“Beto Bom de Bola” – vaias e violão quebrado no Festival da Record 1967

 

A chamada “Era dos Festivais”, que ocorreu no Brasil na segunda metade da década de 60, produziu tantos frutos e histórias que modificaram, por completo, a história da Música Popular Brasileira. Um dos festivais mais marcantes, sem dúvida, foi o III Festival da Música Popular Brasileira, da Rede Record, em 1967.

Naquele ano, o festival era assunto obrigatório nas universidades, nos bares, todo mundo tomava partido de uma ou de outra canção. No teatro Record aparecia uma nova geração da Música Brasileira: Chico Buarque (Roda Viva), Gilberto Gil (Domingo no parque), Caetano Veloso (Alegria, Alegria), Roberto Carlos (Maria, carnaval e Cinzas), Edu Lobo (Ponteio), Elis Regina (O Cantador), Nara Leão (A estrada e o violeiro), Jair Rodrigues, Geraldo Vandré (Ventania), Nana Caymmi (Bom Dia), Sérgio Ricardo (Beto Bom de Bola) e MPB 4 (Gabriela) competiam entre si em um programa ao vivo.

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Para se ter uma ideia do nível alto do festival, “Eu e a Brisa” (Johnny Alf), “Menina Moça” (Martinho da Vila) e “Máscara Negra” (Zé Keti), músicas que se transformaram em clássicos da música brasileira, não se classificaram para a final.

No entanto, o festival de 1967 foi marcado pelas vaias. O clima do festival parecia de torcida de futebol, em que as músicas preferidas eram ovacionadas, e as outras, hostilizadas, lembrando que boa parte do público presente no auditório integrava uma nascente esquerda universitária.

Um acontecimento marcante nesse festival foi a vaia estrepitosa, seguida da reação irada do cantor Sérgio Ricardo, quando fora defender sua canção “Beto Bom de Bola”,música que contava a ascensão e a queda de um jogador de futebol, que teria alcançado a glória e depois esquecido.

 

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Sérgio Ricardo, ao contrário de Gil, Chico e Caetano, não era um novato. Era um compositor conhecido, apenas para exemplificar, foi ele o responsávcel pela trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do sol, de Glauber Rocha.

Quando foi se apresentar, Sérgio Ricardo, mesmo antes de começar a cantar, foi recebido com duras vaias. Sérgio, então, pede calma ao público, diz que o público vaia a si mesmo, mas de pouco adiantou.

 Zuza Homem de Mello (que era técnico de som do festival e que escreveu um magníficio livro chamado A era dos Festivais), revela que teve que desligar todos os microfones da plateia e ligar apenas os do palco.

 

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 Sergio Ricardo tentou seguir, mesmo com as vaias. No entanto, com tamanho barulho, Sergio terminou por desafinar, entrar em dessincronia com o conjunto que o acompanhava, o ritmo atravessava.

Em determinado momento, ele chegara a afirmar que iria mudar o nome da música para “Beto bom de vaia”.

Nada adiantou. Já no fim da canção, Sergio Ricardo bradara para o público:  “Vocês ganharam! Vocês ganharam! Isso é o Brasil subdesenvolvido! Vocês são uns animais!”.

E a cena que ficou para a história: o violão sendo espatifado, contra um suporte que estava no palco, e em seguida arremessado à plateia.

Zuza Homem de Mello assim narrou o fato, no seu já citado livro A era dos festivais:

 

Viria então a sétima música da final, com a qual Sérgio Ricardo mantinha esperanças de vencer, uma certa ilusão ante uma das mais fracas composições de sua bela obra. Antevendo a possibilidade de se repetirem as manifestações da eliminatória, Blota Jr. Fez um pequeno nariz-de-cera, pediu atenção para o novo acompanhamento em “Beto Bom de Bola” e um voto de confiança na sua apresentação. Sorridente e confiante, Sérgio, com um pé sobre o banquinho, aguardava que o bulício do público se extinguisse e, diante da inquietação que existia, em vez de começar, tentou dialogar com a platéia: “Eu quero que vocês me ouçam um instante. Aqui na platéia há gente inteligente”. Quem estava no fosso lar “Canta! Canta!”. Sérgio continuou: “Vocês podem vaiar. Depois deste festival a minha música vai chamar “Beto Bom de Vaia”. A blague surtiu um efeito desastroso. Em vez de se aquietar, a platéia se excitou; surgiram vaias assustadoras e grande parte do público ficou de pé como se ouvisse uma caçoada. Na coxia, o nervosismo aumentou, e todos o compeliam a cantar de uma vez. Sérgio ainda tentou convencer o público: “Atenção.. um minutinho”. Não conseguia ser entendido, as vaias ensurdecedoras encobriam com folga o som de sua voz. Apenas o seu microfone Philips, duro e apropriado para captar somente a voz do cantor, estava aberto e, ainda sim, ele mal era ouvido pelos alto-falantes.

