Roberto Carlos, João Gilberto e a “turma” da Bossa Nova

Affonso Romano de Sant’anna dá uma definição de Roberto Carlos difícil de ser igualada: “Ele é o lado kitsch dos ouvintes mais sofisticados e é o lado mais sofisticado dos ouvintes mais kitsch. É uma espécie de herói popular”. 

 Em síntese, Roberto Carlos seria a voz mais sofisticada acessível aos ouvidos ditos “populares”, e seria, simultaneamente, o lado mais popular acessível aos ouvidos ditos “sofisticados”.

 Interessante que poucas pessoas sabem que a fonte inicial de inspiração de Roberto Carlos foi a mesma que inspirou Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo e Jorge Ben (hoje Benjor): João Gilberto e a sua incomparável batida de violão que fez surgir a bossa nova, com a gravação de Chega de Saudade.

https://youtu.be/oTuopiniIHE

 Roberto Carlos tinha ido de Cachoeiro do Itapemirim ao Rio de Janeiro, e em 1959 não alcançara sucesso, tendo conseguido ser contratado como cantor da boate Plaza, no Rio de Janeiro (momento em que Roberto Carlos considera o início de sua carreira, vide as comemorações de seus 50 anos de carreira, ocorridos em 2009).

 Naquela época, Roberto Carlos, embora reconhecesse não ter o mesmo talento com o violão do que João Gilberto, cantava baixinho como ele. Talvez, no início da bossa nova na década de 60, era quem cantava mais parecido com João, muito mais do que Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e outras pessoas da turma da “Bossa Nova”. Essa “turma”, na verdade, desprezava Roberto Carlos, sob o argumento de que ele seria uma imitação barata de João Gilberto.

 Ruy Castro narra como Roberto Carlos fora barrado pelos corifeus da Bossa Nova, no seu livro Chega de saudade (Cia das Letras, 1990),

 “Roberto Carlos, dezoito anos, bateu à porta da boate Plaza naquele mesmo ano de 1958 e descobriu um cantor que dava canjas com frequência: João Gilberto.Roberto levou um choque. Aquela voz e aquele violão, no canto mais escuro do fundo da boate, acompanhado por uma simples bateria, o deixaram febril e evaporaram Elvis de sua cabeça por um bom tempo. Quando aprendeu a fazer uma passável imitação de João Gilberto, compôs ‘Brotinho sem Juízo’ e candidatou-se a participar das canjas. Mas, justamente por parecer uma cópia meio aguada do original, não o chegavam sequer chegar perto do microfone. Nascanjas das quintas-feiras, no clube Leblon, a mesma coisa. Bem que tentava se enturmar, mas ninguém queria saber dele ou de ‘Brotinho sem Juízo’. Em certo momento, Roberto Carlos ficou mesmo insistente, e o mínimo de que o chamavam era de chato. Numa dessas, na casa do empresário Lauro Boamorte, no Flamengo, Menescal levou-o a um canto: ‘Olha, bicho, não dá pra você, você quer cantar igualzinho ao João Gilberto – e nós já temos o João Gilberto'”.

 Segundo narra Paulo Cesar de Araújo, no seu livro – que se tornou polêmico – “Roberto Carlos em detalhes (Planeta, 2006), a turma da Bossa Nova encarava Roberto como um “João Gilberto dos pobres”.

 No entanto, foi sob a inspiração melódica de João Gilberto que Roberto Carlos gravou seu primeiro compacto, com as músicas João e Maria e Fora do tom (uma glosa de Desafinado, clássico da bossa nova). O compacto recebeu duras críticas da imprensa, como a abaixo transcrita, narrada no livro de Araújo:

 Agora é que a coisa vai piorar. Vão aparecer mil e um cantores tipo João Gilberto e ninguém vai aguentar mais. João sozinho é bom demais. A sátira de Carlos Imperial é interessante. Porém, falta alguma coisa ao jovem cantor”.

 Mais adiante, quando gravou seu primeiro disco, “louco por você” (que vendeu apenas 512 cópias), ainda havia muita inspiração da bossa nova e o estilo de cantar era ainda muito inspirado em João Gilberto.

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 É óbvio que, depois de ser totalmente rejeitado pelos “defensores” da bossa nova (registre-se, algo que não tem nada a ver com João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Morais), além de não conseguir sucesso como cantor, Roberto Carlos teria que mudar de estilo, por mais que estivesse apaixonado pela música de João Gilberto.

 Talvez por essa razão o disco “Louco por você” está excluído da discografia oficial de Roberto Carlos, e, segundo Antonio Farinaci, Editor de UOL Música (http://musica.uol.com.br/especiais/2004/12/13/ult1541u70.jhtm), esse disco é dos mais raros, tido como renegado pelo próprio Roberto, chegando a atingir o preço de R$ 4.000, mas apenas em lojas especializada e sebos de vinis.

Em 2015, o Spotify disponibilizou a discografia de Roberto Carlos, na qual passou a constar o disco “proibido” “Louco Por Você”. Antes disto, jamais havia sido relançado.

