautista. Devia estar me sentindo como inúmeras mulheres que têm que dar conta de muitas atividades. Depois que as crianças dormiram, tomei meu banho e me olhei casualmente no espelho do banheiro. Meu rosto parecia cansado e gasto, dei um sorriso e me vi muito jovem. Minhas expressões se alternavam e tive a exata sensação de que eu era três mulheres.”

Ana editou-se no sofá com lápis e papel e começou a escrever. Essa mulher era assim. “Tive a sensação de encontrar em quem esbarro a toda hora num espelho quebrado. Exatamente a parte final da letra, que depois foi burilada e afinada até se tornar o que se tornou”, diz Ana.

O mais interessante é que essa sensação de ser múltipla a remetia à Bahia mística, a uma revelação que lhe foi feita em um terreiro de candomblé. “Quando estive no Gantois levada por Stella e Dorival [Caymmi], a Mãe Menininha jogando búzios me disse que eu tenho três Orixás de frente e todas [são] mulheres: Oxum, Iemanjá e Nanã. Acho que naquele momento em que escrevi a letra senti a presença desses três arquétipos femininos.”

Ana deitou-se no sofá com lápis e papel e começou a escrever: Essa menina, essa mulher, essa senhora/em quem esbarro a toda hora num espelho casual/é feita de sombra e tanta luz/de tanta lama e tanta cruz/que acha tudo natural… Exatamente a parte final da letra, que depois foi burilada e recebeu um início e um meio.

““Quando Danilo voltou de viagem mostrei para ele. Até então, era meu único parceiro”, afirma. “Ele começou a musicar, mas pela primeira vez achei que a música dele não tinha a ver com a minha letra. Tentei explicar isso com delicadeza dizendo que talvez só outra mulher conseguisse perceber o que eu estava sentindo.” Danilo compreendeu e superou.

Como nada acontece por acaso, no dia seguinte a cantora e compositora Joyce passou na casa deles para tratar de um assunto com Danilo, e Ana teve a intuição de que seria ela. “Timidamente mostrei a letra. Joyce a levou e no dia seguinte me ligou dizendo que a música estava pronta.”

O insight de Ana Terra de que a melodia teria de ser feita por uma mulher ganhou uma dimensão maior pelo fato de a letra ter caído nas mãos de uma compositora completa, que domina a criação de melodia e letra, que é uma violonista reconhecida internacionalmente, conviveu com Vinicius de Moraes e Tom Jobim, e transitou naturalmente por diversas tendências e escolas da música brasileira, como a Bossa Nova e o Clube da Esquina: Joyce Silveira Moreno.

Ana então nmostrou a canção a Elis Regina, que se preparava para lançar mais um LP. Elis gostou bastante da música que a escolheu como título do álbum Elis, Essa Mulher (WEA, 1979). “A gravação da música foi num clima de muita emoção. A Elis entendeu tudo”, festeja Ana Terra.

Joyce Moreno

Elis voltou a registrar a canção no LP Elis, Essa Mulher (WEA Latina, 1979), remasterizado em CD em 1988, seguido de diversos álbuns lançados posteriormente. Joyce, por sua vez, a gravou no LP Feminina (Odeon, 1980), no CD Revendo Amigos (EMI, 1994) e no CD Astronauta – Canções de Elis Regina (Pau Brasil, 1998).

A canção seguiu sendo regravada, entre outros, pela cantora Márcia, no CD Pra Machucar Seu Coração – Volume 2 (Velas, 1997); por Dori Caymmi, no CD Contemporâneos (Horipro Inc./Universal Music, 2002); por Alaíde Costa, no CD Alaíde Costa e João Carlos Assis Brasil – Voz e Piano (Lua Discos, 2006); e por Leila Pinheiro, no CD Nos Horizontes do Mundo – Ao Vivo (Biscoito Fino, 2007). Além das versões instrumentais de Nelson Ayres, no CD Perto do Coração (Atração Fonográfica, 2003) e de Marcel Powell Trio, no CD Corda com Bala (Rob Digital, 2009).

Em entrevista à Rádio Nacional, em julho de 1979, Elis Regina comenta a música “Essa Mulher”,

Eu tenho a impressão que a Joyce e a Ana conseguiram falar das artistas, conseguiram falar das mulheres artistas, das mulheres artistas casadas e mães, e mulheres de músicos de uma forma incrível…as duas são mulheres de músicos como eu, as duas tem pencas de filhos, as duas tem a jornada dupla de trabalho de ser dona de casa, ser mãe, ser esposa, ser artista, ter que batalhar e ter que segurar tudo que pinta, ter que organizar essa loucura que é você ter filho, você ter casa, você ter uma profissão e…. ao mesmo tempo, ser mulher e ser menina e ser dona de casa, ser a santa ser a mulher ser a menina…

Essa letra particularmente eu considero em termos de retrato da situação da mulher artista, da mulher que trabalha independentemente de ser artista, a mulher que trabalha, a mulher que tem a sua vida somada à do seu marido por vários aspectos – inclusive o econômico-financeiro – da batalha fora das quatro paredes do seu lar…

Acho que mais difícil… várias coisas a respeito de mulher já foram escritas – via de regra por homens – que conhecem a situação realmente, mas nunca viveram uma situação; viver na carne, passar pelas coisas é muito mais fácil quando você vai se referir ao assunto quando você tem conhecimento de causa, a coisa sai muito mais completa.

É história das duas que é a minha também e que é de uma porção de gente, é de Clara Nunes, é de uma penca de mulher que canta que trabalha que eu conheço, sabe? É uma música emocionante ela é emocionante.

De manhã cedo, essa senhora se conforma
Bota a mesa, tira o pó
Lava a louça, seca os olhos

Ah, como essa santa não se esquece
De pedir pelas mulheres
Pelos filhos, pelo pão

Depois, sorri meio sem graça
E abraça aquele homem, aquele mundo
Que a faz assim feliz

De tardezinha, essa menina se enamora
Se enfeita se decora
Sabe tudo, não faz mal

Ah, como essa coisa é tão bonita
Ser cantora, ser artista
Isso tudo é muito bom

E chora tanto de prazer e de agonia
De algum dia qualquer dia
Entender de ser feliz

De madrugada, essa mulher faz tanto estrago
Tira a roupa, faz a cama
Vira a mesa, seca o bar

Ah, como essa louca se esquece
Quanto os homens enlouquecem
Nessa boca, nesse chão

Depois, parece que acha graça
E agradece ao destino aquilo tudo
Que a faz tão infeliz

Essa menina, essa mulher, essa senhora
Em que esbarro a toda hora
Nos espelhos casuais

É feita de sombra e tanta luz
De tanta lama e tanta cruz
Que acha tudo, natural

As mulheres e suas canções – Tereza (Dorival Caymmi)

No começo de decada de 90, Dorival Caymmi fora convocado para compor a trilha sonora para uma minisserie baseada no romance Tereza Batista, de Jorge Amado. No entanto, Caymmi é conhecido pela tranquilidade, para não dizer vagareza, com a qual compoe suas canções. E quando a televisao pede uma obra para um programa, quase sempre os prazos sao bem exíguos. 