Finalmente, Sérgio começa. Levanta o braço direito e solta um longo “Aaaaaah!” antes de iniciar a canção: “Homem não chora por fim de glória […] é, é, é ou não é/ Bebeto é bom de bola”. Estavam abertos para o recinto do Teatro apenas o seu microfone, o do coro dos quatro cantores e os do Quarteto Novo. Mas aquela massa sonora vinda da platéia penetrava com mais intensidade de volume, superando a dos que cantavam e tocavam, ainda que a centímetros de distância. Não havia solução, Sérgio não conseguia ouvir nem Théo de Barros, que estava a uns três metros de distância. Desorientado, olha para os acompanhantes sem saber sequer em que ponto estavam. Ao entrar na terceira parte, “Beto vai chutando pedra/ cheio de amargura/ num terreno tão baldio/ quanto a vida é dura…” Sérgio diz: “Não consigo nem ouvir o som”. Naquela época, não havia monitores. Canta mais um trecho, “e foi-se a glória/ foi-se a copa/ e a nação esqueceu-se do maior craque da história” e faz uma pausa, já bastante preocupado. As vaias se intensificam. Sérgio recomeça: “quando bate a nostalgia/ bate noite escura […] onde outrora foi seu campo/ de uma aurora pura” e, finalmente, desiste de uma vez. Arranca o microfone do pedestal e proclama: “Vocês ganharam! Vocês ganharam! Mas isso é o Brasil desenvolvido. Vocês são uns animais!”. E repete a última frase. Caminha para lateral, quando Blota se aproxima e toma-lhe o microfone. Sérgio resolve sair de vez, dá mais três passos, pára e, visivelmente transtornado, ergue o violão e o arrebenta contra um pedestal. Em seguida impulsiona o braço direito para trás, e numa atitude inimaginável, arremessa o violão quebrado na platéia. No instante em que o violão voava sobre o poço da orquestra, naquele átimo, a sensação foi de que a televisão sairia do ar e o Festival seria suspenso. Os espectadores das primeiras filas erguem-se levantando os braços par se protegerem e o violão cai sobre alguém na terceira fila. Blota e Sérgio estavam brancos. Blota, que tentara evitar o gesto imprevisível, ajuda-o a sair pela lateral, voltando inquieto para verificar se alguém se feriu. Pergunta: “Está tudo bem aí? Aconteceu alguma coisa?”. Ninguém ferido. Théo de Barros ficara tão apavorado que alguém da platéia mandasse o violão de volta que, furtivamente, se protegera atrás do piano.  

Sérgio Ricardo, mais de 30 anos após o episódio, comentou o fato numa entrevista:

“Eles eram positivos para os novos compositores, que precisavam mostrar seus trabalhos. Eu já era conhecido e não deveria ter concorrido, mas para Chico, Gil, Caetano, Edu Lobo e outros, os festivais foram importantes. Hoje as gravadoras só pensam em retorno comercial e não em cultura. Isso é sério, porque pessoas de valor não encontram meios de divulgar seus trabalhos e os festivais cumpriam esse papel”.

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No livro “Quem quebrou meu violão”,do próprio Sérgio Ricardo (Record, 1991), ele narra, em primeira pessoa, o episódio.  O livro é interessante, tem um viés ideológico muito forte acerca da música e da cultura popular brasileira, Vou transcrever aqui apenas o trecho da vaia e do violão quebrado:

“Entrei debaixo de vaia.

O teatro, preparado, como todos, para projetar o som do palco, tinha sua função arquitetônica invertida, de sorte que o barulho vindo da plateia para o palco condensava-o naquele pequeno espaço, tornando-o insuportável.

