No último dia 4 de julho o Brasil perdeu Martha Rocha, a primeira Miss Brasil, em 1954, e que se tornou fruto, na época, de uma grande polêmica no concurso de Miss Universo daquele ano.
Martha Rocha ficou em segundo lugar no concurso, e se atribuiu, na época, que o motivo da americana Miriam Stenvenson ter ganho o troféu seria o fato de que Martha ter duas polegadas a mais de quadril.
Reportagem de O Globo em julho de 1954
A versão se tornou mais divertida que os fatos, terminou por ser fruto de uma onda nacionalista que valorizava os quadris da mulher brasileira.
Quem inventou a história foi o jornalista João Martins, da revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro,[7] para consolar o orgulho brasileiro. Tudo foi combinado com os demais jornalistas brasileiros que estavam em Long beach, onde se realizava o concurso A própria Martha autorizou a versão, conforme consta em sua autobiografia (Martha Rocha, Uma Biografia em depoimento a Isa Pessoa, Objetiva, 1993). “Nos Estados Unidos, nunca ninguém me tirou as medidas”, disse ela.
Outra especulação é que haveria a necessidade de que uma americana ganhasse, pois o Miss Universo estaria perdendo audiência nos Estados Unidos. Mas nada ficou provado.
A polêmica fez bem a Martha. Ela passou a ser cultuada no Brasil, passou a ser capa de revista, virou receita de bolo e passou a fazer campanhas publicitárias.
E isso virou marchinha de carnaval. Isso inspirou canções em homenagem ao episódio. A marchinha “Duas Polegadas”, de Pedro Caetano, Alcyr Pires Vermelho e Carlos Renato, exaltou a beleza da baiana e as controvertidas duas polegadas a mais de quadril.
Miriam Stevenson e Martha Rocha
A letra da música fazia referência ao violão: : “Por duas polegadas a mais, passaram a baiana pra trás/Por duas polegadas, e logo nos quadris/Tem dó, tem dó, seu juiz!”. Martha, Martha, não ligue mais pra isso, não/ Martha, Martha, ninguém tem o seu violão.
Tunai se foi no dia 26 de janeiro de 2019. Aos 69 anos, deixou como maior sucesso a música “Frisson”, cuja história conto aqui.
“Você caiu do céu, um anjo lindo que apareceu….”
Essa frase talvez seja a mais marcante da música Frisson, uma música que celebra a chegada de um amor arrebatador, á primeira vista.
Mas quem seria a mulher que inspirou a canção? A letra é do Poeta Sérgio Natureza. Interessante é que algumas mulheres com quem ele se relacionou acharam que a música foi feita para elas. E aí, negar ou alimentar a ilusão? Sérgio conta o episódio, no Livro “Então, foi assim?”, de Ruy Godinho:
“Ainda há pouco, apareceu uma senhora americana. Senhora hoje, mas que eu namorei quando ela estava com 20 anos. Linda e loira. Hoje uma senhora bonita e casada. Mas ela apareceu e depois de muita timidez me disse, falando em inglês:
‘ – Aquela música você fez para mim, não foi?
‘ – É, foi. Com certeza. Como é que você adivinhou?
Não, porque não custa nada. Pra bem da verdade a música foi feita um pouco pra cada uma, senão, não faz sentido. Como ela alcança todo mundo, as pessoas se veem na música. Algumas se acham as próprias musas, outras não. .
Mas quem é a verdadeira musa? Sérgio conta a história:
“Tinha um lugar aqui no Rio chamado Beco da Pimenta. Era um sobrado na rua Real Grandeza, no Botafogo. E havia shows. Um desses foi do cantor e compositor Moacyr Luz, que eu conheço há duzentos anos. Ele estava tocando e de repente começou a fazer sinais com a cabeça. .
“Ele insistiu. Eu olhei pro lado e vi uma mulher linda, um tipo totalmente diferente, parecia uma camponesa do leste europeu, com um pano na cabeça. E eu que sempre fui extremamente recatado, tímido mesmo – eu nunca fui de atacar – nesse dia não me contive. A entrada para os toaletes era comum e depois bifurcava. E era bastante ampla. Aí eu me tomei de sem-vergonhice e decidi: “Eu vou atrás dessa mulher”. Tomei coragem e fui. Quando eu a vi não conseguia falar. Ela era linda, parecia uma coisa onírica mesmo. Isso não existe. Ela me olhou e disse:
‘ – Oi’!
‘ – Oi’!
‘ – Me desculpe eu estar olhando pra você assim. Você é linda’.
‘ – Obrigada’.
‘ – Você não existe’.
‘ – Não, não sou nada disso que você está falando’.
‘ – Você realmente caiu do céu. Você é um anjo’.