Danilo Caymmi, então, fora incumbido de fazer com que o pai compusesse a canção em tempo hábil. Dorival faria a letra, e a a partir dela Danilo faria a melodia. Só que Dorival, mesmo apressado pelo filho, disse que iria reler o livro para fazer a letra. Só que não havia tempo. Então, eis a solução encontrada por Dorival, num depoimento à sua neta Stella Caymmi, no seu livro Dorival Caymmi: o mar e o tempo (Editora 34):

Mas aí procurei na cabeça, dei umas voltas, já com um cartão-postal na mão, e pensei assim: Tereza Batista? O que é que ela fazia mesmo? Essas mulheres de Jorge Amado… Tieta do Agreste, essas mulheres, como é que eu faço? Eu tenho que fazer essa música. O Danilo quer para amanhã! Então saiu aquela fórmula, quase inconsciente, ‘Para saber de Tereza, meu bem, pergunte primeiro a mim, tudo que eu sei de Tereza meu bem, conto tintim por tintim’ … [cantando]. (…) E fui fazendo uma fantasia em cima de Tereza Batista. Como o postal não deu mais, encerrei dizendo: “oi quer saber de uma coisa?… Para saber de Tereza, só mesmo Nosso Senhor’. E saí pela tangente! E entreguei a música pronta, na medida do postal. Escrevi a letra no postal”.

E Danilo não acreditou que a letra tivesse ficado pronta tão rápido… Dorival confessou que a parte que ele mais gosta da letra é a parte que se refere à mulher que é “mato molhado por fora e por dentro“, que refere a algo, ao mesmo tempo selvagem e delicado, uma mulher poeticamente crua, que remete ao capim molhado numa alvorada…

Tereza Batista, no livro de Jorge Amado, transita entre o amor e a opressão; entre a doença e a paixão; entre o crime e a submissão. Tem uma série de nuances de amor e sofrimento. Mas Caymmi resolve a questão de outra forma.

Ao analisarmos a letra, percebe-se a artimanha de Caymmi, que promete dizer tudo de Tereza, detalhe por detalhe, pas acaba por não dizer nada, senão o gosto da fruta, o cheiro de flor, e o mato molhado… e que não faz nenhuma referência à personagem do livro…

Para saber de Tereza, meu bem
Pergunte primeiro a mim
Tudo que sei de Tereza, meu bem
Conto tim tim por tim tim

Gosto de tudo que é fruta
Cheiro de tudo que é flor
Mato molhado por fora, por dentro,
Graça, carinho e amor

Para saber de Tereza, meu bem
Pergunte primeiro a mim
Tudo que sei de Tereza, meu bem
Conto tim tim por tim tim

E quer saber de uma coisa?
Para dizer com franqueza
De um ditado que dizia
Que beleza não põe mesa
Eu não sou o inventor

Para falar de beleza
Para saber de Tereza
Só mesmo o nosso Senhor

O nego e eu? (de João Cavalcanti por Roberta Sá). Um Passeio por Chico, Gil, Caetano e Caymmi

Que menina é aquela, que entrou na roda agora? Ela tem um remelexo que valha-me Deus Nossa Senhora” Essa frase é da música Remelexo, de Caetano Veloso e gravada por Simonal na década de 60. Essa mulher, aquela que seduz a todos com sua dança e o requebrado dos seus quadris é cantada e decantada sobretudo pelo samba da Bahia…

Francisco Bosco, num belo ensaio que fez sobre Caymmi na série “Folha Explica”, faz uma referência às mulheres dos seus sambas:

Trata-se de um rebolado gracioso, a um tempo sensual e discreto, extremamente feminino, poderoso e consciente do seu poder, mas como que brejeiro, delicado, sutil.”

No entanto, há poucas notícias dessas mulheres como o eu-lírico de uma canção. E aí vem o mérito de uma das músicas que se destaca no álbum Segunda Pele, gravado em 2012 por Roberta Sá: É a música “O nego e eu“, composta por João Cavalcanti, do Casuarina

Não por coincidência, O nego e eu é o único samba de um disco que tem uma toada mais pop, e que, segundo o próprio sítio digital de Roberta Sá, entrou no disco depois que o repertório já estava inicialmente definido. 

Essa entrada posterior certamente se deve ao fato de que Roberta, nesse trabalho, pretendia mostrar-se como mais do que uma cantora vinculada ao samba. Ela mesmo disse que o samba estava ficando”óbvio” para ela (nos anos e álbuns seguintes, o samba voltaria com toda força). Por isso havia uma certa relutância em incluí-la no disco, mas, como dito no site, “a importância do estilo musical na sua história e a conexão com os fãs falaram mais alto”.

E, mais adiante:

A ideia era gravar uma resposta ao samba “Sou eu”, composto por Chico Buarque para Diogo Nogueira. Desde que eu escutei essa música, falei: eu quero uma resposta, porque a mulher também pode ir para o baile. Cadê o ponto de vista dessa mulher, que vai para o baile, deixa tudo, mas que prefere o homem dela?“.

Pediu a música a João, que compôs “O nego e eu”

Pra quem não sabe, “Sou eu” é uma canção de Chico em que o homem se enciúma com o rebolado de sua mulher, mas que, ao final da noite, será ele, o eu-lírico, que vai levá-la pra casa. 

Então surge a versão da mulher, daquela mulher típica dos sambas que gosta de dançar e enfeitiçar os homens, gosta de sentir-se desejada, como se o desejo alheio fosse o combustível para animar o eu-lírico feminino. 

Mas aí, assim como Gil, na canção “Sandra”, o eu-lírico feminino tem sua torre, amarrada à qual ela dá pra ver o mundo inteiro, a torre na qual ela dá o salto no alto da montanha, e que é só balançar, que a corda o leva de volta para ela… 

E quem é essa torre? O “nego”, aquele que ela prefere após ser desejada por todos, aquele, que, mesmo com ciúmes, é para quem a mulher dança e se entrega no fim da noite.

João Cavalcanti,  o compositor da música, tratou um pouco da história da canção: 

É uma ficção não tão ficicional porque acontece pra cacete, isto é, da mulher que ‘abre o pavão’ na noite, no baile, na gafieira, e que na verdade é apaixonada e dedicada a seu marido” 

João (que é filho de Lenine) também gravou a canção no seu disco “Garimpo”, em 2018.

