As mulheres e suas canções – Tereza (Dorival Caymmi)

No começo de decada de 90, Dorival Caymmi fora convocado para compor a trilha sonora para uma minisserie baseada no romance Tereza Batista, de Jorge Amado. No entanto, Caymmi é conhecido pela tranquilidade, para não dizer vagareza, com a qual compoe suas canções. E quando a televisao pede uma obra para um programa, quase sempre os prazos sao bem exíguos. 

Danilo Caymmi, então, fora incumbido de fazer com que o pai compusesse a canção em tempo hábil. Dorival faria a letra, e a a partir dela Danilo faria a melodia. Só que Dorival, mesmo apressado pelo filho, disse que iria reler o livro para fazer a letra. Só que não havia tempo. Então, eis a solução encontrada por Dorival, num depoimento à sua neta Stella Caymmi, no seu livro Dorival Caymmi: o mar e o tempo (Editora 34):

Mas aí procurei na cabeça, dei umas voltas, já com um cartão-postal na mão, e pensei assim: Tereza Batista? O que é que ela fazia mesmo? Essas mulheres de Jorge Amado… Tieta do Agreste, essas mulheres, como é que eu faço? Eu tenho que fazer essa música. O Danilo quer para amanhã! Então saiu aquela fórmula, quase inconsciente, ‘Para saber de Tereza, meu bem, pergunte primeiro a mim, tudo que eu sei de Tereza meu bem, conto tintim por tintim’ … [cantando]. (…) E fui fazendo uma fantasia em cima de Tereza Batista. Como o postal não deu mais, encerrei dizendo: “oi quer saber de uma coisa?… Para saber de Tereza, só mesmo Nosso Senhor’. E saí pela tangente! E entreguei a música pronta, na medida do postal. Escrevi a letra no postal”.

E Danilo não acreditou que a letra tivesse ficado pronta tão rápido… Dorival confessou que a parte que ele mais gosta da letra é a parte que se refere à mulher que é “mato molhado por fora e por dentro“, que refere a algo, ao mesmo tempo selvagem e delicado, uma mulher poeticamente crua, que remete ao capim molhado numa alvorada…

Tereza Batista, no livro de Jorge Amado, transita entre o amor e a opressão; entre a doença e a paixão; entre o crime e a submissão. Tem uma série de nuances de amor e sofrimento. Mas Caymmi resolve a questão de outra forma.

Ao analisarmos a letra, percebe-se a artimanha de Caymmi, que promete dizer tudo de Tereza, detalhe por detalhe, pas acaba por não dizer nada, senão o gosto da fruta, o cheiro de flor, e o mato molhado… e que não faz nenhuma referência à personagem do livro…

Para saber de Tereza, meu bem
Pergunte primeiro a mim
Tudo que sei de Tereza, meu bem
Conto tim tim por tim tim

Gosto de tudo que é fruta
Cheiro de tudo que é flor
Mato molhado por fora, por dentro,
Graça, carinho e amor

Para saber de Tereza, meu bem
Pergunte primeiro a mim
Tudo que sei de Tereza, meu bem
Conto tim tim por tim tim

E quer saber de uma coisa?
Para dizer com franqueza
De um ditado que dizia
Que beleza não põe mesa
Eu não sou o inventor

Para falar de beleza
Para saber de Tereza
Só mesmo o nosso Senhor

Milagres do Povo. Uma homenagem de Caetano a Jorge Amado.

“Quem é ateu, e viu milagres como eu”… Desta maneira começa a canção “Milagres do Povo”, de Caetano Veloso. A canção foi lançada em 1985, fazendo parte da trilha de abertura da série “Tenda dos Milagres”, exibida na TV Globo, uma adaptação televisiva para o romance de Jorge Amado, publicado pela primeira vez em 1969.

Caetano conta um pouco da história numa entrevista que deu para o Jorna El País:

A frase sobre ser ateu e ter visto milagres foi dita por Jorge Amado. O Pasquim quis entrevistá-lo e queria que eu estivesse presente, ajudando a fazer perguntas. Como eu não podia estar no Rio na data marcada, eles me pediram as perguntas por escrito para que fossem lidas para Jorge. Eu perguntava que significado propriamente religioso tinha o candomblé em sua vida, já que ele era Obá de Xangô. Ele respondeu: “Não sei; feliz ou infelizmente, ao contrário de [Dorival] Caymmi, eu não tenho nenhuma fé. Sou ateu materialista convicto. Mas vi muitos milagres do candomblé. Milagres do povo”. Quando me pediram pra fazer uma música para a versão televisiva de Tenda dos Milagres, citei a frase logo na abertura da música. E passo a falar dos “deuses sem Deus”, que “não cessam de brotar nem cansam de esperar”.

