O nego e eu? (de João Cavalcanti por Roberta Sá). Um Passeio por Chico, Gil, Caetano e Caymmi

Que menina é aquela, que entrou na roda agora? Ela tem um remelexo que valha-me Deus Nossa Senhora” Essa frase é da música Remelexo, de Caetano Veloso e gravada por Simonal na década de 60. Essa mulher, aquela que seduz a todos com sua dança e o requebrado dos seus quadris é cantada e decantada sobretudo pelo samba da Bahia…

Francisco Bosco, num belo ensaio que fez sobre Caymmi na série “Folha Explica”, faz uma referência às mulheres dos seus sambas:

Trata-se de um rebolado gracioso, a um tempo sensual e discreto, extremamente feminino, poderoso e consciente do seu poder, mas como que brejeiro, delicado, sutil.”

No entanto, há poucas notícias dessas mulheres como o eu-lírico de uma canção. E aí vem o mérito de uma das músicas que se destaca no álbum Segunda Pele, gravado em 2012 por Roberta Sá: É a música “O nego e eu“, composta por João Cavalcanti, do Casuarina

Não por coincidência, O nego e eu é o único samba de um disco que tem uma toada mais pop, e que, segundo o próprio sítio digital de Roberta Sá, entrou no disco depois que o repertório já estava inicialmente definido. 

Essa entrada posterior certamente se deve ao fato de que Roberta, nesse trabalho, pretendia mostrar-se como mais do que uma cantora vinculada ao samba. Ela mesmo disse que o samba estava ficando”óbvio” para ela (nos anos e álbuns seguintes, o samba voltaria com toda força). Por isso havia uma certa relutância em incluí-la no disco, mas, como dito no site, “a importância do estilo musical na sua história e a conexão com os fãs falaram mais alto”.

E, mais adiante:

A ideia era gravar uma resposta ao samba “Sou eu”, composto por Chico Buarque para Diogo Nogueira. Desde que eu escutei essa música, falei: eu quero uma resposta, porque a mulher também pode ir para o baile. Cadê o ponto de vista dessa mulher, que vai para o baile, deixa tudo, mas que prefere o homem dela?“.

Pediu a música a João, que compôs “O nego e eu”

Pra quem não sabe, “Sou eu” é uma canção de Chico em que o homem se enciúma com o rebolado de sua mulher, mas que, ao final da noite, será ele, o eu-lírico, que vai levá-la pra casa. 

Então surge a versão da mulher, daquela mulher típica dos sambas que gosta de dançar e enfeitiçar os homens, gosta de sentir-se desejada, como se o desejo alheio fosse o combustível para animar o eu-lírico feminino. 

Mas aí, assim como Gil, na canção “Sandra”, o eu-lírico feminino tem sua torre, amarrada à qual ela dá pra ver o mundo inteiro, a torre na qual ela dá o salto no alto da montanha, e que é só balançar, que a corda o leva de volta para ela… 

E quem é essa torre? O “nego”, aquele que ela prefere após ser desejada por todos, aquele, que, mesmo com ciúmes, é para quem a mulher dança e se entrega no fim da noite.

João Cavalcanti,  o compositor da música, tratou um pouco da história da canção: 

É uma ficção não tão ficicional porque acontece pra cacete, isto é, da mulher que ‘abre o pavão’ na noite, no baile, na gafieira, e que na verdade é apaixonada e dedicada a seu marido” 

João (que é filho de Lenine) também gravou a canção no seu disco “Garimpo”, em 2018.

É uma bela homenagem a essa mulher que habita muitos desejos,  e que para a própria Roberta, é como se fosse  sua própria relação com o gênero musical. “Para mim, tem muito a ver com a minha história com o samba, o nego sendo o samba. Posso flertar com outros ritmos, posso experimentar outras coisas, mas só tem sentido o nego e eu“.

A letra: 

Gosto de ser vista pelas festas, ser seguida pelas frestas,
Protagonista do sonho alheio.
Gosto de deixar pelos lugares um punhado de olhares
Incendiados no fogo que ateio
Gosto que me vejam por inteira. gosto de solar na gafieira.
Gosto se me sinto desejada, mas eu levo a madrugada pra mim.
Porque gosto mais é do chamego e dos beijos do meu nego no fim.

O nego, o nego, o nego e eu.
Ele é o grande amigo que o destino concedeu.
Só tem sentido o nego e eu.

Ele não é dado pra ciúme,
Mas encabulado assume que prefere até que eu não vá.
Digo que meu jogo se resume a um rastro de perfume
Que eu deixo nos ares de lá.
Gosto que me vejam por inteira.
Gosto de solar na gafieira.
Gosto se me sinto desejada,
Mas eu levo a madrugada pra mim.
Porque gosto mais é do chamego
E dos beijos do meu nego no fim.

O nego, o nego, o nego e eu.
Ele é o grande amigo que o destino concedeu.
Só tem sentido o nego e eu.

Fonte: http://robertasa.com.br/site/os-bastidores-de-o-nego-e-eu/ (acesso em abril de 2012)

As parcerias de Cartola e Noel Rosa

Cartola e Noel Rosa são dois dos maiores expoentes do samba de todos os tempos.

Cartola, nascido em 1908 e falecido em 1980, foi um dos fundadores da Mangueira, e algumas de suas composições se eternizaram no imaginário poular, como “As rosas não falam”, “O mundo é um moinho”, “O sol nascerá”, “Tive sim” entre tantas outras.

Noel, por sua vez, nasceu em 1910 e faleceu bem jovem, em 1937, e exaltava a Vila Isabel. Tem também canções históricas, tais como “Com que roupa”, “Palpite infeliz”, “Conversa de botequim”, “Último desejo”,  apenas algumas das mais de 200 músicas que compôs ao logo da vida.