É uma bela homenagem a essa mulher que habita muitos desejos,  e que para a própria Roberta, é como se fosse  sua própria relação com o gênero musical. “Para mim, tem muito a ver com a minha história com o samba, o nego sendo o samba. Posso flertar com outros ritmos, posso experimentar outras coisas, mas só tem sentido o nego e eu“.

A letra: 

Gosto de ser vista pelas festas, ser seguida pelas frestas,
Protagonista do sonho alheio.
Gosto de deixar pelos lugares um punhado de olhares
Incendiados no fogo que ateio
Gosto que me vejam por inteira. gosto de solar na gafieira.
Gosto se me sinto desejada, mas eu levo a madrugada pra mim.
Porque gosto mais é do chamego e dos beijos do meu nego no fim.

O nego, o nego, o nego e eu.
Ele é o grande amigo que o destino concedeu.
Só tem sentido o nego e eu.

Ele não é dado pra ciúme,
Mas encabulado assume que prefere até que eu não vá.
Digo que meu jogo se resume a um rastro de perfume
Que eu deixo nos ares de lá.
Gosto que me vejam por inteira.
Gosto de solar na gafieira.
Gosto se me sinto desejada,
Mas eu levo a madrugada pra mim.
Porque gosto mais é do chamego
E dos beijos do meu nego no fim.

O nego, o nego, o nego e eu.
Ele é o grande amigo que o destino concedeu.
Só tem sentido o nego e eu.

Fonte: http://robertasa.com.br/site/os-bastidores-de-o-nego-e-eu/ (acesso em abril de 2012)

Rapte-me Camaleoa (De Caetano para Regina Casé em 1981)

A figura do camaleão é sempre associada ao mimetismo, à sua capacidade se se camulflar de acordo com o ambiente, com a temperatura, com a iluminação e pelo seu próprio estado emocional. Quando nos referimos a pessoas, a referência ao camaleão termina sendo uma figura de linguagem relacionada com a capacidade de mudança e de adaptação.

E foi a figura da Camaleoa que Caetano Veloso homenageou, no álbum “Outras Palavras” (1981), a atriz Regina Casé, na canção “Rapte-me Camaleoa”.

Conta Tom Cardoso, na obra biográfica “Outras palavras: Seis vezes Caetano”, diz que Caetano conheceu – e deslumbrou-se – com Regina Casé quando a viu encenando a peça “Trate-me Leão”, da Cia teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone (formada por diversos atores que se tornaram posteriormente muito famososo, como Evandro Mesquita, Luiz Fernando Guimarães, Patrícya Travassos, entre outros). A amizade entre ambos transfornou-se num namoro fugaz (com o consentimento da esposa de Caetano, Dedé Gadelha, já que a relação de ambos era fundada no amor livre).

A letra é, ao mesmo tempo, um convite e uma manifestação de desejo, reveleda na última frase, adapte-me ao seu ne me quitte pas. Na letra da canção, a ideia da metamorfose, da adaptação própria do camaleão está sempre presente

Regina afirnou, em 2004: “eu e a Dedé éramos muito amigas, e continuamos sendo até hoje(…) Aquilo era um comportamento tão normal, no mundo inteiro”

A canção é uma declaração de afeto para Regina Casé, que Caetano namorou no início da década de 1980. “Ela se chamava ‘Camaleoa’ em uma peça (‘Aquela Coisa Toda’). Namorei ela nessa época rapidinho, um tempinho curto. Mas a adoro, sempre. É bem feitinha a letra. E tem de interessante o verso ‘rapte-me, adapte-me, capte-me, it’ s up to me’, que traz uma rima bilíngue“, disse em conversa com o escritor Eucanaã Ferraz…

A amizade deles dura até hoje. Regina Casé fez uma participação no filme de Caetano, Cinema Falado. Numa entrevista ao programa Roda Viva, falou sobre a amizade:

Eu estava trabalhando, ele foi assistir a uma apresentação nossa e gostou muito. Depois, foi conversar com a gente no camarim, daí a gente foi jantar e ficou amigo. Logo assim. Mas eu acho que foi muito por causa do trabalho. Se não fosse o trabalho, talvez no Rio a gente viesse a ser amigo, mas o que precipitou… E isso criou uma amizade já com muita qualidade, assim, legal.

Em 2014, Caetano fez uma postagem homenageando Regina Casé:

Quando conheci Regina, ela estava no palco. Eu, na plateia. Fiquei imediatamente apaixonado por sua personalidade e assombrado com seu talento. O Asdrúbal Trouxe o Trombone era um grupo de jovens fazendo o teatro viver. Dos trabalhos que ela fez ali à série de programas na TV, passando por atuações em filmes, peças e novelas, há uma linha coerente. Ela é uma das criadoras mais fortes que o Brasil produziu. O modo de tratar uma personagem em “Trate-me, Leão” já continha os gestos de Central da Periferia ou Esquenta! Não é por acaso que ela incomoda os eternos reaças colonizados. Filha de Geraldo e neta de Ademar, Regina é um farol na cultura popular brasileira. Celebro seu aniversário como um marco na minha vida pessoal e na história do Brasil” 

Diana

Em 1957, uma música de acordes simples e que relatava um amor adolescente não correspondido se eternizou na música americana e ganhou inúmeras regravações e versões pelo mundo todo: me refiro à canção Diana, de Paul Anka, que se tornou imediatamente um sucesso mundial. Quem nunca ouviu a célebre frase: “Oh, please stay by me, Diana

Resta saber quem era a musa por detrás desta canção, e como ela repercutiu na época. Em muitos sites, relata-se que Diana seria a babá de Paul Anka, e que ela seria 5 anos mais velha que ele. Nenhuma das versões é verdadeira.

Paul Anka, canadense de ascendência libanesa, escreveu esta canção em Otawwa quando tinha 16 anos, dedicado à Diana Ayoub, que uma amiga que tinha 18 anos na época (dái a primeira frase – “I’m so young and you’re so old”)

No livro musica e musas, deMichael Heatley e Frank Hopiksom (ed. Gutemberg, 2011), relata-se a paixão nãop realizada do adolescente Paul Anka por Diana Ayoub:

 Diana simplesmente não estava interessada. Como ela relembrou anos mais tarde: “Minha amiga disse que ele estava apaixonado por mim, e eu repondi: ´Não seja ridícula, ele é nosso amigo”, Mas Paul estava de fato apaixonado e, quando criou coragem para mostrar a Diana sua nova canção, só conseguiu tocá-la no piano, encabulado de mais para cantar as palavras que declaravam seu amor. Ele então passou a cantá-la em festas, na esperança de que a letra chegasse até Diana.