 O resgate de Roberto Carlos com a bossa nova só veio com a gravação, em 2008, do disco/DVD com Caetano Veloso, em que ambos, comemorando o sucesso da bossa nova, cantaram músicas de Tom Jobim. E como Roberto canta bem Tom Jobim. E, também, recentemente, no site oficial do cantor, os discos “renegados” voltaram á discografia oficial. Um resgate da história

A música que posto agora é “Brotinho sem juízo”, do segundo compacto de Roberto Carlos. É nítida a influência da bossa nova…

 Fontes: Paulo Cesar de Araújo: Roberto Carlos em detalhes (Planeta, 2006); Ruy Castro: Chega de saudade (Cia das Letras, 1990); http://robertocarlos.globo.com;http://musica.uol.com.br/especiais/2004/12/13/ult1541u70.jhtm;

Publicado originalmente no http://musicaemprosa.musicblog.com.br/249238/Roberto-Carlos-Joao-Gilberto-e-a-turma-da-Bossa-Nova/ em abril de 2010

Zeca Baleiro – Por onde andará Stephen Fry?

Zeca Baleiro tem esse apelido por causa de ser um implacável consumidor de doces, balas e toda sorte de guloseimas, de modo que as pessoas sempre o procuravam, porque ele sempre tinha alguma guloseima disponível. É um daqueles cantores que brinca com as palavras, e se mantém fiel a si mesmo mais do que fiel a um rótulo ou a um estilo musical. Ele mesmo afirmara, numa entrevista em 2003:

Rótulo é um mal necessário. A indústria e a imprensa precisam dele, é óbvio, mas o artista não. A partir do momento em que você aceita um rótulo, você vira escravo dele, e o maior bem de um criador é a sua independência, sua liberdade. E se amanhã eu quiser fazer um disco de samba, quem vai me impedir, ou um disco de hardcore?… Nada me proíbe de transitar por praias diversas, vários gêneros, etc. Não há limites ou freios para a criação. Tenho tentado mostrar isso com meus discos esquizofrênicos.

Há vários trechos, de várias letras que surpreendem pela originalidade e pela musicalidade, e além disso, pelo sentido que Zeca Baleiro atribui a ela. É do Maranhão, mas absolutamente universal .

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Apesar de ter já uma carreira como artista “underground”,como disse Luis Antônio Giron ao apresentar o primeiro disco “Por onde andará Stephen Fry?”, o marco da sua carreira,que jogou os spots sobre sua qualidade musical, foi sua participação no CD “Acústico”, de Gal Costa, em 1997 (na época, Zeca Baleiro já tinha 31 anos, embora sua carreira tivesse começado desde os 19. No disco, há um Pot-Pourri entre um clássico de Gal Costa, chamado “Vapor Barato” com a música “Flor da Pele”, cuja letra é de Zeca Baleiro; “Um barco sem porto/Sem rumo, Sem vela/Cavalo sem sela/ Um bicho solto/Um cão sem dono/Um menino, Um bandido/Às vezes me preservo noutras suicido.”

Para não fazer um texto longo demais, vou, primeiro, fazer uma análise do seu primeiro disco, gravado em 1997, pela Universal.

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Nesse primeiro disco, já se percebe seu universalismo, sem perder suas referências de cantor maranhense e sua bagagem cultural, mas chama atenção o tempero entre lirismo, bom-humor, e um sutil e ácido tom crítico em algumas canções.

Começando, por exemplo, com Heavy Metal do Senhor, descrito como um “metal-repente diabólico”, e me divirto comparando a letra e os arranjos de Zeca com os Gospel-rocks que a gente vê por aí.

Vejo também a irônica homenagem à beleza de uma mulher, na suingada “salão de beleza”, na qual ele relata a beleza da mulher que é maior do que a beleza de qualquer salão, em que revela a “a beleza do erro do engano da imperfeição.

A brincadeira e o trocadilho do “parque do Juraci”, com Jurassic Park, com participação do impagável Genival Lacerda e a participação de Chico César em “Mamãe Oxum”.

Mas, para mim, a melhor música do disco é Bandeira, com a sua clássica referência à poesia de Manuel Bandeira, que merecerá um comentário à parte…

Um grande sucesso de Zeca Baleiro foi gravado por Simone, que, com um sotaque bem baiano, gravou “Lenha”, que tem uma harmonia simples, cujas notas lembram o dos básicos rocks dos Titãs, mas cuja letra é também intrigante. Um trecho de Letra: “eu não sei dizer/o que quer dizer/o que vou dizer/eu amo você/mas não sei o que/isso quer dizer/eu não sei por que/eu teimo em dizer/que amo você/se eu não sei dizer/o que quer dizer/o que vou dizer”

Sobre o fato da Música ter virado um Hit, para quem o considera um cantor Cult,  ele responde, com tranqüilidade:

É bom, o destino das canções é esse mesmo, a banalização. Quero ver o porteiro do prédio assoviando minha música.

 

sábado 27 março 2010 23:39 , em Musica Contemporanea

Esperando Aviões – Vander Lee (para sua mulher Regina|)

Há duas semanas, Vander Lee morreu surpreendente e repentinamente. Seu estilo romântico, suas canções à flor da pele, em carne viva, deixaram um legado. Mesmo as suas canções mais suaves possuem por trás delas uma carga dramática.