‘ – Que nada. Obrigada’.
‘ – O que é que você faz’?
‘ – Eu, sou modelo fotográfico’.
‘ – Olha, eu estou assim com falta de ar’.
‘ – Que nada’.
‘ – Você deve estar com alguém’…
‘ – Não. Eu estava com uma amiga, mas ela já foi’.
‘ – Depois a gente conversa’.
Era a modelo Isabel, conhecida como Bebel. “Na verdade, partiu disso. Depois eu a encontrei, a namorei, mas eu sempre fiquei um pouco distante, porque eu achava que era meio uma criação da minha cabeça. Ela era muito linda. Uma pessoa adorável, doce. E depois, não era só a beleza. Era a simplicidade. E a vestimenta era uma coisa meio oriental. Ela estava com uma roupa que me pirou. Eu acho que é porque ela desfilava, fazia fotografias.
E a música?
“O Tunai me mostrou uma música que ele já tinha, chegou assim em cima do laço. E a letra partiu de ‘você caiu do céu, um anjo lindo que apareceu’ e foi embora. Ela era bonita e eu acho que a música passava a leveza que eu queria dizer. .
Mais tarde, Tunai acabou conhecendo a beldade. “Ele a conheceu anos depois, por uma circunstância de vida, acho que na praia e falou pra mim. Ela se apresentou: “Eu sou a Bebel. Você que é o Tunai? O Sergio fez aquela música pra mim’. Tunai confirmou que fez a música comigo”, conta Sergio.
Frisson foi gravada por Tunai no CD Em Cartaz (1984). Ivete Sangalo e grupo Ketama ( Espanha) a regravaram em português e espanhol, no CD Eu e Você (Banda Eva).
A letra:
Meu coração pulou
Você chegou, me deixou assim
Com os pés fora do chão
Pensei: que bom…
Parece, enfim acordei
Pra renovar meu ser
Faltava mesmo chegar você
Assim sem me avisar
Pra acelerar…
Um coração que já bate pouco
De tanto procurar por outro
Anda cansado
Mas quando você está do lado
Fica louco de satisfação
Solidão nunca mais
Você caiu do céu
Um anjo lindo que apareceu
Com olhos de cristal
Me enfeitiçou
Eu nunca vi nada igual
De repente…
Você surgiu na minha frente
Luz cintilante
Estrela em forma de gente
Invasora do planeta amor
Você me conquistou
Me olha, me toca, me faz sentir
Que é hora, agora, da gente ir
Pungente: essa pode ser a definição que se pode dar à bela canção O mundo é um moinho, da autoria de Cartola. Reza a lenda que o compositor teria feito a canção para a sua filha, quando ele descobrira que ela se tornara prostituta.
Mas a verdade não é exatamente assim.
Primeiro, a pessoa homenageada, Creusa Cartola, fora adotada pelo compositor quando ela tinha 5 anos de idade, após a morte de sua mãe biológica. Creuza é filha biológica de Rosa do Espírito Santo e Agenor Francisco dos Santos. Estes eram amigos de Cartola e Deolinda (então esposa de Cartola), sendo esta última madrinha de batismo da menina. Quando Rosa, a mãe, faleceu em 1932, Creuza tinha apenas cinco anos, e Deolinda e Cartola, juntos há sete anos naquela época, ficaram com ela.
Segundo relato da filha mais velha de Creusa, Irinéa dos Santos, Cartola compôs essa música quando Creusa era adolescente, e com a curiosidade normal de uma jovem de 16 anos por namoros. Não há qualquer registro de que Creuza se tornara prostituta
Na verdade, Creusa tornou-se cantora. Artista precoce, ela começou a cantar aos 14 anos, acompanhando Geraldo Pereira, outro grande compositor de Mangueira, em apresentações na Rádio Nacional, nas quais também cantava músicas de Cartola, que a levava e ensaiava., teve uma carreira discreta
Na época, pode-se imaginar que então fosse normal dizer quer alguém caiu na prostituição apenas por interessar-se por homens, e daí certamente deve ter surgido a lenda… Mas isto jamais fora dito por cartola em lugar algum.