 Ele visitava a casa dos Ayoub, sob qualquer pretexto, de manhã, de tarde e de noite. Mas, se o pai de Diana já estava se cansando da intrusão persistente, isso não era nada em comparação à perturbação que a família teve que enfrentar no ano seguinte, quando a canção se tornou sucesso internacional.

 Em sua autobiografia de 2013, o cantor se referiu a Ayoub como sua “paixão adolescente”,

Eu tinha esse talento para cantigas adolescentes estúpidas em um momento em que os adolescentes queriam ouvir cantigas adolescentes simples. Eu era um garoto solitário e sabia que havia muitos de nós por aí. Eu veria outros garotos solitários aos pulos quando eu tocasse. Colocar a sua cabeça no meu ombro – esse era o seu objetivo naquele fim de semana… além de talvez ganhar um beijo e colocar a mão na blusa dela. Tudo isso eu entendi muito literalmente pelo simples fato de ser adolescente. Eu mesmo estava passando por todas essas emoções. Não questionei, não tentei ser inteligente. O que eu estava escrevendo e interpretando era apenas um lamento descarado de adolescente. Todas essas coisas iniciais eram intensamente pessoais, baseadas no que eu sabia, que era bastante básico.

Assim que “Diana” se tornou um sucesso, começaram a circular histórias sobre como ela foi escrita. Publicaram interminavelmente que minha paixão adolescente, Diana Ayoub, era minha babá. Eu simplesmente cansei de apagar aquele fogo, então deixei-o viver. Foi uma pequena história fofa. Isso foi nos anos cinquenta. Se você fosse um garoto de dezesseis anos, só namoraria uma garota mais nova que você. A situação oposta era apenas um tabu naquela época. E Diana não era apenas mais velha que eu, ela era muito mais sofisticada.

“DIANA” foi editada em 1957 por Joe Sherman, outro compositor americano. A música foi lançada naquele mesmo ano, em um compact disk da gravadora Gold rotulado “The Lovely Boy”, tendo lado B a música “DON’T GAMBLE WITH ME”. A repercussão não poderia ter sido melhor: a canção estourou nos Estados Unidos, Reino Unido e, por conseguinte, no resto do mundo. Foi o compacto mais vendido do ano e “DIANA” foi parar no topo das paradas de sucesso.

Paul Anka se tornaria um dos cantores mais populares da América e do mundo inteiro, cujo sucesso maior foi justamente uma canção inspirada naquela moça, sendo o título desse hit exatamente o nome da musa.

Diana Ayoub não imaginava que Paul Anka era apaixonado por ela: “Eu absolutamente não tinha a menor ideia”, disse ela à CBC em 1997. “Eu o encorajei muito e pensei que éramos apenas amigos”. Diana, apesar de ter se divertido inicialmente com o sucesso da canção, depois não ficou muito feliz com a repercussão da música: “Eu não esperava que fosse tão grande; estava em todo o mundo, você sabe, eu não poderia ir a lugar nenhum. Fui seguido por espiões, foi muito selvagem.”

Outras frases ditas por Diana:

“Havia repórteres esperando por mim na minha formatura do colegial”.

“Os rapazes não me convidavam para sair porque no dia seguinte o retrato deles sairia no jornal.

Por alguns meses, a vida de Diana Ayoub se tornou difícil: ela era espionada e perseguida pela imprensa, constantemente importunada por repórteres em busca de detalhes pessoais seus ou de Paul.

Diana permaneceu em Ottawa, casou-se, formou família e foi trabalhar, tornando-se gerente de um armazém de atacado de roupas chamado Divine Liquidation. Faleceu em 2022, aos 83 anos.

A letra da canção:

​I’m so young and you’re so old
This, my darling, I’ve been told
I don’t care just what they say
‘Cause forever I will pray
You and I will be as free
As the birds up in the trees
Oh, please stay by me, Diana

Thrills I get when you hold me close
Oh, my darling, you’re the most
I love you but do you love me
Oh, Diana, can’t you see
I love you with all my heart
And I hope we will never part
Oh, please stay by me, Diana

Oh, my darlin’, oh, my lover
Tell me that there is no other
I love you with my heart
Oh-oh, oh-oh, oh don’t you know
I love you, I love you
So only you can take my heart
Only you can tear it apart?
When you hold me in your loving arms
I can feel you giving all your charms
Hold me, darling, ho-ho hold me tight
Squeeze me baby with-a all your might

Oh, please stay by me, Diana
Oh, please, Diana
Oh, please, Diana

Fontes:

Músicas e Musas: A Verdadeira História por Trás de 50 Clássicos pop: r Michael Heatley (Autor), Frank Hopkinson (Autor), Cristina Bazan (Tradutor), Christiane de Brito Andrei (Tradutor). Gutemberg, 2001,

https://filomusicology.blogspot.com/2016/01/elas-se-tornaram-cancao-diana-paul-anka.html

https://www.cbc.ca/news/canada/ottawa/diana-paul-anka-obituary-1.6672005

My Way. Uma autobiografia (Paul Anka)

“Totalmente demais”

As mulheres e suas canções… às vezes as canções são inspiradas numa mulher real, que tem nome. 

Outras, inspiradas em mulheres fictícias, imaginadas. 

Parece que Totalmente Demais, letra de Tavinho Paes para música de Arnaldo Brandão e Robério Rafael, não foi feita para mulher nenhuma, ou para muitas mulheres. Ou pelo menos essa é a visão do autor. 

A música, gravada inicialmente pela banda Hanói Hanói em 1986, e gravadea em seguida (no mesmo ano) por Caetano Veloso, descreve uma mulher, linda, andrógina, poderosa, impusliva, de sexualidade fluida e que sabe jogar o jogo da vida, da sexualidade e sedução, e joga para ganhar…

Ela curte a vida, agita um “broto” a mais (“broto” é (expressão típica entre os anos 60 e 80, que indica uma pessoa jovem e bonita), que curte “só pra relaxar”, que “transou um Rolling Stone no Canadá”.

Há insinuações sobre dinheiro e consumo de drogas, de alguém que frequenta a alta sociedade. essa é a mulher “totalmente demais”.

Num depoimento ao Portal Cronópios, Tavinho Paes, o autor da letra (ele é poeta, compositor, escritor, roteirista, jornalista e artista visual) fala um pouco da canção: 

 A INSPIRAÇÃO

Como se tratava de uma fotografia de uma época (e não uma descrição detalhada de um personagem único na vida real da cidade), não teve uma única musa inspiradora, mas um conjunto de detalhes colhidos na paisagem louca do final dos anos 70, no período da ditadura que ficou conhecido como o da Anistia Lenta e Gradual, geopoliticamente engendrada pelo General Golbery do Couto e Silva.