Uma de suas músicas mais conhecida é  “Esperando Aviões”, que foi composta para sua mulher, Regina. Certa feita, Vander Lee disse como teria sido feita a música:

Fiz esperando aviões para minha mulher. Tava em Montes Claros assim meio sozinho, cheguei de avião e vendo aquela pista naquele deserto, no norte de Minas, seco, pouca vegetação, aquele cerrado… Me deu uma saudade danada da minha mulher. De noite no hotel, aquela imagem ficou na minha cabeça.. Me soou poetico aquela pista vazia esperando aviões… E aí queria falar dessa saudade, da distância,de sexo e ai as imagens vão se formando e entrando coisas que não são veridicas… Me lembro de ter ligado pra ela as 4 da manha e tocado..ela quase morreu do coração e chorou a noite toda, nem dormiu mais.. (Vander Lee)

 

Meus olhos te viram triste
Olhando pro infinito
Tentando ouvir o som do próprio grito
E o louco que ainda me resta
Só quis te levar pra festa
Você me amou de um jeito tão aflito
Que eu queria poder te dizer sem palavras
Eu queria poder te cantar sem canções
Eu queria viver morrendo em sua teia
Seu sangue correndo em minha veia
Seu cheiro morando em meus pulmões
Cada dia que passo sem sua presença
Sou um presidiário cumprindo sentença
Sou um velho diário perdido na areia
Esperando que você me leia
Sou pista vazia esperando aviões
Sou o lamento no canto da sereia
Esperando o naufrágio das embarcações

 

Quem lê a letra de esperando aviões pode pensar que o eu-lírico está num estado de tristeza, de saudade, mas de uma saudade amarga, de ter encontrado uma pessoa triste, aflita, “tentando ouvir o som de um próprio grito”, em que o amor e o sexo, representados de modo aflito, parecem ser uma verdadeira fuga…

No entanto, Vander Lee, em entrevista a Ruy Godinho, no livro “Então, foi assim? Vol. 3”, dá á canção uma carga sexual bem mais forte…

Pois é, essa música é bacana porque ela tem uma história. Eu estava indo de avião para Montes Claros [MG] fazer um show e me lembro da paisagem, da pista vazia, cercada por uns montinhos verdes, pequenas árvores. Era uma época seca, em volta tinham aqueles montes claros, aquele clima de Cerradão do Norte de Minas. Aquilo visto de longe me lembrou um órgão genital. Começou na brincadeira, tirei uma foto e tal. Parecia um paraíso, Aquela imagem, o avião descendo, pra mim foi mais pornográfica ainda, né?  Então fiquei com essa imagem na cabeça. À noite, no hotel, depois do show, na madrugada, veio o santo, o cavaleiro veio. E me pediu emprestado essa imagem ‘Pô, faça alguma coisa com isso’. E eu fiz”, revela.

O eu-lírico procura, através do canto “incantável” e do dizer “indizível” aquele sentimento e necessidade de plenitude que existem entre casais por determinados momentos (que jamais duram para sempre, ou, aliás, são para sempre, mais ainda assim, momentos), e por isso a necessidade de ver o sangue do ser amado correndo nas veias, o cheiro percorrendo os pulmões, mas, que ao final, se vê perdido e solitário sem o seu amor. o diário perdido cheio de história para serem lidas, e o mote da canção: a pista vazia esperando aviões, pois são os aviões que dão sentido à pista, assim como o ser amado acaba conferindo sentido ao amante, numa metáfora tipicamente idealizadora e romântica do século XIX.

Da inspiração sexual veio a canção, como Vander Lee arrematou: “A canção não é de distância, é de penetração” 

“Eu estava meio assim com a minha mulher, mais ou menos. Aí eu quis falar pra ela. E fiz a música pra ela, tentando pegar no traço o nosso encontro. Foi isso. E a imagem da pista vazia, esperando aviões. Pra mim é puro sexo, é quase uma mulher esperando um homem. O próprio lamento no canto da sereia, esperando o naufrágio das embarcações, pra mim é sexo também. As pessoas leem mitologia, tem gente que acha que tem tudo ali, mas pra mim é puro sexo. Só Freud explica isso, né? As pessoas sempre pensam que é uma música de distância. E ela é de penetração. O assunto do refrão é todo penetração: Sou um velho diário perdido na areia/ esperando que você me leia.. Para mim eu vejo uma mulher nua, me esperando: Eu sou uma pista vazia esperando aviões … É pura sensualidade. As pessoas veem mais do que eu digo, na verdade. Eu fui fazendo, tecendo imagens de amor, do encontro amoroso com a mulher e, ao mesmo tempo, a música parece extremamente triste. Parece que o cara vai morrer de amor. Mas é o encontro, não o desencontra”, desvenda.

Fontes: osvanderloucos.blogspot.com/…/sobre-esperando-avies.html ”

Godinho, RUY. “Então, foi assim?”. Vol. 3 Abravideo.

 

Marina (Lima). Fullgás. Quando os discos tinham encarte

“Somos brasileiros e estrangeiros. Somos estrangeiros porque a nossa verdadeira casa e a casa da nossa música não têm paredes, nem teto, nem cerca, nem fronteiras. Não vegetamos nem precisamos de raízes.

Mas nascemos aqui, aqui trabalhamos e escolhemos ser brasileiros. Por quê? Porque este país é a nossa casa. A força dele, como a nossa, não pode vir de nenhuma fonte pura. Fontes puras não existem. O Brasil vem da fusão de todas as águas, de todas as correntes culturais, da miscigenação. Por isso ele realmente mete medo em todos que sofrem de agorafobia.