Foi daí que nasceu a canção.

É importante lembrar que Jorge Amado foi deputado pelo Partido Comunista pelo estado de São Paulo, e autor da Emenda 3.218 que inseriu no texto da Constituição de 1946 o §7° do art. 141 que declarava e reconhecia a liberdade de crença: 7º — É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.

Na entrevista ao Pasquim, Jorge Amado afirma: Eu sou materialista, não tenho nenhuma religião, mas meu materialismo não me limita”

A música, quando faz referência aos “milagres do povo”, faz um elogio claro e manifesto às religiões de matriz africana, que vieram ao Brasil junto com o povo negro escravizado.

A canção, que faz referência a diversos Orixás (Xangô, Obatalá, Oxum, Iemanjá e Iansã), para além da homenagem à religiosidade de matriz africana e que ganhou identidade própria no Brasil, faz uma homenagem ao povo, verdadeiro artesão dos miagres. Os “deuses sem Deus” são uma afirmação de que todos somos deuses, mesmo sem acreditar numa divindade.

O milagre pode ser dança, sexo e glória, e que mesmo vindo ao Brasil e tendo conhecido a crueldade de frente, conseguiu se erguer para além da dor, e produzir milagres. Estes milagres estão na presença negra na cultura brasileira, devidamente arraizados e enraizados como milagres do povo.

Uma bela homenagem a Jorge Amado, que serviu de inspiração para a canção.

https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-07/caetano-veloso-minhas-expectativas-sobre-o-brasil-nao-sao-tanto-a-esperanca-sao-mais-a-responsabilidade.html

A Massa – o grande sucesso do festival MPB80 Raimundo Sodré em parceria com Jorge Portugal

O ano: 1980. A Rede Globo resolve reeditar os festivais da canção, com o denominado MPB 80. Um cantor baiano contagia o público com sua canção, e fica classificado em terceiro lugar. A composição até hoje ecoa… Raimundo Sodré, cantando a sua música, feita em parceria com Jorge Portugal. Seu nome: A MASSA. 

Quando se ouve a introdução, universal e regional, com samba-de-roda e de chula, já se percebe tratar-se de uma canção diferenciada.

A massa é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, a nossa dor é a dor do menino acanhado, do menino bezerro que vira massa no curral do mundo. A mão que amassa a comida, também molda e amassa “a massa dos homens normais”. 

A canção tem uma série de interpretações, desde a crítica social dos meninos marcados que amassama a mandioca em casas de farinha, bem como a desindividualização do homem, que como jerimum amassado, é colocado como parte de uma massa, massa de meninos…

Essa dor se revela num gemido calado, que salta aos olhos, mas parece não haver alternativa a viver nesse moinho de homens, que amassam e são amassados, e a massa amassada é mansa (reparem na aliteração da massa que amassa e mansa é amassada), e que, quando se lembra da massa da mandioca, o que acontece???   

Raimundo Sodré, numa entrevista ao site http://aqueimaroupa.com.br, disse, sobre a canção e sua apresentação no maracanãzinho, em 1980: : 

– Ver aquele mundo de gente cantando A Massa foi muito especial pra mim, lá na frente meu pai pulando e cantando, segurando as bolsas de todo mundo e vibrando comigo! Ficamos em terceiro lugar, atrás de Oswaldo Montenegro e Amelinha. A música já era um verdadeiro sucesso, tocava em todas as rádios do país”, pontua Sodré.

Sobre a inspiração que o levou a compor a música “A Massa”, Raimundo Sodré conta que estava assistindo a um telejornal, ao lado da sua então esposa, a francesa Danielle, e viu uma notícia sobre determinada reivindicação da classe média e uma outra sobre a mandioca, quando deu o “estalo”:

No noticiário em questão, foi exibida uma matéria segundo a qual a classe média brasileira já estava reclamando muito. “E eu disse: ‘Imagine o pessoal da mandioca!’, o pessoal que planta mandioca, porque passa, que não tem nem direito de chorar. Aí, então, nasceu isso: ‘Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe/Da massa’. Fiquei com esse refrão desde 1976, até 1977. Foi quando Portugal colocou a letra”, recordou.