O que poucos sabem é que Cartola e Noel eram amigos. Segundo João Máximo e Carlos Didier, na biografia que escreveram sobre Noel, este e Cartola se conheceram no Café e Bilhares Maracanã, onde havia encontros fortuitos entre ambos. Um certo dia, Noel foi visitar Cartola, mostrou a ele seus sambas, ouviu o que Cartola tinha a mostrar. Tornaram-se amigos.

Ainda segundo a referida biografia, em 1935, quando o Jornal “A Nação” promove um concurso sobre o maior compositor de escolas de samba, Noel Rosa, convidado a dar seu voto, faz uma defesa veemente: “Cartola merece uma campanha em torno de seu nome. Dos compositores espontâneos, ninguém merece mais do que ele”

A amizade era tanta que Noel passou a frequentar a casa de Cartola. Por diversas vezes, Deolinda (a companheira de Cartola na época) cuidava de Noel nas suas bebedeiras, com água quente e sopa de tutano.

Mas a pergunta que se faz: dois compositores deste quilate nunca tiveram uma parceria?

Segundo Lira Neto, no seu livro sobre a história do samba, há duas parcerias atribuídas pelos pesquisadores a Noel e Cartola. Ambas foram gravadas por Francisco Alves em 1932.

Uma dela é “Rir”, que foi originalmente creditada a José de Oliveira, pessoa absolutamente desconhecida no meio musical. No entanto, um jornal da época já afirmara que a composição seria de Cartola, Noel e Francisco Alves. Ocorre que Chico Alves era conhecido por comprar sambas de compositores e assumi-los como autor ou coautor, tanto que, ná época, chegava a ser chamado de “comprositor”

A outra canção é “Não faz, amor”, foi registrada como uma coautoria entre Cartola e Francisco Alves. No entanto, é de conhecimento público que a segunda parte da canção foi escrita por Noel Rosa. Consta que o nome teria sido omitido por uma dívida que Noel tinha com Francisco Alves e que era paga em sambas.

Para além das duas acima citadas, consta também como da parceria de Noel e Cartola o samba “Tenho um novo amor”, gravada por carmen Miranda em 1932

Por fim, há referência, também, ao samba “Qual foi o mal que eu te fiz?”. Consta que Noel Rosa e Cartola foram pedir um dinheiro a Francisco Alves, num bar do Largo do Maracanã. Francisco Alves, então, teria pago para que os dois fizessem um samba ali, naquele momento. Desse encontro, nasceu em poucos minutos “Qual foi o mal que eu te fiz?”, que foi gravada em 1933.

Deve-se reparar que, na época Noel já era conhecido, e Cartola, embora fosse conhecido no meio musical, era desconhecido do grande público. Inclsuive, é de Cartola um dos primeiros sambas em homenagem a Noel, após sua morte, chamado “A Vila emudeceu”

Fontes:

DIDIER, Carlos, e MÁXIMO, João. Noel Rosa: uma Biografia. Brasília. Linha Gráfica, Unb, 1990

Lira Neto, Uma História do Samba: as Origens. São Paulo, Companhia das Letras, 2017

Pinto, Mayra. Noel Rosa, o Humor na canção. São paulo, Ateliê Editorial, 2012.

https://radiobatuta.ims.com.br/programas/ouve-essa/qual-foi-o-mal-que-eu-te-fiz

A Massa – o grande sucesso do festival MPB80 Raimundo Sodré em parceria com Jorge Portugal

O ano: 1980. A Rede Globo resolve reeditar os festivais da canção, com o denominado MPB 80. Um cantor baiano contagia o público com sua canção, e fica classificado em terceiro lugar. A composição até hoje ecoa… Raimundo Sodré, cantando a sua música, feita em parceria com Jorge Portugal. Seu nome: A MASSA. 

Quando se ouve a introdução, universal e regional, com samba-de-roda e de chula, já se percebe tratar-se de uma canção diferenciada.

A massa é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, a nossa dor é a dor do menino acanhado, do menino bezerro que vira massa no curral do mundo. A mão que amassa a comida, também molda e amassa “a massa dos homens normais”. 

A canção tem uma série de interpretações, desde a crítica social dos meninos marcados que amassama a mandioca em casas de farinha, bem como a desindividualização do homem, que como jerimum amassado, é colocado como parte de uma massa, massa de meninos…

Essa dor se revela num gemido calado, que salta aos olhos, mas parece não haver alternativa a viver nesse moinho de homens, que amassam e são amassados, e a massa amassada é mansa (reparem na aliteração da massa que amassa e mansa é amassada), e que, quando se lembra da massa da mandioca, o que acontece???   

Raimundo Sodré, numa entrevista ao site http://aqueimaroupa.com.br, disse, sobre a canção e sua apresentação no maracanãzinho, em 1980: : 

– Ver aquele mundo de gente cantando A Massa foi muito especial pra mim, lá na frente meu pai pulando e cantando, segurando as bolsas de todo mundo e vibrando comigo! Ficamos em terceiro lugar, atrás de Oswaldo Montenegro e Amelinha. A música já era um verdadeiro sucesso, tocava em todas as rádios do país”, pontua Sodré.

Sobre a inspiração que o levou a compor a música “A Massa”, Raimundo Sodré conta que estava assistindo a um telejornal, ao lado da sua então esposa, a francesa Danielle, e viu uma notícia sobre determinada reivindicação da classe média e uma outra sobre a mandioca, quando deu o “estalo”:

No noticiário em questão, foi exibida uma matéria segundo a qual a classe média brasileira já estava reclamando muito. “E eu disse: ‘Imagine o pessoal da mandioca!’, o pessoal que planta mandioca, porque passa, que não tem nem direito de chorar. Aí, então, nasceu isso: ‘Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe/Da massa’. Fiquei com esse refrão desde 1976, até 1977. Foi quando Portugal colocou a letra”, recordou.