Como a música é a expressão mais viva da cultura no Brasil, é justamente a ela que os caretas querem impor sua “ordem”. E a ordem dos caretas e, e sempre foi, a da fidelidade às tais “raízes” ou “purezas” ou sabemos lá o que…

Já para nós, bom é ser contemporâneo ao mundo. Tomamos partido pelo presente e nele pelo mais full gás e mais fugaz. Se nossa música é política? Nossa música É a nossa política. Queremos descobrir novas possibilidades: não de fazer “arte”, mas de viver.

Chega de ideais repressivos, cagando regras, fingindo estar acima do tempo e dizendo por exemplo que devemos ser heterossexuais ou bissexuais ou que devemos ou que não devemos ter ciúmes, ou que temos que gostar da bossa nova ou fazer samba ou ser new wave…

Melhor para nós são a descoberta e a liberação dos desejos e gostos autênticos de cada um.

Nossa música é simples, deliberadamente simples e direta. Por isso mesmo ela é mais difícil para aqueles que se viciaram às velhas fórmulas. Sabemos que somos profundos demais e superficiais demais para essa gente.

Não há CAMINHO REAL para fazer algo que enriqueça o mundo. Por mais que certos setores da “vanguarda” sugiram uma evolução linear da Música, a verdade é que às vezes é do mais “vulgar” que vem o toque mais sutil. E é claro que o novo vem de onde menos se espera. Assim somos nós. Assim é o que fazemos. Simples como fogo”. Fullgás (Marina Lima e Antônio Cícero)

 É por essa e outras razões que sinto falta dos discos (LP’s ou CD’s) que pouco a pouco vão sendo substituídos por MP3 players, downloads e coisas do gênero. Os encartes dos discos. Talvez numa época em que se discutia música.

Esse texto está no encarte do disco FULLGÁS, lançado por Marina (depois Marina Lima) em 1984. O disco representa um momento pré-Rock in Rio, quando a música brasileira, apesar da Tropicália, ainda guardava muitas resistência ao elétrico e às influências da música internacional.

É uma justificativa do ingresso cada vez mais presente de referências ao pop-rock internacional, e uma certa crítica ao patrulhamento ideológico-musical. Trata-se, portanto, de uma espécie de manifesto pós-tropicalista, e que valoriza a liberdade.  

E nesse momento a música brasileira começa a descobrir o mundo sem preconceito. Em 1984 já havia Thriller, de Michael Jackson, e começavam a se descortinar as portas para o rock nacional. Nesse contexto Marina e seu irmão Antônio Cícero produzem um manifesto contra um conservadorismo musical, segundo o qual toda música nacional deve observar suas origens e raízes, como se tudo o que se gravasse no Brasil deveria ser derivado do samba, forró ou bossa nova.

Faz uma velada crítica à música engajada politicamente, e termina por ser um texto claramente pós-tropicalista, mesmo que escrito mais de 15 anos após. Começava a abertura de um novo capítulo na Música Brasileira. Fullgás….

PUBLICADO NO http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em 09 de abril de 2010

 

O Encontro de Elza Soares e Louis Armstrong na Copa do Mundo do Chile, em 1962

Em 1962, Elza Soares era madrinha da seleção brasileira. Foi lá, inclusive, que foi escrito um dos capítulos de sua história de amor com Garrincha. Antes disso, contudo, ela conheceu Loius Armstrong, e com ele teve um encontro curioso, narrado no no Memória Roda Viva.

Nessa entrevista, ela relata seu encontro com Louis Armstrong, com quem cantou na copa de 1962, no Chile. Armstrong, o mais popular músico americano do jazz e um dos melhores trompetistas do gênero, ficou impressionado com a voz de Elza Soares, e diz a lenda que Elza só não foi para os Estados Unidos com Armstrong porque ficou ela mais impressionada por um gênio de pernas tortas chamado Garrincha.

Eis o trecho da entrevista de Elza no Roda Viva:

Pois é… Foi terrível. Eu cometi muita gafe. Eu acho isso maravilhoso. Eu estava no Chile, que eu fui como madrinha de seleção de 1962, que eu não sabia o que era ser madrinha da seleção. Fui levada por um grande empresário, que era o Edmundo Klinger, na época. E eu, cantando no Chile, estava cantando “Rei do mundo”: [Elza canta] “Rei do mundo nunca sabe bem o que faz!”  E escuto um trompete fazendo aquelas variações, e as pessoas, os músicos estavam todos nervosos e diziam: “Olha para trás, olha para trás”. Eu olhei e vi  Monsueto (compositor brasileiro, que compôs canções como “Mora na Filosofia” e “Me deixa em paz”), parecia um Monsueto. E aquele negão, se parece mesmo.  Lindo, né, aquele lenço. Eu falei: “Tá bom, aqui é a Elza Soares”.