Cartola e Creusa
A letra é realmente bonita, se inicia justamente com a referência a ser cedo… a personagem com quem o eu-lírico dialoga é jovem e inexperiente, não conhece nada da vida e anuncia sua partida, e ela é advertida de que segue um caminho sem rumo…
Na segunda estrofe, o eu-lírico tenta convencê-la (embora tenha consciência e até resignação de que não terá êxito) de que ao sair ela vai se perder, a vida vai se perder, sua própria identidade vai-se embora…
E, nesse momento, na terceira estrofe, vem a parte mais aguda, que compara o mundo a um moinho, que tritura sonhos e pulveriza ilusões… é uma imagem, um vaticínio de desesperança, como que a vida fosse sepultar as ilusões daquela que se despede, e que tem por trás o apelo implícito para que ela volte, ou melhor, para que ela não vá…
Repare-se, porém, que a letra fala em reduzir teus sonho, “tão mesquinho” e não mesquinhos. Isto muda completamente o sentido. O mundo é que é mesquinho, e não os sonhos…
Por fim, ele alerta para as desilusões amorosas… “preste atenção querida”, a advertência de um pai que ama a filha, é como se a moça fosse cair na vida… e em vez de abrir-se ao amor, abre-se ao cinismo, e a busca, esta descoberta do suposto e dito falso “amor” seria um caminho que a personagem estaria cavando para a própria derrocada…
Mais que uma advertência, é um pedido desesperado para que ela permaneça… e a canção assim entrou para a história..
Uma das qualidades sempre elogiadas de Chico Buarque é sua capacidade de cantar canções aproveitando-se do “eu-lírico” no feminino, em que mulheres, com vários nomes, profissões e histórias de vida, mulheres que são amadas, abandonadas, prostituídas, estigmatizadas…
É um resgate da tradição medieval galego-portuguesa… quem não se lembra dos trovadores cantando no eu-lírico feminino???
Mas busquei aqui uma lista dos nomes de mulheres citadas nas canções de Chico. Que mulheres são estas? Vou apenas fazer uma breve viagem nesses nomes, e no que eles revelam sobre tais mulheres…. 20 nomes de mulheres nas canções de Chico.
Ana [Ana de Amsterdã] (A Ana de vinte minutos, a Ana da brasa dos brutos na coxa)
Angélica (Quem é essa mulher, que canta sempre esse estribilho?)
Bárbara (Nunca é tarde, nunca é demais, onde estou, onde estás, Meu amor, vem me buscar). Umas das músicas que se refere à paixão de duas mulheres.
Beatriz (Sim, me leva pra sempre, Beatriz, me ensina a não andar com os pés no chão, para sempre é sempre por um triz)
Carolina (Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela e só Carolina não viu).
Cecília (Me escutas, Cecília? Mas eu te chamava em silêncio,na tua presença, palavras são brutas).
Cristina [Será que Cristina volta?] (Será que Cristina volta, será que fica por lá, será que ela não se importa de bater na porta pra me consolar).
Helena [Acalanto para Helena] (Dorme minha pequena, não vale a pena despertar) Uma referência à canção de Caymmi, certamente para sua filha Helena.
Iracema [Iracema voou] (Iracema voou para a América… Se puder, vai ficando por lá, Tem saudade do Ceará, Mas não muita)
Januária (Até o mar faz maré cheia pra ficar mais perto dela).
Lola (Sabia, Que ia acontecer você, um dia, E claro que já não me valeria nada, Tudo o que eu sabia, Um dia).
Luísa (Para ela que ele faz o bonito, para ela que ele faz o palhaço, para Luísa dormir em paz).
Madalena (Madalena foi pro mar, e eu fiquei a ver navios, Quem com ela se encontrar, Diga lá no alto mar, que é preciso voltar já, pra cuidar dos nossos filhos).
Maria [Olha Maria] (Mas hoje, Maria, Pra minha surpresa, Pra minha tristeza, Precisas partir).
Nina (Nina diz que, embora nova, Por amores já chorou que nem viúva, Mas acabou, esqueceu)
Renata Maria (Na minha boca as palavras que eu ia falar, Nem uma brisa soprou, Enquanto Renata Maria saía do mar).
Rita (Levou os meus planos, Meus pobres enganos, Os meus 20 anos o meu coração, E além de tudo, me deixou mudo o violão).
Rosa (Ah, Rosa, e o meu projeto de vida? Bandida, cadê minha estrela guia? Vadia, me esquece na noite escura, Mas jura, Me jura que um dia volta pra casa).
Sílvia (Morre de amor quem é capaz, Sílvia, Jaz, Morro de amor e quero mais, Sílvia).
Teresa [Teresa Tristeza] (Oh Tereza essa tristeza, Não tem solução…Não me espere não… Ao menos sou sincero, Que te adoro, Que te quero, Mas não passo bem sem carnaval).