Sem prejuízo do ideal produzido pela mídia, a tal TOTALMENTE DEMAIS pode ser literalmente comparada a um Frankenstein. Suas musas inspiradoras contribuiram para que esta vestal existisse, totalmente ideal como os poderes do Santo Graal, emprestando-lhe características de suas personalidades (incuíndo o atualmente tão badalado componente narcísico), índícios dos seus carateres (volúveis ou não); fragmentos de suas vontades e desejos (todos meio alucinados)...

Foram mulheres de idades diferentes, destinos incompossíveis e vidas sem nenhuma conexão entre si. Foram fotografadas em bailes, bares da noite e festas. Estavam todas compromissadas e satisfeitas com as hoje intoleráveis liberdades sexuais conquistadas pelos hippies e outsiders das décadas de 60 e 70 (coisa que favoreceu muito os psicopatas). Conheceram seus corpos e mentes, por dentro e por fora, com desaconselháveis e poderosas doses de ácido lisérgico, além de suaves baforadas de cannabis e haxixe e fungadas numa cocaína inca que desapareceu do mercado há muito tempo. Todas:…maravilhosas!!!

O ERRO DE DIGITAÇÃO E A CENSURA 

Nesta primeira versão, um erro de digitação no material enviado para a Censura Federal, inviabilizou sua presença nas rádios e tvs. Logo no primeiro verso, ao invés de “LINDA COMO UM NENÉM…”, a datilógrafa escreveu: “LINDA COMO UM HOMEM…”.

Meu Deus! De onde tiraram aquela infâmia! Deveria ter processado a gravadora por lucros cessantes! Afinal, a musa inspiradora dos dois primeiros versos era nada mais nada menos que minha filha, Dianna Rosa, então com 2 anos de idade, que, por acaso, passava pelo corredor da casa, enquanto eu e Arnaldo compunhamos as primeiras linhas da melodia e ele não identificou o sexo dela, tomando-a por meu filho…

Quem foi a pessoa responsável por esse descuido, até hoje, ninguém sabe; mas, o resultado deste deslize foi conhecido uma semana depois: a música acabou sendo proibida de frequentar qualquer emissora de rádio ou televisão. O laudo do Censor, outro nobre desconhecido, foi taxativo: PROIBIDA EXECUÇÃO PÚBLICA POR CONTER APOLOGIA AO HOMOSSEXUALISMO.

A CENSURA, PELA SEGUNDA VEZ

Acreditávamos que os satãs de Brasília já tinham esquecido a consulta prévia, feita em 84. Com a abertura caminhando sob o tacão do General Figueiredo e o êrro datilográfico devidamente recauchutado, acreditávamos que, finalmente teríamos outra chance. Santa ingenuidade! Mais uma vez quebramos a cara. Desta vez, o laudo do legista apontou Incitação e Apologia ao Uso de Drogas! Mesmo recorrendo, nenhum dos recursos que tentamos passaram no Conselho Superior de Censura(colegiado que resolvia alguns casos semelhantes).

A VERSÃO DE CAETANO 

A versão que isentou a TOTALMENTE DEMAIS de suas implicações com as leis de exceção do regime militar e a retirou de seu incomodo ostracismo, só chegou anos depois, através de Caetano Veloso, num álbum apócrifo, que ele declarou inúmeras vezes que não gosta, registrado num projeto acústico gravado ao vivo, no Copacabana Palace, batizado de… TOTALMENTE DEMAIS. 

ONDE ANDAM TAIS MUSAS? 

..digamos que, com a máquina do tempo triturando a história, a musa da canção perdeu sua identidade polimorfa. Ficou muito tempo mofando na geladeira da morgue. Quando se tornou popular, as várias musas que montaram aquele Frankstein cubista já haviam evaporado. Algumas resistem até hoje e outras apareceram com as novas versões remixadas (como a da cantora Perlla, que ressuscitou o tipo e o introduziu na seara do hip-hop).
Na verdade, as verdadeiras musas desta canção foram aqueles tempos que nem a nostalgia mais saudosista restaurará. As musas que deram charme e montaram a fotografia daquela Cleópatra virtual são os pequenos registros dos tempos em que as paixões entravam em combustão espontânea, incendiavam a libido das pessoas e a AIDS ainda não era uma ameaça.

Uma história interessante, o retrato de um pedaço da realidade de uma época, por intermédio dessas mulheres… tidas como “totalmente demais…” 

É algo que ultrapassa os limites de apologia ao amor livre (o que, na época da canção, tinha algo de revolucionário em épocas em que o HIV matava, e os grupos de risco estavam ligados ao comportamento sexual). Uma mulher (ou muitas) que representam uma liberdade sem culpa , e um poder que se revela no seu interesse desapegado…

Linda como um neném
Que sexo tem, que sexo tem?
Namora sempre com gay
Que nexo faz tão sexy gay

Rock´n´roll?
Pra ela é jazz
Já transou
Hi-life, society
Bancando o jogo alto

Totalmente demais, demais

Esperta como ninguém
Só vai na boa
Só se dá bem
Na lua cheia tá doida
Apaixonada, não sei por quem

Agitou um broto a mais
Nem pensou
Curtiu, já foi,
Foi só pra relaxar

Totalmente demais, demais

Sabe sempre quem tem
Faz avião, só se dá bem
Se pensa que tem problema
Não tem problema
Faz sexo bem

Seu carro é do ano
Seu broto é lindo
Seu corpo, tapete, do tipo que voa
É toda fina
Modelito design

Se pisca, hello
Se não dá, bye-bye

Seu cheque é novinho, ela adora gastar
Transou um Rolling Stone no Canadá

Fazendo manha
Bancando o jogo
Que mulher

Totalmente demais, demais
Totalmente demais, demais

Fonte: http://cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=4728

quarta 04 dezembro 2013 15:56 , em Mulheres e suas canções

“Como fosse um par, que nessa valsa triste…” A história de Bandolins, de Oswaldo Montenegro

Foi em 1979 que Oswaldo Montenegro gravou “Bandolins”, música sobre uma moça que dança sozinha, como um par…

A música foi inspirada, ao que consta, na cunhada de Zé Alexandre, amigo do cantor, que era uma bailarina que tinha um namorado também bailarino. O casal, contudo, teve que se separar, pois o namorado foi morar na França, e a bailarina, por ser menor, não pôde acompanhá-lo, pois a família da moça não permitiu. Oswaldo diz que, na música, tentou retratar “esta moça dançando sozinha”

A história é retratada por Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano, no segundo volume do livro “A canção no tempo” 

Bandolins” foi um presente de aniversário que Oswaldo Montenegro ofereceu a uma amiga bailarina. A intenção era reanimá-la, pois na ocasião a moça estava inconformada por seu namorado ter viajado para a França, enquanto ela, menor de idade, fora impedida de acompanhá-lo.

