Em 1973, em plena ditadura militar, a Música representava uma das mais fortes expressões dos sentimentos populares. Assim, em maio de 1973, realizou-se um festival no Palácio de Convenções do Anhembi, com o elenco da gravadora Phonogram (Universal), que tinha como contratados a nata da música popular brasileira. .

No festival, grandes momentos merecem registro: Elis, Gal e Bethânia juntas, Toquinho e Vinícius, Gil e Chico com Cálice. Mas um momento chamou a atenção e vaias do público. Foi o dueto entre Odair José e Caetano Veloso, cantando a música “Eu vou tirar você desse lugar”, em que o eu-lírico revela o seu amor por uma prostituta e promete resgatá-la, mesmo diante das dificuldades e preconceitos que a situação ensejava.
Consta que a vaia no Anhembi foi fenomenal, sobretudo porque Odair José, que há pouco se tornara conhecido pela canção “Pare de tomar a pílula” (que na época causou revolta em setores conservadores do clero), era um representante de uma música considerada “brega” e “alienada”
Foi justamente a partir desta apresentação que Caetano cravou uma de suas frases emblemáticas: “Não há nada mais Z do que a classe A”.
Na gravação acima, não se percebem as vaias, eliminadas no processo de masterização que deu ensejo ao disco , que foi proibido pela censura .

Paulo Cesar de Aaraújo, no seu livro “Eu não sou cachorro não”, conta um pouco da história:
“Caetano então resolveu radicalizar, convidando para seu palco aquele artista considerado o mais redundante, banal e comercial: Odair José. Anunciado como ‘uma noite incrível reunindo o maior espetáculo de música brasileira de todos os tempos’, o show de Caetano Veloso — com o convidado surpresa Odair José — foi o último da mostra Phono 73, que contou naquele mesmo domingo com apresentações de Gal Costa, Maria Bethânia, Nara Leão e outros. Espécie de ‘patinho feio’ incluído em uma festa que reunia a nata da MPB, Odair José não poderia deixar de causar reação em um público preso a preconceitos estéticos de sua formação de classe média.” (Paulo César de Araújo, em “Eu não sou cachorro, não”, de 2002).

Odair, para Paulo Cesar, conta a história da canção:
A história é a seguinte: o cara trabalhava o dia inteiro e ao final do dia, em vez de ir pra casa, ele passava ali para tomar um drinque e tal.
E com esse drinque começava um grande romance. No dia seguinte ele voltava para tomar um segundo drinque, e mais um terceiro,
porque já estava realmente apaixonado por alguém dali. Eu assisti muito isso. Porque ali se encontram moças extremamente dignas, e o fato de estar naquele trabalho é apenas uma opção ou circunstância da vida, porque às vezes você faz planos de vida e a vida muda seus planos.
Sobre a experiência e as vaias, ele conta:
Eu era o maior vendedor da Polygram, mas não estava ali entre a elite. Naquele momento foi um prazer estar com ele (Caetano), um homem muito inteligente, à frente de seu tempo. Mas foi, evidentemente, uma confusão, com vaias, porque eu era um objeto estranho naquele ambiente. Vaias a gente sempre leva na vida, mas aquela foi uma noite especial à qual talvez eu não tenha dado a devida importância”

O episódio deixa bem claro o caráter tropicalista de Caetano, que através de sua postura conseguiu “legitimar” , ainda que tardiamente, muitas músicas não consumidas por uma chamada “elite” intelectual brasileira, que patrulhava e rotulava artistas. Tanto que foi Caetano que mostrou interesse em Odair, e não o contrário, como ele disse numa entrevista:
Como se deu esse encontro com o Caetano Veloso?
Soube através do André Midani (então diretor da gravadora Phonogram) que o Caetano gostaria de se apresentar comigo no Phono 73. Lembro que fretaram um avião para ir ao interior de São Paulo, se não me engano Piracicaba, onde ele estava se apresentando. Cheguei e o Caetano disse que gostava muito da música e queria cantá-la comigo. Tive uma boa impressão do Caetano que, por sinal, é um cara muito simples
E como foi o show? As vaias o incomodaram?
Para mim era apenas mais um show em minha vida, não dei tanta importância ao fato até chegar ao palco. Fui muito bem recebido por Caetano mas ficou bem claro para mim a distância de estilos através da reação de parte do público. Nunca tive como meta atravessar o ”outro lado” da MPB, eu só sei fazer o que faço e pronto. Se é brega, popular ou outra coisa não me importo. Eu me lembro que diante das vaias, Caetano jogou o microfone no chão, falou alguma coisa sobre classe A e Z e saiu do palco. Eu permaneci no palco, não tinha porque sair de lá e cantei outras duas músicas”
Curioso, por fim, é saber que há muitas entrevistas perguntando a Odair sobre o episódio, e bem poucas com Caetano…
Fontes:
Paulo César de Araújo, “Eu não sou cachorro, não”
http://rodrigomattar.grandepremio.com.br/2013/07/discos-eternos-phono-73-o-canto-de-um-povo-1973/
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1511200520.htm
http://caetanoendetalle.blogspot.com.br/2014/11/1973-vou-tirar-voce-desse-lugar.html
https://www.folhadelondrina.com.br/folha-2/entrevista-a-cafonalia-no-crivo-da-censura-492694.html