Não posso deixar de registrar que muitas das músicas são sambas que seguem a velha tradição do samba carioca, da mulher que faz sofrer… e cada uma delas pode merecer uma história à parte…
Quando me perguntaram certa vez sobre músicas de separação, as duas que me apareceram foram de Chico: “Eu te amo” e “Trocando em miúdos”. Duas músicas belíssimas, pungentes, contém frases como “se confundimos tanto as nossas pernas, diz com que pernas eu hei de partir”, na primeira, ou “não vou lhe cobrar pelo seu estrago, meu peito tão dilacerado”, na segunda. Mas há um outro lado da moeda. Um desatar de um casamento não como mágoa ou desamor, mas como um amor que muda…
Ainda criança, ouvia “Drão”, de Gil, e a música não me dizia nada. “Drão” foi o apelido dado por Maria Bethânia para Sandra Gadelha, que, na época da composição da música, estava se separando de Gilberto Gil. A música continua universal. Hoje, percebo ser uma das mais belas músicas de separação já escritas. Escrita para desmentir a história que a separação é o fim do amor e o começo de desamor, mas de um amor que se transforma e se eterniza.
Por isso mesmo, quis juntar, numa música de separação, os depoimentos de Gil e de Sandra sobre a música e a época. E agradecer aos dois por serem musa e artista de uma das mais belas canções de Gil:
Gilberto Gil, no disco “Todas as letras” (Cia das Letras, 2000), diz:
“Sua criação apresentou altos graus de dificuldades porque ela lidava com um assunto denso – o amor e o desamor, o rompimento, o final de um casamento; porque era uma canção para Sandra [apelido de de Drão – daí o título de música] – e para mim. ‘como é que eu vou passar tantas coisas numa canção só?’, eu me perguntava.”
Gil e Sandra no Exílio
Sandra Gadelha, como inspiradora da canção, conta a história de como Gil lhe mostrou a música, numa reportagem da revista Marie Claire:
“Desde meus 14 anos, todo mundo em Salvador me chamava de Drão. Fui criada com Gal [Costa], morávamos na mesma rua. Sou irmã de Dedé, primeira mulher de Caetano. Nossa rua era o ponto de encontro da turma da Tropicália. Fui ao primeiro casamento de Gil. Depois conheci Nana Caymmi, sua segunda mulher. Nosso amor nasceu dessa amizade. Quando ele se separou de Nana, nos encontramos em um aniversário de Caetano, em São Paulo, e ele me pediu textualmente: ‘Quer me namorar?’. Já tinha pedido outras vezes, mas eu levava na brincadeira. Dessa vez aceitei.
Engraçado que Gil mesmo não me chamava de Drão. Antes havia feito a música ‘Sandra’. Já ‘Drão’ marcou mais. Estávamos separados havia poucos dias quando ele fez a canção. Ele tinha saído de casa, eu fiquei com as crianças. Um dia passou lá e me mostrou a letra. Achei belíssima. Mas era uma fase tumultuada, não prestei muita atenção. No dia seguinte ele voltou com o violão e cantou. Foi um momento de muita emoção para os dois.
Nos separamos de comum acordo. O amor tinha de ser transformado em outra coisa. E a música fala exatamente dessa mudança, de um tipo de amor que vive, morre e renasce de outra maneira. Nosso amor nunca morreu, até hoje somos muito amigos. Com o passar do tempo a música foi me emocionando mais, fui refletindo sobre a letra. A poesia é um deslumbre, está ali nossa história, a cama de tatame, que adorávamos.
No começo do casamento moramos um tempo com Dedé e Caetano, em Salvador, e dormíamos em tatame. Durante o exílio, em Londres, tivemos de dormir em cama normal. Mas, no Brasil, só tirei o tatame quando engravidei da Preta e o médico me proibiu, pela dificuldade em me levantar. A primeira vez em que ouvi ‘Drão’ depois que Pedro, nosso filho, morreu [num acidente de carro em 1990, aos 19 anos] foi quando me emocionei mais. Com a morte dele a música passou a me tocar profundamente, acho que por causa da parte: ‘Os meninos são todos sãos’. Mas é uma música que ficou sendo de todos, mexe com todo mundo.
Soube que a Preta, nossa filha, chora muito quando ouve ‘Drão’. Eu não sabia disso, e percebi que a separação deve ter sido marcante para meus filhos também. As pessoas me dizem que é a melhor música do Gil. Djavan gravou, Caetano também. Fui ao show de Caetano e ele não conseguia cantar essa música porque se emocionava: de repente, todo mundo começou a chorar e a olhar para mim, me emocionei também. E, engraçado, Caetano é o único dos nossos amigos que me chama de Drinha.“
Vale a pena escutar.
Primeiramente, Gil faz um paralelo entre Drão e o grão, oamor que é a semente que tem que morrer para germinar, fazendo referência à semeadura, e ao neologismo “caminhadura”, que faz referência à dura caminhada de uma relação.
Em seguida, Gil exorta ao não sofrimento, e que o amor transcende e se estende, e no final há um jogo de palavras entre o amor que é “vão”, mas que ao mesmo tempo é sólido como um monolito (estrutura geológica a partir de uma só rocha).