– Fui dormir, quando acordei no outro dia, já estava com o refrão da música na minha cabeça, ‘quando eu lembro da massa da mandioca mãe, a massa…’ (cantarola). Ainda falei com minha mulher, imagine o Maracanãzinho cantando essa música… Dito e certo, previ o sucesso! Mas, antes, gravei a música, em 1976, e levei pra Jorge Portugal fazer a letra, aí ele fez e quando eu ouvi, me emocionei demais. Essa música foi coisa de Deus, porque quando peguei o violão para fazer os acordes, eles casavam perfeitamente com o refrão, acho que Deus colocou no meu ouvido… mas, minha maior tristeza é saber que minha mãe não acompanhou o sucesso da Massa, uma pena! – revela o artista.

Ao começar a escrever A massa, Jorge Portugal relatou que se dirigiu à escrivaninha por volta das 11 h e, em pouco mais de dez minutos, já tinha feito a letra. Sodré, quando recebeu o telefonema de Jorge Portugal, se emocionou: “Quando eu peguei a letra, rapaz, eu chorei. Juro que as lágrimas vieram”.

E o que acontece quando a gente lembra da massa da mandioca?? Fazendo referências em inglês e francês, a “massa” pode ser lembrada como uma referência à maconha, quando fala que “nunca mais me fizeram aquela presença“, em que “massa” e “presença” eram gírias referentes ao consumo…

Mas ele deixa claro que a massa que fala “é a que passa fome“, para, em seguida, fazer referências a sambas-de-roda e chulas do Recôncavo Baiano.

Em 23 de agosto de 1980, veio a consagração. Final do festival MPB 80, promovido pela Rede Globo, no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Cenário lotado, uma apresentação que deixou o público de pé, como se pode ver no vídeo. Raymundo Sodré, de macacão branco e sem camisa, de chapéu e seu violão, fez uma apresentação inesquecível. Ficou em terceiro lugar, atrás de Foi Deus quem Fez Você, de Luiz Ramalho, interpretado por Amellinha, e a campeã foi Agonia, de Mongol, na voz de Oswaldo Montenegro.

A dor da gente é dor de menino acanhado
Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar
Que salta aos olhos igual a um gemido calado
A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar

Moinho de homens que nem jerimuns amassados
Mansos meninos domados, massa de medos iguais
Amassando a massa a mão que amassa a comida
Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais

Quando eu lembro da massa da mandioca mãe, da massa
When I remember of “massa” of manioc
Nunca mais me fizeram aquela presença, mãe
Da massa que planta a mandioca, mãe

A massa que eu falo é a que passa fome, mãe
A massa que planta a mandioca, mãe
Quand je rappele de la masse du manioc, mére
Quando eu lembro da massa da mandioca

Lelé meu amor lelé no cabo da minha enxada não conheço “coroné”
Eu quero mas não quero (camarão).
Minha mulher na função (camarão)
Que está livre de um abraço,
mas não está de um beliscão

Torno a repetir meu amor: ai, ai, ai!
É que o guarda civil não quer a roupa no quarador
Meu Deus onde vai parar, parar essa massa
Meu Deus onde vai rolar, rolar essa massa

No canal de Danilo Ribeiro no Youtube, Jorge Portugal contou de onde veio a inspiração da letra:

A dor da gente é dor de menino acanhado

“É aquela dor que nunca se expressa. Um menino acanhado é um menino tímido, um menino que está oprimido. Todos nós estávamos sob o regime militar, a ditadura militar.”

Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar/Que salta aos olhos igual a um gemido calado

“Aquele gemido do menino acanhado, que não expressa”, e que salta aos olhos da sociedade.

A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar

“Mal-assombrado era a ditadura.”

Moinho de homens que nem jerimuns amassados/Mansos meninos domados, massa de medos iguais

Nessa parte, Portugal descreveu, em algumas frases, a opressão recorrente na ditadura.

Amassando a massa a mão que amassa a comida

“Que distribui a comida, a sobrevivência.”

Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais

“São aqueles que não se rebelam, aqueles que não questionam, aqueles que estão em estado de letargia, de alienação, e que, portanto, são manobrados por aqueles que, na verdade, amassam a massa e têm toda a riqueza em suas mãos.”

Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe/Da massa… (refrão)

A partir do “Lelé, meu amor, Lelé/No cabo da minha enxada/Não conheço o coroné”, é um pot-pourri dos sambas e chulas.

Fonte: http://aqueimaroupa.com.br/2010/07/25/sodre-o-cantador-das-dores-e-amores-da-massa/

https://hugogoncalvesjor.blogspot.com/2020/07/raimundo-sodre-e-jorge-portugal-contam.html

Quando lembro da massa da mandioca, mãe…

A briga de Beth Carvalho com Elis Regina por conta de “Folhas Secas”

“Folhas Secas” é uma das maiores composições de Nelson Cavaquinho, em parceria com Nelson Antônio da Silva e Guilherme de Brito. Está na história do cancioneiro nacional. Trata-se de uma homenagem à Estação Primeira de Mangueira, música cantada num tom nostálgico, em que o eu-lírico, ao pisar em folhas caídas de uma mangueira, se lembra da sua escola, na qual, por inúmeras vezes, subiu o morro cantando…

Em seguida, vem um anúncio de um tempo em que a velhice vem chegando e que o cantor não poderá mais cantar, mas sentirá saudade de seu violão e da sua mocidade, e uma frase que tem um duplo sentido “e assim vou me acabando…”, de cantar? Ou será que tem a ver com o envelhecimento?