– Fui dormir, quando acordei no outro dia, já estava com o refrão da música na minha cabeça, ‘quando eu lembro da massa da mandioca mãe, a massa…’ (cantarola). Ainda falei com minha mulher, imagine o Maracanãzinho cantando essa música… Dito e certo, previ o sucesso! Mas, antes, gravei a música, em 1976, e levei pra Jorge Portugal fazer a letra, aí ele fez e quando eu ouvi, me emocionei demais. Essa música foi coisa de Deus, porque quando peguei o violão para fazer os acordes, eles casavam perfeitamente com o refrão, acho que Deus colocou no meu ouvido… mas, minha maior tristeza é saber que minha mãe não acompanhou o sucesso da Massa, uma pena! – revela o artista.

Ao começar a escrever A massa, Jorge Portugal relatou que se dirigiu à escrivaninha por volta das 11 h e, em pouco mais de dez minutos, já tinha feito a letra. Sodré, quando recebeu o telefonema de Jorge Portugal, se emocionou: “Quando eu peguei a letra, rapaz, eu chorei. Juro que as lágrimas vieram”.

E o que acontece quando a gente lembra da massa da mandioca?? Fazendo referências em inglês e francês, a “massa” pode ser lembrada como uma referência à maconha, quando fala que “nunca mais me fizeram aquela presença“, em que “massa” e “presença” eram gírias referentes ao consumo…

Mas ele deixa claro que a massa que fala “é a que passa fome“, para, em seguida, fazer referências a sambas-de-roda e chulas do Recôncavo Baiano.

Em 23 de agosto de 1980, veio a consagração. Final do festival MPB 80, promovido pela Rede Globo, no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Cenário lotado, uma apresentação que deixou o público de pé, como se pode ver no vídeo. Raymundo Sodré, de macacão branco e sem camisa, de chapéu e seu violão, fez uma apresentação inesquecível. Ficou em terceiro lugar, atrás de Foi Deus quem Fez Você, de Luiz Ramalho, interpretado por Amellinha, e a campeã foi Agonia, de Mongol, na voz de Oswaldo Montenegro.

A dor da gente é dor de menino acanhado
Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar
Que salta aos olhos igual a um gemido calado
A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar

Moinho de homens que nem jerimuns amassados
Mansos meninos domados, massa de medos iguais
Amassando a massa a mão que amassa a comida
Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais

Quando eu lembro da massa da mandioca mãe, da massa
When I remember of “massa” of manioc
Nunca mais me fizeram aquela presença, mãe
Da massa que planta a mandioca, mãe

A massa que eu falo é a que passa fome, mãe
A massa que planta a mandioca, mãe
Quand je rappele de la masse du manioc, mére
Quando eu lembro da massa da mandioca

Lelé meu amor lelé no cabo da minha enxada não conheço “coroné”
Eu quero mas não quero (camarão).
Minha mulher na função (camarão)
Que está livre de um abraço,
mas não está de um beliscão

Torno a repetir meu amor: ai, ai, ai!
É que o guarda civil não quer a roupa no quarador
Meu Deus onde vai parar, parar essa massa
Meu Deus onde vai rolar, rolar essa massa

No canal de Danilo Ribeiro no Youtube, Jorge Portugal contou de onde veio a inspiração da letra:

A dor da gente é dor de menino acanhado

“É aquela dor que nunca se expressa. Um menino acanhado é um menino tímido, um menino que está oprimido. Todos nós estávamos sob o regime militar, a ditadura militar.”

Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar/Que salta aos olhos igual a um gemido calado

“Aquele gemido do menino acanhado, que não expressa”, e que salta aos olhos da sociedade.

A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar

“Mal-assombrado era a ditadura.”

Moinho de homens que nem jerimuns amassados/Mansos meninos domados, massa de medos iguais

Nessa parte, Portugal descreveu, em algumas frases, a opressão recorrente na ditadura.

Amassando a massa a mão que amassa a comida

“Que distribui a comida, a sobrevivência.”

Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais

“São aqueles que não se rebelam, aqueles que não questionam, aqueles que estão em estado de letargia, de alienação, e que, portanto, são manobrados por aqueles que, na verdade, amassam a massa e têm toda a riqueza em suas mãos.”

Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe/Da massa… (refrão)

A partir do “Lelé, meu amor, Lelé/No cabo da minha enxada/Não conheço o coroné”, é um pot-pourri dos sambas e chulas.

Fonte: http://aqueimaroupa.com.br/2010/07/25/sodre-o-cantador-das-dores-e-amores-da-massa/

https://hugogoncalvesjor.blogspot.com/2020/07/raimundo-sodre-e-jorge-portugal-contam.html

Quando lembro da massa da mandioca, mãe…

Rede Globo e as 30 músicas do século XX

 

No ano 2000, na virada do século, a Rede Globo promoveu um especial para escolher as mais importantes músicas do Século XX, no especial “100 anos de música”. Eu assistia o programa com minha irmã, e tentava adivinhar as músicas que seriam escolhidas. Não era uma escolha pelas melhores músicas, mas sim daquelas que tiveram uma significativa importância musical.

Eu tinha certeza que “Aquarela do Brasil” ganharia, sabia que lá estaria “Chega de Saudade”, “Carinhoso” e “Asa Branca”. Imaginava “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo. Apesar de entender a importância de Tom Jobim, achei em certa medida exagerada a inclusão de 8 músicas suas entre as 30 (que, na verdade, são 31).

Senti a ausência de referências a músicas tropicalistas, parece que não houve Rock no Brasil no século XX (talvez Secos e Molhados, Rita Lee ou Raul Seixas, pelo menos um deles mereceria uma referência, ou, para o fim do século, Renato Russo ou Cazuza).

Não acho que Sampa seja a mais importante de Caetano, nem  O que será  a mais importante de Chico (embora estivesse também presente Retrato em branco e preto, em parceria com Tom Jobim). Novos Baianos, Nação Zumbi, Assis Valente, todos mereceriam menções honrosas. Mas toda lista desse estilo é polêmica.

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São 8 músicas de Tom Jobim, 4 de Vinícius de Moraes; 2 de Chico Buarque, Ary Barroso, Noel Rosa, Vadico e Dorival Caymmi. Os demais têm uma música. A lista:

Campeã: Aquarela do Brasil

1: “Carinhoso” (Pixinguinha e João de Barro)
2: “Garota de Ipanema” (Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)
3: “Asa branca” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)
4: “Águas de março” (Antônio Carlos Jobim)
5: “Chega de saudade” (Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)
6: “As rosas não falam” (Cartola)
7: “Travessia” (Milton Nascimento e Fernando Brant)
8: “Desafinado” (Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça)
9: “Eu sei que vou te amar” (Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)
10: “Chão de estrelas” (Orestes Barbosa e Sílvio Caldas)
11: “Se todos fossem iguais a você” (Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)
12: “Luar do sertão” (Catulo da Paixão Cearense)
13: “Samba do avião” (Antônio Carlos Jobim)
14: “Brasileirinho” (Waldir Azevedo)
15: “Retrato em branco e preto” (Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque)
16: “O que será” (Chico Buarque de Holanda)
17: “Saudade da Bahia” (Dorival Caymmi)
18: “Manhã de carnaval (Luiz Bonfá e Antônio Maria)
19: “No rancho fundo” (Ary Barroso e Lamartine Babo)
20: “O bêbado e o equilibrista” (João Bôsco e Aldir Blanc)
21: “Tico-tico no fubá” (Zequinha de Abreu)
22: “Feitiço da Vila” (Noel Rosa e Vadico)
23: “Feitiço de oração” (Noel Rosa e Vadico)
24: “Marina” (Dorival Caymmi)
25: “A noite do meu bem” (Dolores Duran)
26: “Foi um rio que passou em minha vida” (Paulinho da Viola)
27: “Aquele abraço” (Gilberto Gil)
28: “Sampa” (Caetano Veloso)
29: “Detalhes” (Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
30: “Meu bem querer” (Djavan)

 

Fontes http://redeglobo.globo.com/videos/t/variedades/v/especial-100-anos-de-musica-escolheu-a-maior-cancao-brasileira-do-seculo-xx/3860555/