Por fim, Gil faz referência aos filhos sãos, assume os pecados, mas não pede perdão, já que não há o que perdoar, e que assim é o amor que morre nasce trigo, vive e morre pão.
P.S. Eu podia aqui divagar sobre o “catar feijão”de João Cabral de Melo Neto no processo criativo e falar sobre o elemento confessional na criação artística. Mas isso fica para outra viagem…
Esta frase termina uma bela homenagem de Gilberto Gil ao feminino, numa canção em que música e letra foram compostas ao mesmo tempo, e que se intitula “Super-Homem – a canção”.
Para quem não sabe, antes mesmo dos filmes sobre Homem-Aranha, X-Men, Batman, Pantera Negra, Homem de Ferro e etc, um filme de super-herói fez história no final da década de 70. Era o Super-Homem – o filme, com Christopher Reeve no papel de Super-Homem, Margot Kidder no papel de Lois Lane, Marlon Brando no papel de Jor-El, pai do Super-Homem e Gene Hackmann no papel de Lex Luthor.
O filme mostra o quanto o super-homem, ao mesmo tempo em que é vulnerável pela kriptonita, é vulnerável também ao amor que sente por Lois Lane, colega de profissão de seu alter-ego, Clark Kent. Super-homem não consegue suportar a ideia da morte de Lois Lane, e então opera um milagre.
A partir da narrativa de Caetano sobre o filme que acabara de ver, surgiu uma das mais conhecidas músicas de Gil, uma homenagem, que ele narra no seu livro Todas as Letras (Cia das letras, 1996).
“Eu estava morando na Bahia e não tinha casa no Rio, por isso estava hospedado na casa do Caetano. Como eu tinha que viajar logo cedo, na véspera da viagem eu me recolhi num quarto por volta de uma hora da manhã.
“De repente eu ouvi uma zoada: era Caetano chegando da rua, falando muito, entusiasmado. Tinha assistido o filme Super-Homem. Falava na sala com as pessoas, entre elas a Dedé [Dedé Veloso, mulher de Caetano à época]; eu fiquei curioso e me juntei ao grupo. Caetano estava empolgado com aquele momento lindo do filme, em que a namorada do Superhomem morre no acidente de trem e ele volta o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo para salvar a namorada. Com aquela capacidade extraordinária do Caetano de narrar um filme com todos os detalhes, você vê melhor o filme ouvindo a narrativa dele do quevendo o filme… Então eu vi o filme. Conversa vai, conversa vem, fomos dormir.
Mas eu não dormi. Estava impregnado da imagem do Super-Homem fazendo a Terra voltar por causa da mulher. Com essa ideia fixa na cabeça, levantei, acendi a luz, peguei o violão, o caderno, e comecei. Uma hora depois a canção estava lá, completa. No dia seguinte a mostrei ao Caetano; ele ficou contente: ‘Que linda!’
Gil somente fora ver o filme quando estava nos Estados Unidos para gravar o disco Realce. A canção foi feita, portanto, a partir da narrativa de Caetano Veloso sobre o filme. .
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O significado da canção, que há quase 40 anos foi visto com certa desconfiança pela critica, hoje parece evidente: é uma homenagem àquilo que é visto como feminino, como características atribuídas naturalmente às mulheres, e que são coisas que fazem o e-lírico melhor, muito mais do que o tradicional mundo masculino. Gil, ainda sobre a letra, arrematou:
“Sobre a “porção mulher” – “Muita gente confundia essa música como apologia ao homossexualismo, e ela é o contrário. O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião – me interessava revelar esse imbricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano”.
“Esse corpo moreno cheiroso e gostoso que você tem…”
Com esses versos, Bororó compôs uma das músicas sensuais de sua época. Da cor do pecado revela, em cada verso, o desejo que o eu-lírico sente pelo corpo moreno, delgado, depois passando pelo beijo, “molhado, escandalizado”, e depois a voz, que responde “umas coisa com graça”, e depois o cheiro de mato, saudade tristeza, para enfim voltar ao corpo moreno.
É uma música sinestésica, pois vai descrevendo as sensações do eu-lírico ao chegar perto da dona desse corpo, do beijo, do cheiro, da voz, tudo isso presente no corpo moreno. “Da cor do pecado” é um grande samba, talvez o melhor que se tem notícia que tenha sido composto por Bororó (Alberto de Castro Simões da Silva), gravado por Silvio Caldas, mas também por João Gilberto, Elis Regina, Nara Leão, Ney Matogrosso, entre outros.
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello contam um pouco da musa desta canção, gravada em 1939:
Brejeiro, malicioso, possui uma das letras mais sensuais de nossa música popular: “Este corpo moreno / cheiroso, gostoso/ que você tem / é um corpo delgado / da cor do pecado / que faz tão bem…”.