O fato é que a canção rendeu muitas polêmicas, e não por conta de sua letra. Sua gravação é que gerou polêmicas. Na verdade, Elis Regina e Beth Carvalho gravaram a música no mesmo ano (1973). A versão de Beth, um samba, com direito a “laraiá” e tudo; a versão de Elis é quase um samba-canção, com uma interpretação mais intimista e com um andamento mais lento.

Três livros contam versões diferentes sobre o tema:

Na biografia de Elis escrita por Arthur de Faria, consta que Elis teria ouvido a canção na fita que Beth Carvalho enviara a César Camargo Mariano e teria “pulado na frente”;

Cumpre ressaltar que César era quem faria os arranjos do disco de Beth Carvalho, mas casaria com Elis naquele ano (1973).

Danilo Casaletti, no livro organizado por Célio Albuquerque (1973 – O ano que reinventou a MPB), conta que César teria mostrado para Elis, ao piano em casa, a canção em que estava trabalhando para o disco de Beth. Elis teria ficado encantada e pediu a música para Nelson Cavaquinho. O compositor, mesmo já tendo prometido a faixa a Beth, foi incapaz de dizer “não” ao pedido – sobretudo pelo fato de que Elis tinha mais destaque, por ser contratada de uma grande gravadora (Philips).

Sérgio Cabral, na Biografia que escreveu sobre Tom Jobim, conta que César Camargo ouvia a fita em casa, com a voz de Nelson Cavaquinho, tentando elaborar o arranjo para o disco de Beth. Elis escutou e não pensou duas vezes: “Que Beth Carvalho, que nada! Este samba vai para o meu disco”.

Mas quem terminou por trazer novas luzes sobre o tema foi Leonardo Bruno, no livro Canto de rainhas – O poder das mulheres que escreveram a história do samba. E quem assumiu a responsabilidade foi Roberto Menescal, compositor e produtor do disco de Elis.

    No epicentro do terremoto estava César Camargo Mariano, amigo que Beth havia convidado para fazer o arranjo do compacto Só quero ver, em 1971, e que chamou novamente para a produção de Canto para um novo dia. Na seleção de repertório para o no LP, Beth escolheu a canção de Nelson Cavaquinho e mostrou a César. O que Beth não sabia era que ele estava namorando Elis Regina. Pouco tempo depois, Beth descobriu que o disco Elis, que seria lançado pela Philips, traria “Folhas secas”. A sambista ficou furiosa. Apressou sua gravação da canção e pediu à Tapecar que colocasse no mercado um compacto simples com o registro, o que foi feito com velocidade razoável.

    Mas as “Folhas secas” de Elis chegaram primeiro as rádios, com formação de jazz (piano-baixo-bateria) e uma percussão suave, numa interpretação mais lenta. As de Beth vieram logo depois, com a instrumentação mais tradicional de samba, abertura com direito a “laralaia”, andamento mais pra frente e acompanhamento do conjunto nosso samba. Ambos os arranjos são de César Camargo Mariano.

    As duas versões fizeram sucesso radiofônico. Mas a que entrou para a história foi mesmo a gravação de Beth Carvalho, até por ter na faixa o violão de Nelson Cavaquinho, em seu estilo peculiar, tocado com apenas dois dedos. O curioso é que Nelson também lançou um disco no mesmo ano de 1973, considerado o melhor de sua carreira, e resolveu incluir “Folhas secas” – que, no fim das contas, teve três registros memoráveis num espaço de poucos meses.

    Mas, afinal, como a música escolhida por Beth foi parar no disco de Elis? Há algumas versões para a história, e um consenso de que a ligação de César Camargo Mariano com Elis foi o caminho para que a fita chegasse aos ouvidos da Pimentinha.

        A versão de Beth Carvalho é que ela adorava o trabalho de César Camargo e achou natural convidá-lo para fazer os arranjos e a regência do novo disco. Escolheu o repertório e mandou para ele numa fita de rolo. Tempos depois, ouviu o boato de que Elis Regina teria gravado “Folhas secas” e telefonou para o músico, que negou. Mas o zum-zum-zum foi aumentando. Nesse meio tempo, encontrou César no trânsito, emparelhados num sinal. Abriu a janela e perguntou: Ô, César, qual é o nome da música do Nelson Cavaquinho que a Elis vai gravar?” Ele disse que não se lembrava. Uma semana depois, uma jornalista prima de Beth, que entrevistara Elis, tirou a dúvida: a Pimentinha havia gravado “Folhas secas”. Elis não me deu nenhuma satisfação por isso. Fiquei muito chateada, nunca mais falei com ela”, contou Beth. O rompimento com César Camargo também durou mais de uma década.

    Beth Carvalho deixou evidente seu desagrado com o episódio quando foi lançar o disco no Sambão, da TV Record, programa apresentado por Elizeth Cardoso, uma das “rivais” de Elis. Ao ser anunciada para cantar “Folhas secas”, Beth entrou no palco, pegou o microfone e, já com a banda dando a introdução da música, aproveitou para dar uma alfinetada: “Antes eu quero dar uma palavrinha. Essa música que eu vou cantar é de um compositor que eu adoro, Nelson Cavaquinho, em parceira com Guilherme de Brito. Mas antes de eu gravar, eu cantei essa música num teatro, e Elizeth Cardoso estava presente. Eu soube que ela adorou a música e queria gravar também. Mas quando ela descobriu que eu ia gravar, ela disse: ´Não, então se a Beth já vai gravar, mais tarde eu gravo; Por isso é que ela é a Divina Elizeth Cardoso! (vídeo abaixo)

    Em entrevista para este livro, Roberto Menescal dá uma nova versão, assumindo a responsabilidade pelo entrevero e de certa forma absolvendo César e Elis. Menescal, autor da primeira música gravada por Beth, “Por quem morreu de amor”, a esta altura era produtor de Elis Regina, e muito amigo do casal Elis-César Camargo. Além disso, atuava como diretor artístico da gravadora. “Eu fiz uma ´baianada` com a Beth. César era casado com a Elis e estava produzindo o LP da Beth Carvalho. Ele fez um arranjo da música ´Folhas secas’, do Nelson Cavaquinho, e me mostrou. Eu disse: Eu vou gravar essa música. O César falou: ´Não, Menescal, eu não posso fazer isso com a Beth. Respondi: ´Fala que fui eu que peguei a música. Fizemos um arranjo pra Elis e estouramos. Beth nunca me falou nada, mas deve ter ficado mordida. César ficou mal com a situação. Elis não sabia de nada. Depois eu mandei um recado pra Beth Carvalho: Beth, me desculpe, mas pelo meu artista eu faço qualquer coisa.’”