Daí o imaginário ‘pas de deux’ narrado na letra, que ela dança sozinha: “Como se fosse um par / que nessa valsa triste se desenvolvesse / ao som dos bandolins / e como não e por que não dizer / (…) / ela valsando só na madrugada / se julgando amada / ao som dos bandolins…”

Oswaldo estava mesmo a ponto de desistir da carreira, quando surgiu a oportunidade de inscrever “Bandolins” no Festival 79 de Música Popular da TV Tupi. Na realidade, ele não se sentia muito esperançoso de um bom resultado. 

Foi nesse estado emocional que Oswaldo pisou o palco do Anhembi, em São Paulo, para mostrar sua valsa, ao lado do amigo José Alexandre. Mas, para sua surpresa, a reação da platéia ao ouvir “Bandolins” foi altamente positiva, tendo a canção conquistado o terceiro lugar e projetado Oswaldo bem mais até do que os dois concorrentes que chegaram à sua frente. Então, além de um compacto inteiro, a Warner deu- lhe o segundo elepê e sua carreira deslanchou.

 (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Oswaldo Montenegro, no vídeo acima, conta:

“Bailarina: ela namorava um bailarino que foi dançar na França e ela não pôde ir, ela perdeu o partner e o namorado ao mesmo tempo, e eu fiz para ela como presente de aniversário. Por isso que a música fala de uma mulher que está se julgando amada e dançando um ‘pas de deux’ quando na verdade ela está sozinha, ela está louca achando que está acompanhada, é o retrato dela… foi um presente para ela….”

Como fosse um par que
Nessa valsa triste
Se desenvolvesse
Ao som dos bandolins

E como não,
E por que não dizer
Que o mundo respirava mais
Se ela apertava assim?
Seu colo como
Se não fosse um tempo
Em que já fosse impróprio
Se dançar assim

Ela teimou e enfrentou
O mundo
Se rodopiando ao som
Dos bandolins

Como fosse um lar
Seu corpo a valsa triste
Iluminava e a noite
Caminhava assim

E como um par
O vento e a madrugada
Iluminavam a fada
Do meu botequim

Valsando como valsa
Uma criança
Que entra na roda
A noite tá no fim

Ela valsando
Só na madrugada
Se julgando amada
Ao som dos bandolins…

As musas por trás da canção “Tigresa”, de Caetano Veloso

A canção “Tigresa”, de Caetano Veloso, sempre gerou controvérsias de quem seria a musa que inspirou a canção. A necessidade de se personificar a mulher “de unhas negras e íris cor de mel” gerou uma série de discussões, que se iniciaram com o lançamento da música, no álbum Bicho, de 1977.

Na verdade, Tigresa é um mosaico de várias mulheres, que Caetano contou, à época, e depois foi publicado na compilação “O mundo não é chato”

Gente” ainda não estava de todo pronta quando fiz, sem pensar, a melodia do que veio a se chamar “Tigresa”. Algumas pessoas estavam conversando aqui na sala de som da minha casa e eu não estava a fim de prestar atenção na conversa delas. Fiquei tocando violão e assoviando e cantarolando qualquer coisa. Fui dormir sem planos de voltar a pensar nela, uma vez que meu projeto era compor canções doces suingadas. Mas a música era linda mesmo e resolvi fazer uma letra. Mas não sabia o que dizer com palavras, uma coisa que ficasse dentro do clima que já era para nós essa melodia. Mas também não quis forçar muito a cabeça“.

Portanto, primeiro veio a música. A inspiração da letra veio depois. Conta Caetano:

Um dia estava com Moreno vendo um seriado de televisão no qual apareciam uns meninos indianos que andavam com um elefante e encontravam outro menino, que era selvagem e não sabia falar e reagia como um felino. Quando eles tentavam se aproximar do menino selvagem, um grande tigre vinha protegê-lo. O menino tinha sido criado por aquele tigre que, na verdade, era fêmeo. O fato é que pensei que tigre fêmeo diz-se tigresa, e aí estava a palavra.  Dessa palavra parti para inventar uma letra que mantivesse o clima da música. Imaginei logo uma mulher e queria algo assim como uma história. Essa mulher foi se nutrindo de imagens de mulheres que conheço e conheci, e essa história foi se nutrindo de histórias que vivo.

Imagino que a série seja Maya, inspirada num filme de 1966, e que foi transmitida pela NBC nos Estados Unidos, e no Brasil pelas Tv’s Record e Tupi na década de 70.     E assim Caetano prossegue:

Terminou pintando também um pouco de história, uma vez que o interesse que as pessoas da minha classe e da minha geração uma vez demonstraram pelo assunto política aparece datado. Mil pessoas me perguntaram quem é a “Tigresa”, ou para quem a música foi feita.

Pois bem. Depois da mamãe tigresa da televisão, a primeira imagem de mulher que veio à minha cabeça foi a de Zezé Mota, e isso está bem evidente nas unhas e na pele. Mas terminei descobrindo que os olhos cor de mel são da Sônia Braga, embora não deixem de ter um parentesco com os cabelos da menina Maribel. Mas Bethânia e Gal já estavam lá. E Norma Bengell, Clarice, Claudinha, Helena Ignêz, Maria Ester, Silvinha Hippy, Marina, muitas outras meninas que eram bebês em 1966, Suzana e Dedé. Por fim a “Tigresa” sou eu mesmo. É minha primeira canção parecida um pouco com Bob Dylan.

O fato é que a primeira pessoa a se “apropriar” da canção foi Sônia Braga. Protagonista da novela “Espelho Mágico”, cujo tema musical era a “Tigresa”, na voz de Gal Costa. No ano seguinte, Sônia Braga protagonizava a novela “Dancin’ Days”, interpretando uma ex-presidiária. Mais um ponto que ligava Sônia Braga à canção.

Zezé Motta e Caetano

Além disso, Sônia era atriz e trabalhou no espetáculo Hair. Rosane Queiroz conta um pouco desta história no seu livro “Musas e Músicas ”

“Roubei ‘Tigresa’ para mim”, admitiu Sônia Braga, em uma entrevista que fizemos em 2006, publicada na Marie Claire. “Comecei a encontrar Caetano na praia, não lembro bem a época, só sei que a gente acordou juntos pra assistir o casamento da Lady Di [1981]. Foi uma relação bonita, de amor mesmo. A gente fez uma viagem de trem inesquecível de São Paulo ao Rio, daí ele compôs ‘Trem das cores’ para mim (Teu cabelo preto/ Explícito objeto…). A ‘Tigresa’ ele começou pensando na Zezé Motta, logo depois a gente se conheceu”, diz ela.