Elza fez show com o ícone do jazz Louis Armstrong - Jornal Correio

Elza faz piada com sua própria ignorância em inglês;;;;

Quando eu terminei de cantar, ele pediu que me levasse ao camarim. E me levaram ao camarim dele, aquela coisa toda. E veio aquele negão. E ele dizia: “Yeeaaah!” Eu olhava… Que coisa é esta? Não entendia nada de inglês. E o negão lá: “Yeaaah!!! I’m doctor!” O que é isso? Ainda me traz aqui e me chama de doutora, pô! E ele: “Yeah, doctor”. Eu falei: “Por que está me chamando de doutora, cara? Você não viu que eu me chamo, Elza”?  E eu acho que o cara pensou que eu estivesse brincando. Ele disse: “Você não sabe o que quer dizer doctor”?  Falei: “Doctor, eu sei, é doutora”. E ele: “Não, daughter in English”, quer dizer filha”. Eu digo: “Não tem nada a ver, doutor!”

E depois, quando instada a falar com Louis, ela arrematou:

Agora vai lá e faz um carinho no cara. Eu digo: “Começo por onde?” Parecia um armário, “faz um carinho no cara”! Eu digo: “Começo por onde, meu Deus do céu”! [risos] “Vai lá, faz um carinho nele e chama ele de “my father!”. Eu digo: “Não, aí não, agora pega”. “Como é que eu vou chegar perto do cara e dizer: “my father”? [risos] Ele disse: “Mas você não sabe o que quer dizer isso”? Eu disse: “Lógico que eu sei o que quer dizer father, todo mundo sabe, só não vou chamar o cara para mim, pô”. Ele disse: “Não, vai e diz isso daí que ele vai gostar muito”! Falei: “Olha, que eu vou dizer agora, logo agora”. E cheguei perto dele e disse assim: “My… father!” E ele disse: “Yeeeaaahh!” E eu digo: “Ele gostou da coisa”, agora o que é que eu disse pra ele”? “Você chamou ele  de pai”. E eu disse: “É, tem a ver, father e filha!” Assim que eu conheci o Louis Armstrong. Foi uma paixão, que ele queria que eu fosse embora com ele, mas não tinha…”

Memória Roda Viva é um novo canal de pesquisa na Internet, voltado para estudantes, professores e público em geral. Resultado de uma parceria entre a Fundação Padre Anchieta, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio de seu Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo (Labjor) e Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP). Este canal oferece aos internautas um espaço para pesquisa de grandes temas nacionais e internacionais, a partir dos debates exibidos no Roda Viva. Os usuários têm acesso às transcrições integrais das entrevistas realizadas pelo Roda Viva nos últimos 21 anos, além de um vídeo do programa e verbetes explicativos.http://www.rodaviva.fapesp.br/

Publicado originariamente no http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em 26.03.2010

Ho ba la lá. Um livro à procura de João Gilberto

Marc Fischer é um berlinense que ouviu um disco de João Gilberto no Japão. Veio atrás dele no Brasil. Escreveu um livro sobre o fato e suicidou-se. Esse livro chama-se Ho-ba-la-lá e é uma grata surpresa.

Trata-se de uma investigação bem-humorada. Fischer transformou sua estranha obsessão numa busca incessante do inventor da batida de violão que é o verdadeiro coração da Bossa Nova.

O livro é uma aventura de Fischer no Brasil, quando veio na esperança de que João Gilberto tocasse  Ho-ba-la-lá para ele ao violão. E aí surgem histórias divertidas e engraçadas na busca de João Gilberto. Ele entrevista muitos que conviveram com João, no âmbito pessoal e profissional. Carlos Lyra, Marcos Valle, Miúcha, João Donato, até o cozinheiro que serve o prato preferido de João.

E qual o resultado? Um passeio pela lenda que é João Gilberto, suas antinomias e suas ambiguidades. Sua genialidade e sua aversão ao público em geral.

A obra de Fischer é escrita num tom coloquial, em primeira pessoa, dá pra ser lido rapidamente e é muito agradável sua leitura. Ele vai contando as história e aventuras, sempre com muito bom humor, de um alemão que não fala português passeando pelo Brasil.

A passagem dele pelo banheiro em Diamantina (MG)  onde João criou a batida da bossa nova é impagável.

O mais interessante são as maneiras em que ele tenta se aproximar de João Gilberto, que em certos momentos parece um fantasma, ou um vampiro.

O impressionante é que, numa passagem do livro, Roberto Menescal fala para Marc:

João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também. De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado também. 

O certo é que Marc Fischer suicidou-se antes de lançá-lo.

 

O  que faz o livro imperdível, contudo,  é o resgate de João Gilberto como o verdadeiro gênio criador da bossa-nova, e é um retrato de como ele conseguiu transformar a música brasileira definitivamente.

João nunca fez parte do movimento “bossa nova” do qual foi criador. Aliás, João Gilberto não usa a expressão “bossa nova” desde “desafinado”.

Marc mostra as contradições entre a pessoa e o gênio, as manias, a sua personalidade encantadora e magnética, Mostra como João é capaz, com seu cantar baixinho e sua batida de violão, encantar as pessoas, mas também como ele deixa sua marca em cada pessoa que passa. Um resgate ao gênio da bossa nova.

Por tudo isso vale o livro. vale a busca e a torcida por Marc Fischer encontrar João Gilberto, e vale pela investigação de uma figura ímpar na música brasileira.