    Enfim, Roberto Menescal assumiu a responsabilidade pela polêmica que fez com que Elis e Beth Carvalho jamais se falassem de novo… Paulinho Lima, no seu livro, “Anjo do Bem, Gênio do Mal”, disse ter perguntado a Nelson Cavaquinho qual das gravações ele gostava mais. Ele, de forma relutante, disse: “A de Beth…”

Chico e Caetano falam sobre Elza Soares

No dia 20 de janeiro de 2022 falece Elza Soares. Talvez seja impossível classificar seu estilo, sua voz, sua vida. A história de Elza é única. De tantas homenagens que recebeu, vale aqui a transcrição dos textos de Chico Buarque e Caetano Veloso sobre a cantora, quando ela fez 90 anos:

Músicas, vídeos, estatísticas e fotos de Elza Soares | Last.fm

Se acaso você chegasse a um bairro residencial de Roma e desse com uma pelada de meninos brasileiros no meio da rua, não teria dúvida: ali morava Elza Soares com Garrincha, mais uma penca de filhos e afilhados trazidos do Rio em 1969. Aplaudida de pé no Teatro Sistina, dias mais tarde Elza alugou um apartamento na cidade e foi ficando, ficando e ficando.

Se acaso você chegasse ao Teatro Record em 1968 e fosse apresentado a Elza Soares, ficaria mudo. E ficaria besta quando ela soltasse uma gargalhada e cantasse assim: “Elza desatinou, viu.”

Se acaso você chegasse a Londres em 1999 e visse Elza Soares entrar no Royal Albert Hall em cadeira de rodas, não acreditaria que ela pudesse subir ao palco. Subiu e sambou “de maillot apertadíssimo e semi-transparente”, nas palavras de um jornalista português.

Elza Soares: Chico Buarque e Caetano Veloso escreveram textos inéditos nos  90 anos da cantora - Jornal O Globo

Se acaso você chegasse ao Canecão em 2002 e visse Elza Soares cantar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, ficaria arrepiado. Tanto quanto anos antes, ao ouvi-la em “Língua’’ com Caetano.

Se acaso você chegasse a uma estação de metrô em Paris e ouvisse alguém às suas costas cantar ‘Elza desatinou’, pensaria que estava sonhando. Mas era Elza Soares nos anos 80, apresentando seu jovem manager e os novos olhos cor de esmeralda.

Se acaso você chegasse a 1959 e ouvisse no rádio aquela voz cantando “Se acaso você chegasse’’, saberia que nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares.

Caetano, por sua vez, fez a seguinte homenagem:

Elza Soares é uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu. Quando apareceu cantando no rádio, era um espanto de musicalidade. Logo ficaríamos sabendo que ela vinha de uma favela e desenvolvera seu estilo rico desde o âmago da pobreza.

Elza Soares: Caetano Veloso lamenta morte da cantora e amiga: 'Fui fã'

Ela cresceu, brilhou, quis sumir, não deixei, ela voltou, seguiu e prova sempre, desde a gravação de “Se acaso você chegasse’’ até os discos produzidos em São Paulo por jovens atentos, que o Brasil não é mole não.

Celebrar os 90 anos e Elza é celebrar a energia luminosa que os tronchos monstros não conseguirão apagar da essência do Brasil.

Depois de tão belas homenagens, só se pode dizer que Elza sempre será uma estrela da música e da vida.

Ô coisinha tão bonitinha do pai….

Almir de Souza Serra quase ninguém conhece. Ele tinha um apelido, Almir Magnata. Depois, de magnata virou Almir Guineto. Ele integrou um grupo musical que fez sucesso nos anos 60, chamado Originais do Samba (Mussum talvez seja o membro mais conhecido do grupo). Atribui-se a Guineto, , inclusive, a introdução do Banjo em grupos de samba (objeto de controvérsia, que não cabe tratar aqui, por enquanto). O certo é que Almir teria uma forma particular de tocar banjo, cujo volume, ao contrário do cavaquinho, era capaz de soar mais alto junto aos instrumentos percussivos.

Compacto 7" - Os Originais Do Samba ‎– Os Originais Do Samba

Almir, carioca do morro do Salgueiro, teve que se mudar para São Paulo junto com o grupo Originais do Samba. E morava numa casa com vários homens. Ali surgiu “Coisinha do pai”, que é contada por Ruy Godinho, no volume 1 de seu livro “Então, foi assim?”