Segundo o autor, “a musa desses versos chamava-se Felicidade, uma mulher de vida pregressa pouco recomendável”, que trabalhava em frente ao Tribunal de Justiça e lhe foi apresentada por Jaime Távora, oficial de gabinete do ministro José Américo. Iniciou-se assim um romance de vários anos em que Bororó foi responsável pela mudança de vida da moça. Mais tarde ela se casaria com um médico, tendo morrido ainda jovem em consequência de uma gripe mal curada.
De melodia e harmonia elaboradas, acima da média dos sambas da época, “Da cor do pecado” tem seu aspecto mais interessante nas modulações da primeira para a segunda parte e na volta desta para a primeira. Ainda quanto à melodia, tal como se repetiria em “Curare”, a frase final – “eu não sei bem porquê / só sinto na vida o que vem de você” – é um primor de preparação para o acorde de dominante que conduz ao tom da primeira parte.
Fontes: Instituto Moreira Salles – Acervo Musical; A Canção no Tempo – Vol. 1 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34.
Certa vez compareci numa cerimônia de casamento em que uma das músicas da trilha sonora é a conhecida “Every breath you take”, do The Police. Achei curioso como certas pessoas enxergam nessa canção como um hino de devoção e cuidado, como se o sujeito estivesse acompanhando cada passo, cada respiração, cada movimento da pessoa amada, que, ao final, “pertence” ao eu-lírico.
Na verdade, “Every breath you take” sempre me assustou. Não gostaria de receber uma declaração de amor por intermédio dessa canção. O eu-lírico se posiciona como um vigia, como um grande irmão que acompanha todos os seus passos, suas vacilações, suas imperfeições, enfim, é alguém que sufoca através do amor que, na verdade, se transforma em uma obsessão.
E não sem razão, que consultando o livro “Músicas e Musas”, de Michael Heatley e Frank Hopkinson, encontrei duas declarações de Sting que corroboraram minha tese sobre o caráter obsessivo da canção, por intermédio da qual alguém se vê obcecado por outra pessoa.
Segundo Sting, a música é “uma canção fruto da experiência de ciúme e possessividade… uma canção sinistra, perversa, disfarçada num contexto romântico”
Repare que a introdução inconfundível da canção poderia muito bem ser usada num filme de suspense, de perseguição.
Sting compôs a canção no refúgio jamaicano de Goldeneye, segundo Sting, na mesma escrivaninha em que Ian Fleming (criador do 007) escrevera a próxima aventura de james Bond.
Sting, numa entrevista à BBC, afirmou: “Eu acho que a canção é muito, muito sinistra e cruel, e as pessoas a interpretaram como uma singela canção de amor”.
Percebe-se claramente o quão egoísta é a canção. O eu-lírico afirma textualmente que percebe o que o ser amado não consegue perceber: o fato de que ele (ser amado) pertence ao eu lírico, que de maneira obsessiva observa, segue, persegue e não consegue suportar a dor de não ser correspondido naquele instante.
Na canção, o sujeito observa cada respiração, cada passo, cada sorriso, cada promessa, cada movimento, cada noite, e não se conforma, afinal, a musa “lhe pertence”. Acabou sendo uma precursora daquilo que hoje se conhece como “stalkers”
O baixo é preponderante (Sting é baixista), a estrutura melódica e harmônica é simples, e consta que a canção teria sido inspirada no fim do casamento entre Sting e sua primeira esposa (Frances Tomelty). “Every Breath You Take” foi lançada no disco “Synchronicity” em 1983, e foi um sucesso estrondoso, talvez o maior sucesso da banda.
1976 foi um ano marcante na vida de Gilberto Gil. Durante uma turnê dos Doces Bárbaros a Florianópolis, ele foi flagrado com uma pequena quantidade de maconha, o suficiente para que fosse preso e processado pelo uso da droga.
em 15 de julho de 1976, Gilberto Gil foi condenado a 1 ano de prisão, tendo sua pena substituída por internação no Instituto Psiquiátrico São José, em Florianópolis, que durou 4 dias, depois com a transferência para a Clínica Psiquiátrica Botafogo, no Rio de Janeiro, onde passou mais um mês.
Na clínica, ele compôs uma bela canção, “Sandra”, uma homenagem às mulheres com quem conviveu naquele período, até uma homenagem final à sua esposa na época, Sandra Gadelha.