 

 

 

 

 

 

Clemilda – Forró de duplo sentido

 

O Brasil é um caldeirão de ritmos musicais, mas poucos discordam que o ritmo que marca e identifica o Brasil é o samba. No entanto, para uma parte do Brasil, que começa no sertão da Bahia, passando por Sergipe, Alagoas, Pernambuco (sem esquecer o frevo e o maracatu), Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí, o ritmo é o forró

O forró, no nordeste, parece um gênero em que se encontram xote, xaxado, baião, maxixe, galope, todos eles regidos, não pelo pandeiro do samba nem pelo violão da bossa-nova: mas pelo acordeon, popularmente conhecido como sanfona.

Aproveitando a semana mais efervescente das festas juninas, vou fazer uma homenagem inusitada a uma das personagens mais curiosas do Forró, que ganhou fama após 20 anos de carreira com um gênero, que na época, parecia ofender a “moral e os bons costumes”, mas hoje parece até inocente: O forró de duplo sentido. Trata-se de Clemilda.

Nascida Clemilda Ferreira da Silva, natural de Palmeiras dos Índios, Alagoas. Quando adolescente, decidiu ir para o Rio de Janeiro. Chegando lá, trabalhou como garçonete, e mesmo sem fazer planos para seguir a carreira artística, nas horas de folga freqüentava programas de rádio e auditórios de TV.

Em 1965, conseguiu cantar pela primeira vez num programa que apresentava calouros e profissionais, o “Crepúsculo Sertanejo”. Acabou conhecendo Gerson Filho, famoso pelo fole dos oito baixos, que na época era sanfoneiro contratado de uma gravadora, e com quem veio a casar-se depois. Fizeram shows pelo Nordeste, começando uma carreira que fez sucesso regional, sobretudo em Alagoas e Sergipe. Até a década de 80,seu maior sucesso era o politicamente incorreto “Forró sem briga”, em que ela afirmava (“eu não gosto de forró que não tem briga, forró que não tem briga não me diga que é forró) até estourar com o sucesso “Prenda o Tadeu”, em 1985 (“Seu delegado prenda o Tadeu,m ele pegou minha irmã e….”.

“Prenda o Tadeu” é um dos gêneros que fez muito sucesso no Nordeste nos anos 70 e 80, que é o forró de duplo sentido, forró malícia, cujo mote principal são trocadilhos absolutamente ordinários, em que toda a letra é um pretexto para insinuar palavrões ou sugestões eróticas (interessante é que, na mesma época e com o mesmo estilo de trocadilhos, Quim Barreiros fazia sucesso em Portugal).

O forró de duplo sentido era tido como música chula, a despeito de amiúde haver belos arranjos para forró. Nos últimos 20 anos, todavia, o caráter explícito de algumas letras faz parecer o forró de duplo sentido uma brincadeira adolescente bem-humorada.

Clemilda cantou diversas músicas que eram marcados pelo gênero. Para citar alguns, “Forró Cheiroso”, mais conhecida como “Talco no salão”, “Recado para Zetinha” (Só quero Nambu Zetinha…”), “Com ‘menas’ Gente” (“ele só quer trabalhar ‘com menas gente”), “Coitada da Tonheta” (“ele só vive batendo em Tonheta”), “Seu Tuzinho”.

 

Clemilda sempre se apresentava com seu cabelo curto e crespo, com uns vestidos que lembravam vestidos de Chita típicos de festas juninas, sua voz levemente anasalada compactuava com um estilo de música cuja marca maior era o humor.

Hoje, Clemilda vive em Aracaju, continua sendo lembrada pelos seus forrós de duplo sentido.

Fontes: http://www.infonet.com.br/saojoao/2005/ler.asp?id=36146&titulo=forrozeiros;http://www.dicionariompb.com.br/; Dicionário Houaiss ilustrado da Música Popular Braisleira

 

Publicado no http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em 22 de junho de 2010

Johnny Alf

Johnny Alf é o nome artístico de Alfredo José da Silva, nascido no Rio de Janeiro em 19/05/29. Quando da sua morte, ocorrida na semana passada, Johhny Alf foi lembrado e saudado como precursor da bossa nova.

Mas, para aqueles que não estavam nascidos na década de 50 ou 60, como saber da importância de Johnny Alf para a Música Brasileira?

Em qualquer referência bibliográfica sobre ele, conta-se que era filho de um cabo do exército, que morreu quando Johnny Alf tinha 3 anos, e que sua mãe fora empregada doméstica. A patroa de sua mãe, segundo consta, gostava muito da criança e o matriculou, desde os nove anos, em aulas de piano clássico com a professora Geni Bálsamo.

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No livro “História da Música Popular Brasileira (Abril Cultural/São Paulo, 1972), Johnny Alf conta que, a despeito de ter estudado piano clássico, o que ele mesmo gostava dos filmes musicais americanos:

– Impacto mesmo me dava outro tipo de música. Eram os filmes musicais americanos que tinham George Gershwin. Cole Porter, esse pessoal todo. Era o que me acendia aquela vontade interior de criar alguma coisa. Então, quando eu estudava, quando voltava do cinema sob aquele impacto, eu ia ao piano e fazia coisas com a influência do que tinha ouvido, inventava a melodia, e tal.

Seu nome artístico veio, inicialmente, de um professor do Instituto Brasil-Estados Unidos, que insistia em chamá-lo de Alf. E, posteriormente, numa apresentação da Rádio Ministério da Educação, uma garota americana sugeriu Johnny para completar o Alf.