“Eu comecei a fazer na Rua Aurora, 544 apto 105, eu e o Luiz Carlo Chuchu. Nós morávamos juntos no apartamento do meu irmão Chiquinho, que era um dos integrantes dos Originais do Samba, no tempo do Mussum. E ali só morava homem: Eu, Chiquinho, Luiz Carlos Chuchu e Lelê, que também fazia parte do grupo. Cada dia era um que fazia a comida ou a limpeza. E nesse dia era meu dia de limpar. Eles até brincavam: ‘hoje a Raquel é você!’ cada um tinha o seu dia de sofrimento. E, de madrugada, eu, embriagado como sempre, pintou essa música: “Ô coisinha tão bonitinha do pai/ô coisinha tão bonitinha do pai…”

Homenagem Almir Guineto - Marcinho Moreira [ SÓ NO BANJO ]
Almir Guineto

Eu fiz a primeira parte. Aí o Luiz Carlos, que é um compositor muito bom, botou a segunda parte: “Você vale ouro todo o meu tesouro/Tão formosa da cabeça aos pés”

O Beto Sem Braço era o parceiro que iria fazer a terceira parte, já estava até na cabeça dele. Mas o Jorge Aragão ouviu a gente cantar e e pediu para botar a terceira parte, em homenagem à filha dele que tinha nascido: Vou lhe amando lhe adorando/Digo mais uma vez/Agradeço a Deus por que lhe fez

Assim, despretensiosamente, o samba caiu no colo de Beth Carvalho, que a gravou em 1979, no disco “Pagode”. Foi um sucesso absoluto. A letra, que inicialmente sugere uma relação de admiração pela mulher, no aspecto sensual, termina por desembocar numa relação de amor pai-filha, indicada nos versos finais de Jorge Aragão.

 

Conto de areia.

“Contam que toda tristeza que vem da Bahia, nasceu de uns olhos morenos molhados de mar…”

O trecho acima citado vem da música “Conto de Areia”, composição  de Romildo Bastos e Toninho Nascimento que se tornou um fenomenal sucesso na voz de Clara Nunes, em 1974. É um belíssimo samba de roda tipicamente baiano (embora Romildo seja pernambucano, e Toninho, paraense), que remete às velhas canções de Caymmi, da história do pescador que foi ao mar pescar e que nunca volta (me veio a referência à velha frase de Caymmi: “A jangada voltou só…“)

A música tem uma letra longa, cuja inspiração Toninho revelou a Vagner Fernandes, no livro Clara Nunes: Guerreira da Utopia (Ediouro, 2007):

“Eu a compus a partir de uma conversa com um amigo-vizinho baiano, que contava casos que havia vivido na Bahia. Um deles era a história da mulher cujo marido foi pescar e nunca mais voltou. Ela enlouqueceu e passou a andar pelas areias da praia dia e noite em busca do amado. me inspirei nessa história e fiz a letra” 

Conto de Areia - Album by Clara Nunes | Spotify

 Acho a música impressionante, como também é a letra que impulsionou um fenômeno de vendas. Carro chefe do álbum “Alvorecer”, a música  ajudou Clara Nunes a vender mais de 350 mil cópias do disco, em 1974, um absoluto recorde para a época, quando se tinha a cultura de que “mulher não vende disco.

O samba é contado do fim para o começo… “è água no mar, é maré cheia“, quando a morena (não se sabe se é lenda ou se é verdade) carrega consigo e nos seus olhos morenos moilhados de mar toda a tristeza da Bahia. Ela se enfeita na praia, na noite, com lua… enche seu peito de tristeza e promessas… e dança…

Saiba como a Lua e o Sol influenciam as marés – Orla Rio

Faz promessas porque seu amor se fez de canoeiro, e o vento arrastou o veleiro, de modo que Iemanjá levou consigo seu amor (um pouco a partir da história da lenda das sereias)…

No fim, o ser amado (o canoeiro) se despede da moça, diz para ela não esperá-lo porque ele já vai embora, voltar para o reino de Iemanjá, sua senhora, e a recomenda a não olhar mais para os veleiros, porque ele não vai voltar. Afinal, “foi beira mar quem chamou”

Toninho também conta que a letra original era “É lua no mar, é maré cheia”. Quando Romildo foi mostrar a melodia, cantava “é água no mar, é maré cheia”. Todas as vezes que se encontravam, Romildo cantava “É água no mar”, em vez de “É lua no mar”. Toninho explicava para Romildo a relação da lua com o mar, da gravidade, que a lua influenciava nas marés… mas Romildo sempre cantava “é água no mar”. Toninho dizia que o que tem no mar é água, mas, de tanto ver Romildo “errar”, acabou ficando o verso “É água no mar”…

Romildo Souza Bastos, da dupla Romildo e Toninho, fala sobre Clara Nunes e  seus sucessos. - YouTube
Romildo

Em entrevista à TVT, Toninho ouviu a história de um vizinho de sua sogra, que tocava violão, que contou uma história da Bahia, e que tinha uma louca, que andava pelas praias de Amaralina, catando conchas, e a molecada namorava aquela louca. E o baiano foi namorar esta mulher louca, que morava num casebre sobre uma duna. E o baiano se espantou que no casebre da louca não havia móveis, nem cama, nem cadeira, apenas montinhos de conchas que ela catava pelas praias, que ela depositava no piso do casebre. Conta a história que a louca, quanto mais jovem, vivia com um pescador, o qual foi pro mar e nunca mais voltou. E por conta disso, a louca passou a catar conchas na praia

Toninho ficou emocionado com a história. Ficou com a história na cabeça, e transformou em versos, e deu para Romildo musicar.

É uma música triste, cantada numa versão definitiva por Clara Nunes.

Uma curiosidade é que Adelzon Alves, companheiro e produtor de Clara, na época, parecia ter implicado com a música. Toninho, no mesmo depoimento a Wagner Fernandes, disse que Romildo chegou na cara-de-pau e mostrou a canção a Clara, mas Adelzon teria implicado com partes da letra. Uma delas, a letra original dizia “Era um peito só, cheio de promessa e ebó“, que acabou sendo substituída por  “Era um peito só, cheio de promessa era só”. Outra parte, era o verso “E leva pro meio das águas brancas de Iemanjá” , quando Adelzon teria implicado com a expressão “brancas”, que acabou excluída da letra. 