Gil conta, no seu livro “Todas as Letras” quem era cada uma destas mulheres da canção, até a existência de uma outra “Sandra”, que justifica o título. Nas palavras de Gil:
“Em 94, eu estava dando uma entrevista coletiva em Curitiba, quando uma moça entrou e disse: ‘Não se lembra de mim?’ Eu fiquei olhando, olhando, e ela então gritou: ‘Andréia na estréia!’ E eu: ‘Claro!’ Andréia era a menina que eu tinha conhecido, em 76, na passagem do show dos Doces Bárbaros pela cidade (antes de seguirmos para Florianópolis, onde eu fui preso por porte de maconha e posto em tratamento ambulatorial numa clínica, episódio em que a canção é baseada). Tínhamos ficado juntos na ocasião, e ela que me levou a um armarinho para comprar as fitas com que me enlaçou os cabelos trançados. Desde então nunca mais tínhamos nos reencontrado.”
*
“Todas as meninas mencionadas em Sandra foram personagens daqueles dias que eu vivi entre Curitiba e Florianópolis.
a) Maria Aparecida, Maria Sebastiana e Maria de Lourdes me atenderam no hospício durante o internamento imposto pela justiça enquanto eu aguardava o julgamento. A de Lourdes me falava a toda hora: ‘Você vai fazer uma música pra mim, não vai?’ ‘Vou’.
b) Carmensita: essa – foi interessantíssimo -, logo que eu cheguei, ela veio e me disse, baixinho: ‘Seja bem-vindo’.
c) Lair era uma menina de fora, uma fã que foi lá me visitar.
d) Salete era de lá: ‘Meu café é muito ralo’, me falou. ‘É exatamente como eu gosto, chafé’, respondi.
e) Cíntia: também de Curitiba, como Andréia. Quando passamos pela cidade, me levou ao sítio dela uma tarde; foi quem me deu uma boina rosa com a qual eu compareceria ao julgamento mais adiante, em Florianópolis, e com a qual eu apareço no filme Os Doces Bárbaros.
f) Ana: ficou minha amiga até hoje; de Florianópolis.
g) Dulcina, que era a mais calada, a mais recatada de todas na clínica, a mais mansa – era como uma freira -, foi a única que um dia veio e me deu um beijo na boca.
“Sandra, citada no final da letra, era minha mulher, que preferiu não ir a Florianópolis e com a qual eu associei a ideia do hexagrama da torre, tirado no I Ching, um dos meus livros de cabeceira naquele período: a que tomava conta de tudo; onde eu estivesse, o seu olhar espiritual me acompanharia; seu ente se espraiaria, estendendo-se por todas as mulheres com quem eu convivesse. A ela as mulheres citadas na letra remetiam por representarem o feminino, a minha sustentação naquele momento.
“Mas o que ninguém sabe, e que não se revela de nenhuma maneira na canção – o seu lado oculto -, é que há duas Sandras, a que é mencionada no fim e a do título, que não se refere à Sandra com quem eu era casado, mas a uma menina linda, maravilhosa, também chamada Sandra, que tietava o Caetano em Curitiba, amiga da Andréia – que me tietava.”
Eu admiro a ideia de como a referência à Sandra, quase mística, quase um símbolo, que mesmo longe serve de alicerce e de referência…
Sandra Gilberto Gil Maria Aparecida, porque apareceu na vida
Maria Sebastiana, porque Deus fez tão bonita
Maria de Lourdes
Porque me pediu uma canção pra ela
Carmensita, porque ela sussurou: “Seja bem-vindo”
(No meu ouvido)
Na primeira noite quando nós chegamos no hospício
E Lair, Lair
Porque quis me ver e foi lá no hospício
Salete fez chafé, que é um chá de café que eu gosto
E naquela semana tomar chafé foi um vício
Andréia na estréia
No segundo dia, meus laços de fita
Cintia, porque, embora choque, rosa é cor bonita
E Ana, porque parece uma cigana da ilha
Dulcina, porque
É santa, é uma santa e me beijou na boca
Azul, porque azul é cor, e cor é feminina
Eu sou tão inseguro porque o muro é muito alto
E pra dar o salto
Me amarro na torre no alto da montanha
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
baixo – Moacyr Albuquerque
violão de aço – Perinho Santana
flauta – Jorginho
flauta – Celso
bateria – Paulinho Braga
percussão – Djalma
piano – Cidinho
coro – Ronaldo Boys
sax-soprano – Mauro Senise
Fontes: Gilberto Gil. Todas as Letras. Org. Carlos Rennó,
Vinicius Cantuária é nascido em Manaus, crescido no Rio de Janeiro, e tem alguma composições belíssimas. Uma delas, gravada por Caetano Veloso, conta uma história de uma menina que ele viu na praia, e que se eternizou com o nome “Lua e Estrela”.