Narra Ruy Castro, em “Chega de Saudade”, que Johnny Alf tornou-se integrante do Sinatra-Farney fan club, tido como uma espécie de “manjedoura” de onde saíram muitos dos principais nomes da bossa-nova. Alf entrara para o clube porque teria um piano ocioso para tocar.

A grande revolução na carreira musical de Johnny Alf ocorrera em 1952, quando ele era cantor de boate, à noite, e cabo do exército, durante o dia. Foi percebido pelos cantores Dick Farney e Nora Ney, por intermédio dos quais iniciou a carreira profissional como pianista na Cantina do César, casa noturna de propriedade do radialista César Alencar.

E qual a influência na bossa-nova? O músico Paulo Levita, em reportagem no Jornal  A TARDE, faz referência que Alf evoluiu as harmonias do jazz  americano para uma forma mais sofisticada, no uso das dissonâncias (que vieram a ser uma marca típica da bossa nova) como na forma de expressar o canto com divisões bem singulares (o cantar com uma divisão particular é uma das marcas de João Gilberto).

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Johnny Alf, já em 1954, era o Pianista da boate do Hotel Plaza, em Copacabana, e era ouvido e admirado por Tom Jobim, João Gilberto, Jaó Donato, Baden Powell, entre outros grandes nomes, alguns já famosos, outros ainda não.

Mas por qual razão Johnny Alf é tido como precursor da bossa nova, e não integrante do dito movimento? No site WWW.almacarioca.com.br, conta-se:

De malandro, porém, Johnny Alf, tímido e quase sempre triste, tinha muito pouco. No máximo era um tanto desligado com relação a contratos e oportunidades de trabalho. Em 55, quando começava a se fortalecer o grupo que dominaria a bossa nova no Rio, ele estava de malas prontas para São Paulo, sem ao menos avisar o dono da boate Plaza, onde era estrela máxima.

 Mais adiante, outro trecho:

Em 1961, deflagrada a bossa nova, Johnny foi lembrado para tripular um de seus módulos. Primeiro, foi gravar seu Lp inicial, na RCA Victor. Com músicas como Ilusão à toa, uma das favoritas do autor: “Olha/ somente um dia longe dos teus olhos/ veio a saudade do amor tão perto/ e o mundo inteiro fêz-se tão tristonho…” Depois, um convite do compositor Chico Feitosa:

– Vai ter um negócio no Carnegie Hall daqui a alguns meses e eu queria que você estivesse nessa.

Resposta: – Tá legal.

Mas no dia 21 de novembro de 1962, quando abriram as cortinas do palco em Nova York, Johnny não estava nessa:

– Na época, fiquei aqui em São Paulo, bastante desligado deles. Enchia a cara, acordava naquela ressaca. Eu era o rei de chegar atrasado.

Não era um retrato alegre, mas em muitos pontos era um retrato fiel. A bossa nova fluía seus barquinhos e flores, preparava-se para entrar em uma fase diferente, mais exteriorizada, e Johnny estava atrasado. Não tinha regulado seus ponteiros com os do sucesso, com alguns ex-expectadores de sua música, como Tom Jobim e João Gilberto. Só voltaria ao Rio obrigado, por volta de 62.

No entanto, sua linha melódica fantástica sempre o colocou como um dos mais importantes músicos brasileiros. Alguns de seus sucessos são clássicos, como Céu e Mar, Coisas do Carnaval, Oxum, O que é amar, e, sobretudo, Eu e a Brisa, talvez seu maior clássico, eternizado na voz de João Gilberto.

Por isso, deve-se reverenciar Johnny Alf, grande músico, músico acima de tudo, e que é mais do que um mero precursor da bossa-nova. É um talento eterno da música brasileira.  Faleceu em março de 2010.

Fontes: Chega de saudade – A história e as histórias da Bossa Nova – Ruy Castro (Cia das letras); História da Música Popular Brasileira – Abril Cultural – São Paulo, 1972; site WWW.almacarioca.com.br; Jornal A TARDE de 11/03/2010.

Partido Alto – Chico Buarque

Partido alto

 

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(Chico Buarque)

Diz que deu, diz que dá, diz que Deus dará
Não vou duvidar, ô nega
E se Deus não dá como é que vai ficar, ô nega
Diz que Deus diz que dá
E se Deus negar, ô nega
Eu vou me indignar e chega
Deus dará, Deus dará

Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro (brasileiro)
Eu sou do Rio de Janeiro

Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me explica
Como é que pôs no mundo esta pobre coisica (pouca titica)
Vou correr o mundo afora, dar uma canjica
Que é pra ver se alguém se embala ao ronco da cuíca
E aquele abraço pra quem fica

Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
Pele e osso simplesmente, quase sem recheio
Mas se alguém me desafia e bota a mão no meio
Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio
Que eu já tô de saco cheio

Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia
Deus me deu muitas saudades e muita preguiça
Deus me deu pernas compridas e muita malícia
Pra correr atrás de bola e fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia

Essa música de Chico Buarque, gravada em 1972, e imortalizada no show/disco que “Caetano & Chico – juntos e ao vivo”, gravado no Teatro Castro Alves, em 10 e 11 de novembro de 1972, revela como a censura da época atuava. Mais recentemente, em 2001, foi regravada no cd Acústico de Cássia Eller.