Romildo, no entanto, em entrevista no youtube, conta que mostrou a música para Adelzon, que ficou empolgado com a canção, e pediu para Romildo mostrar outras músicas…

Compositor Toninho Nascimento mostra sua "identidade" em São Paulo -  Vermelho
Toninho

A letra da canção: 

É água no mar, é maré cheia ô
mareia ô, mareia
É água no mar…


Contam que toda tristeza
Que tem na Bahia
Nasceu de uns olhos morenos
Molhados de mar.
Não sei se é conto de areia
Ou se é fantasia
Que a luz da candeia alumia
Pra gente contar.
Um dia morena enfeitada
De rosas e rendas
Abriu seu sorriso moça
E pediu pra dançar.
A noite emprestou as estrelas
Bordadas de prata
E as águas de Amaralina
Eram gotas de luar.

Era um peito só
Cheio de promessa era só
Era um peito só cheio de promessa (2x)

Quem foi que mandou
O seu amor
Se fazer de canoeiro
O vento que rola das palmas
Arrasta o veleiro
E leva pro meio das águas
de Iemanjá
E o mestre valente vagueia
Olhando pra areia sem poder chegar
Adeus, amor

Adeus, meu amor
Não me espera
Porque eu já vou me embora
Pro reino que esconde os tesouros
De minha senhora
Desfia colares de conchas
Pra vida passar
E deixa de olhar pros veleiros
Adeus meu amor eu não vou mais voltar

Foi beira mar, foi beira mar que chamou
Foi beira mar ê, foi beira (2x)

sexta 22 julho 2011 04:21 , em Samba

https://oglobo.globo.com/rio/toninho-nascimento-de-belem-do-para-apoteose-na-sapucai-11618096

Lá vem o Brasil descendo a ladeira… Como João Gilberto inspirou a canção de Moraes Moreira

“Quem desce do morro, não morre no asfalto…” Com esta frase Moraes começa a letra  de “Lá vem o Brasil descendo a Ladeira”, talvez o samba de maior sucesso de Moraes Moreira após sua saída dos Novos Baianos.

Antes de se notabilizar por ser o primeiro cantor de Trio Elétrico, Moraes sempre se dizia um sambista baiano, como na letra da música “O que é o que é”, em que se definia “um sambista baiano, um artista, um bandido cigano, que é com a bola no pé e a viola na mão”.

Por dónde empiezo | Fotos históricas, Fotos do rio, Fotos antigas

Numa entrevista ao Jornal o Globo, em 1976, narrada por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no livro “A canção no tempo”, Moraes diz:

No fundo eu sou só um sambista baiano. samba baiano é diferente do carioca, é outra coisa. O carioca é lindo, mas tende para a melancolia, muitas vezes.O samba baiano é alegre, é pra cima, é outra malandragem” 

Voltando à música,  ela retrata uma sequência de imagens, em que uma mulata desce a ladeira com a lata na cabeça, com o dia amanhecendo…

Moraes narra que, numa dessas madrugadas, João Gilberto caminhava com Moraes numa das ruas do Rio de Janeiro , quando percebeu uma mulher descendo a ladeira, com todo vigor, todo suingue, todo gingado, e uma lata na cabeça. Estava partindo para vida, sem se queixar de nada…

João não titubeou e disse: “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”…

Esse foi o verso que “arriscou o poeta” João Gilberto, ao que Moraes respondeu com um samba “sem medo”, em que exalta a mulher negra brasileira, do morro, do samba, que anda na sola e no salto… no equilíbrio da lata…

2]

E a introdução já faz imaginar a cadência desta mulher anônima homenageada. Moraes faz uma pequena referência a esta canção no Livro “A história dos novos baianos e outros versos

Estes versos foram escritos depois que ouvi uma exclamação poética de João Gilberto. Ao ver uma linda mulata descendo o morro, ele disse: “Olha o Brasil descendo a ladeira.” Depois dessa, só mesmo um samba pra comemorar. Na parte musical contei com a participação de Pepeu Gomes.

Compacto Moraes Moreira - La Vem O Brasil Descendo A Ladeira - R ...

Um samba bem cadenciado…Segue a letra…

Quem desce do morro
Não morre no asfalto
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
Na bola, no samba, na sola, no salto
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
Na sua escola é a passista primeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
No equilíbrio da lata não é brincadeira
Lá vem o Brasil descendo a ladeira

E toda cidade que andava quieta
Naquela madruga acordou mais cedo
Arriscando um verso, gritou o poeta
Respondeu o povo num samba sem medo
Enquanto a mulata em pleno movimento
Com tanta cadência descia a ladeira
A todos mostrava naquele momento
A força que tem a mulher brasileira

(Moraes Moreira e Pepeu Gomes)

segunda 06 janeiro 2014 12:37 , em Samba

“Prova de carinho”: Uma aliança feita com a corda de Cavaquinho. De Adoniran Barbosa para Mathilde

Gestos de amor romântico podem ser grandiosos ou singelos. Há quem goste daqueles gestos exagerados, superlativos, ou há quem goste de algo mais simples, mas com um significado simbólico mais particular.

A história que vou contar aqui mais se adequa ao segundo caso. No Livro “Adoniran: dá licença de contar”, Ayrton Mugnaini jr. conta que o grande amor da vida de Adoniran Barbosa,  talvez o maior representante do samba paulistano, foi sua segunda mulher Mathilde de Lutiss.

Assim, Adoniran pegou a corda “mi” do cavaquinho (uma curiosidade, as cordas do cavaquinho são 4 – ré/si/sol/ré. Logo, não existe a corda “mi”) e fez uma aliança e ofereceu para Mathilde, em 1942.

Resultado de imagem para adoniran mathilde

Assim, tendo por mote esta oferta, Adoniran pôs a letra na melodia do maestro Hervé Cordovil, mineiro de Viçosa, que então trabalhava com Adoniran na Rádio Record.