Caetano e Sônia Braga

Tanto que Ivete Sangalo, em 2012, no especial que fez com Gil e caetano, perguntou se a música teria sido feita para Sônia Braga, ao que Caetano respondeu “Mais ou Menos”. “Nós mulheres sempre achamos que as músicas são feitas para nós”, brincou a cantora…. “‘Trem das cores’ eu fiz para Sônia, mas ‘Tigresa’ não, encerrou o compositor.

Zezé Mota, também na história contada por Rosane Queiroz, se apresenta:

“Só o fato de ter meu nome associado a uma música tão bonita do Caetano já é o máximo…

“A pele marrom e as unhas negras eu sei que são minhas. Eu usava esmalte preto, que comprava na Biba [boutique famosa em Ipanema, nos anos 1970]. Hoje a cor é comum, mas naquele tempo não. Eu fazia o estilo exótico, com os cabelos curtinhos e o batom também preto.

Mas não trabalhei no Hair nem namorei Caetano. O trecho que diz ‘com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher’, vamos combinar, serve para todas nós, né? [risos] Mas quando ele fala de ‘uma mulher, uma beleza que me aconteceu’, evidentemente se refere a alguém com quem teve um caso afetivo. Notei que a letra não era só para mim.

Encontrei Sônia Braga em vários momentos. Gravamos juntas o filme Tieta, mas nunca falamos nesse assunto de a canção ser mais dela. Não importa que ‘Tigresa’ seja uma colagem. Na época, Caetano era casado com Dedé (Gadelha), acho que até ela entrou na história. O que importa é que estou no pacote.

Mais recentemente, Caetano fala mais uma vez sobre a canção e Zezé Motta, relatada por Cacau Hygino, na biografia de Zezé Motta :

A música Tigresa foi escrita na época da [discoteca] Dancin’ Days. Zezé tinha as unhas pintadas de preto. A figura física da Tigresa veio muito mesmo de Zezé. E ela sabe disso. Mas a canção não é sobre ela só. Tem muito Sônia e pensamentos sobre as mulheres daquele tempoFaz anos, me fizeram essa pergunta numa revista e eu disse que tinha Zezé e Sônia, mas também muitas outras mulheres. Finalmente, eu preferia fazer como Flaubert (que disse ‘Madame Bovary c’est moi’): a ‘Tigresa’ sou eu”, diz Caetano

Fontes:

Caetano Veloso, O mundo não é chato, Cia das letras, 2005

Rosane Queiroz, Musas e Músicas: A mulher por trás da canção, Tinta Negra, 2017

Cacau Hygino, Zezé Motta: Um canto de luta e resistência, Companhia Editora Nacional, 2018

Uptown Girl – De Billy Joel Para Elle Macpherson e Christie Brinkley

Em 1983, Billy Joel lançava uma de suas mais conhecidas canções: Uptown Girl, do seu álbum An innocent man. A música relata uma daquelas situações típicas em que um “downtown man”, ou seja, um homem simples, de classe média, deseja uma “uptown girl”, que numa tradução livre, poderia ser considerada uma “Patricinha”, que vive num mundo de luxo.

A música parece um desejo, um sonho de um sujeito comum, que primeiro idealiza a garota, que vive num “white bread world”, que seria algo como um mundo de elite cor-de-rosa. Esta garota, segundo a canção, ficaria cansada do seu mundo, seus garotos  e seus presentes de luxo, e vai se acabar se apaixonando por um cara comum – como o eu-lírico da canção. Ele diz que não poderá comprar-lhe pérolas, mas quando ele souber quem ela é, ela ficará com ele, e ele poderá, não sem orgulho, dizer que aquela “uptown girl” lhe pertence. 

An Innocent Man: Amazon.com.br: CD e Vinil
An Innocent man

Pode-se ver, sem muito esforço, que a canção tem por detrás aquela velha história conhecida do cara comum que está encantado com a moça rica, bonita, mas inacessível, e com o sonho de que ela esqueça de seu mundo fútil e venha cair nos seus braços…

O interessante é que essa música tem, na verdade, mais de uma musa inspiradora. Segundo o livro  “Música e Musas”, de Michael Heatley & Frank Hopkinson,  Billy Joel estava de férias no Caribe quando ele conheceu três modelos que estavam no mesmo hotel – Ellen Macpherson, Christie Brinkley e uma jovem e então desconhecida chamada Whitney Houston. Ele estava tocando piano quando as três ficaram maravilhadas vendo-o tocar o instrumento. 

Elle Macpherson | Supermodels, Elle macpherson, 80s swimsuit

Elle Macpherson

Joel conta que conseguiu atrair a atenção das mulheres apenas com o poder da música (embora o fato de ser um popstar deva ter ajudado). Ele disse: “Olhei para cima e havia essas três estonteantes mulheres olhando para mim do outro lado do piano ”

Inicialmente, Billy Joel começou a sair com Macpherson. ele estava recém-divorciado do seu casamento com Elizabeth Weber. Ele diz que eles estavam saindo (“dating”), mas não estavam comprometidos. Depois, quando ela foi para a Europa, ele começou a sair com Christie Brinkley, com a qual acabou se casando. 

Assim a música que originariamente se chamaria “uptown girls”, passou a se chamar “uptown girl”, e a musa inspiradora pouco a pouco passou a ser Christie…

The Dream Tiger — Christie Brinkley, 1983

Christie Brinkley

Joel, que é de Long Island, Nova Iorque, se identificou como o cara comum que conseguia atrair tão belas modelos, a ponto de dizer numa entrevista: 

O fato de que eu possa atrair uma mulher tão linda como Christie deve dar esperança a cada cara feia no mundo!”

A música, como todo o disco “An innocent man” foi uma homenagem à música pop dos anos 60. Divertida, leve e com uma história por trás…

O clipe mostra bem a cena. Se passa numa oficina mecânica, quando chega a “uptown gilrl” (a mulher no clipe é Christie Brinkley, uma das inspiradoras da canção e então já mulher de Billy Joel) com seu motorista particular. Vejam as danças típicas dos anos 80, inclusive o “break”

Fontes:

Música e Musas, de Michael Heatley & Frank Hopkinson. Trad. Christina Bazan e Christiane de Brito Andrei. Gutemberg, 2011

http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-1327163/Billy-Joels-Uptown-Girl-inspired-Elle-Macpherson-Christie-Brinkley.html#ixzz1liP6rNXF

Dora

“Dora, rainha do frevo e do maracatu…” com estas palavras, Caymmi começa uma homenagem a Recife, e à mulher brasileira que simboliza a cidade. A morena, cafusa, que dança o maracatu melhor que ninguém.