A música é como se fosse um partido-alto, isto é, uma espécie de samba cantado em forma de desafio por dois ou mais contendores e que se compõe de uma parte de coral (refrão ou “primeira”) e uma parte solada com versos improvisados ou do repertório tradicional, os quais podem ou não se referir ao assunto do refrão

No livro da coleção “História de canções”, sobre as histórias das músicas compostas por Chico Buarque (Ed. Leya, 2009), Wagner Homem relata o despacho da censura:

 “Se é engraçado ou uma infelicidade para o autor ter nascido no Brasil, país onde vive e encontra esse povo generoso que lhe dá sustento comprando seus discos, e pagando-o regiamente nos seus shows, afirmo que ele está nos gozando. Opino pelo veto.

 Para resolver a quizila, Chico teve que substituir a palavra “titica” por “coisica”, e substituir “brasileiro” por “batuqueiro”. E ainda assim, mesmo com a música liberada, teve que ouvir uma singular apreciação de sua obra:

 Como é que você, que fez uma música tão bonita como ‘Construção’, agora vem com esta, falando de titica e saco cheio?

 Parece pré-histórico, mas foi há menos de 50 anos. Parece impensável que questões tão pequenas, e que parecem ridículas diante de determinadas letras da atualidade, chamavam a atenção da censura. Tratava-se de um juízo moral, que não tinha nada a ver com os pretensos objetivos do governo militar.

publicado originariamente no http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em março de 2010

Um povo infeliz, bombardeado pela felicidade

Em junho de 1968, foi lançado, com alvoroço, o álbum coletivo “Tropicália ou Panis et Circensis“, com Caetano, Gil, Gal, Mutantes, Tom Zé e Nara Leão, e arranjos de Rogério Duprat.

Muito se falou depois do lançamento desse disco, sobretudo sobre a polêmica participação de Gil e Caetano no festival da canção da TV Globo no segundo semestre de 1968.

Tom Zé, no entanto, vai buscando seus caminhos. Em novembro de 68, “São São Paulo, meu amor”, de Tom Zé, cantada pelo próprio, vence o IV Festival de MPB da TV Record. No mesmo festival, a música 2001, cuja letra também é de Tom Zé (originariamente com o Título Astronauta libertado), e interpretada pelos Mutantes, fica em quarto lugar.

Em dezembro de 1968, Tom Zé, lança seu LP solo de estreia, “Grande Liquidação” pelo selo Rozenblit.

E destaco, aqui, o texto da contracapa do disco, extraído do próprio sítio oficial do cantor: E ele começa com a frase título desta postagem: “Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade.”

Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade.
O sorriso deve ser muito velho, apenas ganhou novas atribuições.
Hoje, industrializado, procurado, fotografado, caro (às vezes), o sorriso vende. Vende creme dental, passagens, analgésicos, fraldas, etc. E como a realidade sempre se confundiu com os gestos, a televisão prova diariamente, que ninguém mais pode ser infeliz.
Entretanto, quando os sorrisos descuidam, os noticiários mostram muita miséria.
Enfim, somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade.(As vezes por outras coisas também).
É que o cordeiro, de Deus convive com os pecados do mundo. E até já ganhou uma condecoração.
Resta o catecismo, e nós todos perdidos.
Os inocentes ainda não descobriram que se conseguiu apaziguar Cristo com os previlégios.  (Naturalmente Cristo não foi consultado).


Adormecemos em berço esplêndido e acordamos cremedentalizados, tergalizados, yêyêlizados, sambatizados e miss-ificados pela nossa própria máquina deteriorada de pensar.
“-Você é compositor de música “jovem” ou de música “Brasileira”?”
A alternativa é falsa para quem não aceita a juventude contraposta à brasilidade.. (Não interessa a conotação que emprestam à primeira palavra).
Eu sou a fúria quatrocentona de uma decadência perfumada com boas maneiras e não quero amarrar minha obra num passado de laço de fita com boemias seresteiras.
Pois é que quando eu abri os olhos e vi, tive muito medo: pensei que todos iriam corar de vergonha, numa danação dilacerante.
Qual nada. A hipocrisia (é com z?) já havia atingido a indiferença divina da anestesia…
E assistindo a tudo da sacada dos palacetes, o espelho mentiroso de mil olhos de múmias embalsamadas, que procurava retratar-me como um delinqüente.
Aqui, nesta sobremesa de preto pastel recheado com versos musicados e venenosos, eu lhes devolvo a imagem.
Providenciem escudos, bandeiras, tranqüilizantes, anti-ácidos, antifiséticos e reguladores intestinais. Amem.

TOM ZÉ .

P.S.

Nobili, Bernardo, Corisco, João Araújo, Shapiro, Satoru, Gauss, Os Versáteis, Os Brazões, Guilherme Araújo, O Quartetão, Sandino e Cozzela, (todos de avental) fizeram este pastel comigo.

A sociedade vai ter uma dor de barriga moral
O mesmo

Fontes: Tropicália: A história de uma Revolução Musical, de Carlos Callado (editora 34); A era dos festivais, de Zuza Homem de Mello/ http://www.tomze.com.br ehttp://brasiltropicalista.blogspot.com/feeds/posts/default

Publicado orginalmente no http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em março de 2010