(…)

No fosso da orquestra, onde estavam dispostos os jurados, havia silêncio e perplexidade. Com toda certeza sabiam que aquele protesto era era dirigido, em última análise, à sua decisão por ter classificado a minha música. Alguém me fazia sinais para começar a cantar. Odiei aquela pessoa naquele instante; mas ela tinha um fone de ouvido e apenas recebia ordens. Odiei então seus mandantes. A que ponto chegavam aqueles abutres!, pensei. Mas que diabo era aquilo que estavam fazendo com seus artistas? O desrespeito era da parte de todos. Aquela ordem era a frieza dos responsáveis pelo programa, pela televisão, pouco ligando para o que estaria representando para cada um de nós aquela desmoralização tão escabrosa, tão desumana. De nenhum lado vinha qualquer solução àquela aberração, àquele despropósito. Demagogicamente, Blota Júnior atiçou ainda mais a selvageria, quando tentou solicitar a compreensão do público. O delírio aumentou ainda mais. Ainda sob controle, eu não me autorizava cantar sem o devido respeito da plateia. Fiz gestos, solicitei silêncio, usei de todos os recursos de tolerância possíveis, e nada. Não havia o que pudesse calar o solo de vaia que aquela plateia ensaiara para seu grande momento de participação.

(…)

 

Tendo vivido tanta coisa, já não me via ali tão só.  Senti-me na pele dos que haviam passado pela mesma situação, absolutamente sós naquele instante em que a crueldade do ser humano se revelava da forma mais covarde. Não havíamos estuprado ninguém, só queríamos cantar.

(…)

E foi então que, mais fortalecido, resolvi cantar para ver no que dava. Não deu em nada. Era o inferno. Arrependi-me de haver tentado. O que fazer? sair dali humilhado, chorando, como alguns fizeram? 

(…)

 Como se configurasse, inconscientemente, um processo de metamorfose no qual plateia não fosse mais plateia, e sim o gigantesco corpo do atavismo brasileiro em seu delirio de equívocos, estratificado através de sua história por um lado, e por outro, do vazio de minha solidão, transformando em veredas pelas quais uma romaria silenciosa das vítimas conscientes e silentes caminhassem em minha direção num socorro solidário, atendendo ao chamado daquela angústia, compartilhando comigo aquele momento dramático, assim como já o faziam fisicamente no palco os companheiros do Quarteto Novo; em lugar de lágrimas, incitava-me a alguma atitude uma profunda revolta contra tal processo, ativando-me a intuição. Antes de qualquer ação, ordenei-me cautela e inteligência. Algo já me balbuciava que aquele desaforo eu não levaria pra casa. Como, ainda não sabia. Continuava confiante na centelha do meu improviso,. Revoltado, o sangue me subiu, arranquei o microfone do pedestal e me entreguei aos Orixás:

– Vocês ganharam!… Vocês ganharam!… Este é o país subdesenvolvido… Vocês são uns animais!…Vocês são uns animais!…

Blota tomou-me o microfone. Vi um banquinho à minha frente. Em resposta à crescente indignação, quebramos – eu e todos que se somavam no meu coração – o violão e o atiramos contra a plateia, acordando-a daquele transe, ainda que o gesto viesse a significar o fim da minha carreira profissional. 

 

Virou História.

 

Fontes: MELLO, ZUZA HOMEM DE,  A Era Dos Festivais: Uma ParabolaEDITORA 34,2003. 

http://www.festivaisdobrasil.com.br/Historias%20e%20%20textos/historiadosfestivais_parte03.htmhttp://www.eradosfestivais.com.br/festivais.php?idMidia=14&idFestival=7

Ricardo, Sérgio, Quem quebrou meu Violão, Record, 1991

3 comentários sobre ““Beto Bom de Bola” – vaias e violão quebrado no Festival da Record 1967

  1. Este Sérgio,tentou de tudo na razão,mas,como ser humano,na sua essência tem aí neste ato,uma atitude dramática,mas uma atitude de romper,e responder da mesma maneira como foi estava sendo tratado. Foi um ato insano,mas heróico,de sair bem consigo mesmo,pq não recuou….

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