O Eu-lírico conta a história de alguém que tira uma corda de um cavaquinho e forja uma aliança, como prova de amor. A canção reflete uma situação típica de meados do século passado, quando havia um conflito entre o casamento e a boemia. Na canção, são relatados os sacrifícios feitos por ter escolhido a aliança (a mulher amada) em detrimento da boemia (as serenatas que se deixou de fazer pela corda ausente no instrumento).

Assim, na canção, o sujeito tira a corda do cavaquinho como prova de amor.

No texto disco póstumo de Adoniran, denominado o sambista – ‘Documento Inédito’ -, Mathilde relatou : “Ele fez a aliança com a corda do cavaquinho, e eu tenho essa aliança até hoje, que é verdade, ele fez uma aliança pra mim com a corda do cavaquinho”. Ima

Resultado de imagem para prova de carinho cordas do cavaquinho

A aliança foi divulgada pela filha do compositor, Maria Helena Rubinato, e faz parte do acervo de Adoniran Barbosa…..

Com a corda mi
Do meu cavaquinho
Fiz uma aliança pra ela
Prova de carinho

Quanta serenata
Eu tenho que perder
Pois meu cavaquinho
Já não pode mais gemer

Quanto sacrifício
Eu tive que fazer
Para dar a prova pra ela
Do meu bem querer

Reconvexo. Como uma resposta de Caetano a Paulo Francis virou um belo samba….

 

“Meu som te cega, careta, quem é você…”

 

A letra de Reconvexo, um belo samba de roda de Caetano Veloso gravado por Maria Bethania, revela um orgulho de ser brasileiro, de ser baiano, de ser de uma parte do mundo que é “out“, e que, pelo mesmo motivo, é “in“.

A canção estabelece uma dicotomia entre o “eu” – que é uma séria de referências baianas, brasileiras e universais – e o “você”, o careta, “que não que não e nem disse que não”. Assim a identidade do eu-lírico é construída pelos sons, pelas imagens, pelas referências, em contraposição àquilo que o “careta” não consegue perceber.

A música faz muitas referências baianas (a novena de dona Canô, a elegância sutil de Bobô, o Olodum balançando o Pelô), brasileiras (o mendigo Joãozinho/Beija Flor – em referência ao célebre enredo “ratos e urubus- larguem minha fantasia” de Joãozinho Trinta na Beija-Flor de 1989, a destemida Iara da Amazônia), e universais (A risada de Andy Warhol, o suingue do Francês da Guiana Henri Salvador, o americano negro com brinco de ouro na orelha).

Resultado de imagem para caetano paulo francis

Caetano e Paulo Francis vez ou outra protagonizavam polêmicas.  Francis vivia em Nova Iorque e tinha um estilo sarcástico/irônico sobre o Brasil.

Então, ao reafirmar ao todo tempo o que é Recôncavo (fazendo referência à região da Bahia no entorno da Baía de Todos os Santos), e ao “careta” que sequer pode ser Reconvexo (um neologismo, como uma forma de dizer que ele sequer pode ser o outro lado, a antítese do que é o Recôncavo), a música faz uma homenagem a “Gita” de Raul Seixas (que viria a falecer naquele ano) e a “Fruta Gogóia”, canção folclórica gravada por Gal Costa no famoso disco “Fa-Tal: Gal a todo vapor”. A estrutura do “eu sou, eu sou eu sou” como se fosse uma lista tem inspiração em ambas as canções

Imagem relacionada

Caetano, no livro “Sobre as letras”, organizado por Eucanaã Ferraz (Cia das Letras, 2003), explica a canção:

 

Compus para Bethania gravar. Eu estava em Roma quando um dia acordei e vi os carros empoeirados, todos cobertos de areia. Perguntei: ‘Gente, o que tem nesses carros aí?’. Uns italianos, amigos meus, responderam: ‘isso é areia que vem do deserto do Saara, que o vento traz’. Com essa imagem, comecei imediatamente a compor a música. 

“A letra fala em Gita Gogóia, porque a letra de Gita diz ‘eu sou, eu sou, eu sou’… e porque a a canção ‘Fruta Gogóia’ também se estrutura do mesmo modo  eu sou, eu sou, eu sou’. 

A letra é meio contra o Paulo Francis, uma resposta àquele estilo de gente que queria desrespeitar o que era brasileiro, o que era baiano, a contracultura, a cultura pop, todo um conjunto de coisas que um certo charme jornalístico, tipo Tom Wolf, detestava e agredia. 

Resultado de imagem para caetano "sobre as letras"

Segue a letra e o belo samba de roda, que descarta quem “não é recôncavo e nem pode ser reconvexo”

 

eu sou a chuva que lança
areia do Saara
sobre os automóveis de Roma
sou a sereia que dança
destemida Iara, água e folha
da Amazônia
eu sou a sombra da voz
da matriarca da Roma negra
você não me pega
você nem chega a me ver
meu som te cega careta
quem é você?
que não sentiu o suingue
de Henri Salvador
que não seguiu olodum
balançando o pelô
e que não riu com a risada de
Andy Warhol
que não que não
e nem disse que não
sou um preto norte-americano
forte com um brinco de ouro na orelha
sou a flor da primeira música
a mais velha e a mais nova
espada e seu corte

sou o cheiro dos livros desesperado
sou Gita Gogóia
seu olho me olha
mas não me pode alcançar
não tenho escolha careta
vou descartar

quem não rezou a novena de
D. Canô
quem não seguiu o mendigo
Joãozinho Beija-flor
quem não amou a elegância sutil
de bobô
quem não é recôncavo e nem pode
ser reconvexo

 

quarta 09 junho 2010 21:56 , em MPB