O curioso é que Dora foi composta num momento de saudade, composta em 1941, quando se despediu de sua esposa Stella. Caymmi conta assim, no episódio “Caymmi por ele mesmo”, exibida pela Rádio Cultura:

Dora

“Dora foi feito debaixo de uma coisa meio dolorosa: nós estávamos em plena guerra, estávamos eu e Stella (minha mulher ) em Fortaleza já com data marcada de viagem para o Rio de Janeiro. Ficou decidido em Fortaleza que ela viria pro Rio, porque me ofereceram compromisso de trabalho em Recife por 18 dias e eu relutei com medo daquela coisa que havia dificuldade de condução aérea e por mar, havia a chamada prioridade militar da guerra então sua passagem comprada podia ser cedida a um militar; e aconteceu desse roteiro que eu calculava para um mês e pouco fora de casa sem Stela, e eu fiquei dois meses pingando, pingando de Recife  até chegar ao Rio de Janeiro.

Viemos de Fortaleza naquele navio que parou em Recife e eu teria que ficar em Recife e Stella teria que vir direto pro Rio. Nana ia pro sexto mês de idade, estava aos cuidados da minha sogra mãe de minha mulher Stela  e que já deveria estar se sentindo na  saudade de mãe jovem, de qualquer mãe, não é? De qualquer idade. Muito justo e eu tinha que trabalhar 18 dias fazer um no rádio, fazer o Jóquei clube, enfim tinha que ficar em Recife e o navio iria embora.

Fotografias do Recife de 40 e 50 à venda no Museu da Cidade
Recife nos anos 40

Passamos (eu e Stella) o dia esperando o navio em Recife, no Hotel Central. Ficamos ali ela se arrumou, se ajeitou arrumou as bagagens bem de acordo do que precisava ali, algumas compras que fez e às onze horas da noite estávamos no porto de mar. Então ela partiu e eu fiquei chocado: a partida, aquela coisa, nós tínhamos apenas nem dois anos de casado, é um negócio assim, que é chocante à beça.

Pois bem: aquela separação me doendo terrivelmente. Cheguei no Hotel Central (onde estávamos hospedados) e tudo me doeu, tudo me lembrou Stella: peguei meu pente, escova, encontrei os cabelos dela ai fiquei  torturado. Em suma: fechei a mala, fechei tudo e saí. Saí assim de louco com a esperança de encontrar lugar no grande hotel  e não tinha vaga pra ninguém tão cedo. Então peguei minha mala meu violão e fui pro cais e sentei defronte do grande hotel, numa murada acabei de ver o navio saindo, saindo levando Stella pro Rio de Janeiro, muito longe….

E naquela melancolia aquela coisa e tal, eu ia no lá no bar (aberto lá dentro do hotel) e pedia: “você dá um conhaque?’ ele disse: “dou” dava o conhaque eu pagava, voltava pro meu ponto lá.

Mas enquanto isso eu puxei o violão que estava comigo no cais, na murada, o violão e a mala  e olhava o mar, a noite ali e tal o hotel, a fachada luminosa. De repente bradou um som assim, era um som de frevo, metais né? Trombones, pistões e tal, aquela coisa, um negócio bonito, um ritmo bonito que é o frevo né? A marcha agitada. Quando olhei vinha de lá o cordão puxando tudo à paisana e perguntei a uns: ‘isso é o que? isso é um carnavalzinho?’ ‘Não isso é que o pessoal tá correndo a bandeira pra pegar ajuda para o carnaval’. É um habito antigo né? Correr a bandeira pra pegar dinheiro. Aí chegava nos hotéis e pedia ‘ajuda aqui’ . Então esse bloco chamado o Pão da Tarde foi a informação que eu tive vinha buscar na porta dos hotéis aquele aquela ajuda e estavam tocando um frevo maravilhoso.

a roda dos brincantes festeiros: Maracatu
Maracatu

De repente eu vi que saía uma morena de lá e fazia o passo. Ela já vinha de longe, eu não tinha visto. Não era nenhum exemplo de beleza, era uma moça dançando. Tinha um daqueles bailarinos de rua, assim. O frevo sempre teve bonitos dançarinos, bonitas dançarinas né, fazendo um passo maravilhoso aquela sombrinha, aquele negócio  é uma coisa importantíssima.

Pois bem: foi nesta hora que quando o bloco saiu dali que foi andando e tal foi embora, bater em outros hotéis, outros buracos outras padarias, pastelarias, bares abertos pela madrugada, e já era por ai o que uma e meia da madrugada, eu voltei estava mais solitária ali a noite  né?

Edifício do Hotel Central, no Recife, é tombado pelo governo estadual |  Pernambuco | G1
Hotel Central de Recife

Foi quando me ocorreu a lembrança daquela moça de branco, assim, meio cor de rosa…. de vez em quando ela tirava a sandália e fazia descalça no trilho do bonde um passo ali, e era um requinte, o frevo do passo. E então deixei passar um pouco e saiu aquele som de música e tal, e eu fiquei com aquela ideia: ‘Dora rainha do frevo….’ Comecei a enfeitar e adornar aquela moça como rainha do frevo, rainha do maracatu, rainha de uma porção de coisas pra  arranjar um som e uma distração porque o navio já tinha ido né…

E a ideia de Dora nasceu ai ‘Dora rainha do frevo e do maracatu, Dora rainha cafuza….’ e o cafuza é bom, vem aquela analisezinha que a gente faz né? Cafuza, aquela mestiça, aquele tipo tá, calhando bem, de uma rainha de um maracatu, aquele esplendor daqueles três dias de  maracatu, carnaval…. ainda não tinha visto carnaval em Recife. ‘Te conheci no Recife dos rios cortados de pontes…’ ai eu fui fazendo já estava conhecendo Recife estava ali já há alguns dias e a canção foi aumentando, aumentando ‘Coloniais….’ achei bonito ‘Dos bairros das fontes, coloniais… Dora chamei….’ e fiquei por ai mais ou menos por ai.

em depoimento prestado à Associação de Pesquisadores da Música Popular Brasileira, em 1983, ele arrematou: “até que veio um empregado do hotel me avisar que havia desocupado um quarto. No dia seguinte fiz mais um pedaço. Mais adiante, já em Maceió, cheguei naquela parte que diz: ‘Os clarins da banda militar / tocam para anunciar…’”.

Recife nos anos 40

A música foi gravada por Caymmi em 1945, e o lançamento se deu em agosto do mesmo ano, disco 12606-A, matriz 7856, com acompanhamento da orquestra de Fon-Fon.

Fontes:

http://museudacancao.blogspot.com.br/

Stella Caymmi. “Dorival Caymmi: O ma e o tempo”

http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi-por-ele-mesmo/arquivo/sereias-de-terra