Ele conta a história a Rui Godinho, no terceiro volume do seu livro “Então, foi assim?” :
“Essa história é linda e verdadeira. Eu morava, na época, na casa do Arnaldo Brandão, um baixista, que depois tocou comigo na outra banda da Terra durante anos depois participou do Brylho (A noite vai ser boa..). É o Arnaldo tocava baixo com os Doces Bárbaros. Ele tinha um filho, que é o Rodrigo, que hoje toca numa banda em São Paulo.
Era uma sexta-feira e o Arnaldo falou: “Olha, hoje depois do show dos Doces Bárbaros a gente vai para o aniversário da Bethânia (ou da Gal sei lá, de alguém)… e vai ter uma festa depois. O Arnaldo e a Cláudia – que era mulher dele, mãe do Rodrigo – perguntaram: “Pô, fica tomando conta do Rodrigo hoje, pode ser? A gente vai chegar umas duas, três da manhã. Eu falei: “Claro. Sou o padrinho do Rodrigo, estou morando na casa de vocês podem ir”. Só que deu meia-noite, uma, duas, três, quatro horas e eles não chegavam nunca. Chegaram quase seis da manhã dessa tal festa. E eu estava acordado porque o Rodrigo já estava querendo acordar. Quando eles chegaram já estava claro”, relembra.
Então, Cantuária resolveu aproveitar o dia.
“ Como eles moravam no Leblon, coloquei uma bermuda, uma camiseta e fui até a praia. Saí andando no Leblon até o Arpoador. Cheguei ao Arpoador, era umas seis e pouco da manhã, muito cedo . O público de Arpoador não vai tão cedo à praia. Mas foi um fato curioso, porque eu sentei a uns quarenta metros de mim tinha uma menina sentada. Eu não a conhecia e ela não me conhecia. Ela me olhava e eu olhava para ela. Mas todo mundo que chegava à praia me conhecia e a conhecia. Então a distância entre mim e ela foi encurtando. As pessoas foram chegando em mais ou menos, a gente se aproximou, se olhou. Aí teve uma hora que ela saiu de onde estava e chegou mais perto. Ficou ali conversando com amigos. Ninguém nos apresentou, mas eu sentia que tinha uma empatia rolando entre a gente. Ela se dirigiu ao mar. Quando foi mergulhar, eu vi claramente que ela tinha um anel. Aí deu aquele estalo. Sabe quando bate um raio, uma coisa assim”, revela.
Esse “estalo” a que Vinicius se refere, outros compositores identificam como centelha criativa, inspiração, luz, mote para a composição musical.
“Isso eu conto hoje e talvez eu tenha até imaginado. Mas na hora eu vi. Bateu um raio, raio de sol, né? Consegui ver bem de perto que ela tinha um anel de lua e estrela. Como eu fui caminhando, voltei com a música na cabeça: [cantarolando] Menina do anel de lua e estrela, raio de sol no céu da cidade. Qual era o nome dela? Quem é você, qual o teu nome/ conta pra mim, diz como eu te encontro. Aí de noite, a gente ia pra onde? Pro Baixo, né? Quem sabe te encontro de noite no Baixo /deixa ao destino, deixa ao acaso… A música foi toda sendo formada daquela história. Eu voltei, peguei o violão e a música saiu toda”, relata.
A música estava criada, precisava apenas de um grande intérprete que a projetasse nacionalmente.
“Aí eu comecei a tocar com Caetano que adorava as minhas músicas. Mas eu nunca tinha mostrado Lua e Estrela. Não sei porquê. Até que um dia o Arnaldo falou: ‘Porra! Você nunca mostrou Lua e estrela pro Caetano’. Aí o Caetano falou: ‘Lua e estrela, que nome lindo, mostra pra mim. Mostrei, ele adorou, e como estava começando a gravar o disco Outras palavras, falou pra mim: ‘Vou gravar Lua e estrela vamos’? Eu falei: ‘Claro, vamos’! E foi isso. Essa é a verdadeira história da música”, confirma o compositor.
Vinicius enfatiza que é a “verdadeira”, porque há diversas falsas histórias, inventadas por pretensas musas.
“Anos depois, claro, eu fui encontrar a menina, que se chama Tize. Essa história é a verdadeira, mas há muitas histórias paralelas. Uma ocasião, por exemplo, eu estava com amigos, sentado num bar no Baixo Leblon, no auge do sucesso da música. Aí apareceu uma menina que sabia que eu tocava com Caetano, Puxou a conversa e falou assim: ‘Ah! Pois é, essa música o Caetano fez pra mim’. Ela nem sabia que eu era o autor da música. Muito engraçado [risos]. Tem muitas histórias com essa música, mas a verdadeira história é essa. Eu fiz pra essa menina, que eu não sabia o nome, que tinha um anel de lua e estrela. A letra não é nada mais nada menos do que eu querendo reencontrar essa menina. Então essa é a história”, conclui.