Que Roberto Carlos é supersticioso, todos sabem. Que também adora animais, é fato notório. O que muitos não sabem é que, para além das baleias, o animal preferido de Roberto Carlos é o Cabrito.
Segundo Paulo César de Araújo, no seu conhecido e polêmico livro “Roberto Carlos em Detalhes” , o artista, ainda na infância, afeiçoou-se a um cabrito que apareceu perto de sua casa, que ele chegou a alimentar e cuidar. Na narrativa do livro:
“Gosto muito de bichos. Principalmente do cabrito. É o bicho da minha infância”, revela. De fato, quando Roberto Carlos tinha dez anos de idade, se afeiçoou tremendamente por um pequeno cabrito que apareceu perto de sua casa. O cabrito foi até batizado por ele, com o nome de Primo, por causa dos personagens do primo pobre e do primo rico, quadro humorístico de grande sucesso da Rádio Nacional. “æquele cabrito era o primo pobre. Eu o alimentava com muito cuidado e até vi nascer o seu pequeno chifre. Primo era muito meigo e despertou o amor de todos lá em casa.”
No entanto, a relação com o cabrito chamado “Primo” não durou muito. Não se sabe muito bem o que aconteceu. Continua Araújo no relato:
Mas a relação não durou muito porque tinha gente ali pela redondeza de olho naquele cabrito e as intenções não deviam ser das mais amáveis. Dito e feito. Numa certa manhã, quando Zunga desceu para mais uma vez alimentar o cabrito, descobriu que Primo tinha desaparecido. “Nunca mais o vi. Primo devia ser um cabrito cigano. Mas pode ser que o tenham mesmo roubado”, afirma o cantor, que a partir daí nunca mais conseguiu comer carne de cabrito. Sempre que lhe ofereciam o prato, ele lembrava do Primo e o recusava.
O dueto com Rodrigo Amarante (em “O que se quer”) é um dos pontos altos do disco de Marisa Monte, “O que você quer saber de verdade”, em 2011. É uma música gravada em primeira pessoa. Música alegre, leve, descontraída, em que o eu-lírico dialoga com alguém (que pode ser tanto uma pessoa determinada quanto indeterminada) reafirmando que vai viver o amor, a paixão, o desejo.
Nesse diálogo, o eu-lírico diz para seu interlocutor que ele pode falar, advertir, escrever, que não vai adiantar, pois de nada adianta dizer que viver aquilo é loucura, besteira, ou noutras bobagens do tipo, pois o eu-lírico está disposto a se entregar, pois, naquela situação, “quem não faria?”
A canção fala de alguém que não vai hesitar em se entregar ao desejo, estando disposto a pagar para ver onde vai dar essa manifestação, mesmo com todas as possíveis advertências e admoestações.
E não há dúvida de que o ímpeto de se entregar ao desejo é maior, e a certeza de que vai valer a pena superar as restrições de algo certamente complicado, proibido, cheio de perigos, medos e circunstâncias, e não recomendado pela razão.
E nesse risco, de viver o desejo sem culpa, sem medo daquilo que a sorte, ventura ou destino determinam, e, desta forma “sabe quem quer, sabe quem tem, o que se quer“.
Uma nota interessante sobre esse dueto, é a leveza da composição, cuja maior parte da letra é de Amarante, contrastando com as composições predominantemente melancólicas da época dos Los Hermanos, e com as canções solo de Marcelo Camelo.
Marisa Monte e Rodrigo Amarante
Rodrigo Amarante canta e toca em ”O que Se Quer”: violão, viola, teclados, baixo, drum machine e percussão;
Sendo a primeira parceria de Marisa e Amarante, ela, numa entrevista que deu a Adriana Calcanhotto, disponível no próprio site oficial da cantora (http://www.marisamonte.com.br/pt/conversas/conversa-com-adriana-calcanhoto), ela conta como se deu essa parceria, que acabou se transformando num dueto…
Marisa: (…) a música que eu me lembro de ter feito durante o processo foi consequência da minha passagem por Los Angeles, quando encontrei o Rodrigo Amarante. Eu nunca tinha feito nada com ele, mas existia uma vontade mútua. Um dia a gente se encontrou no estúdio porque a gente gravou uma música para o último Red Hot + Rio, “Nu com a minha música”, de Caetano Veloso e Devendra Banhart. Durante esse tempo em que a gente estava no estúdio, pintou a ideia de uma música. Ela já veio com algumas palavras, uma coisa que a gente fez junto na hora, já com alguns pedacinhos de letra. Depois, ele continuou sozinho. Quando ele veio ao Rio, ele trouxe o que ele tinha feito. Aí, demos aquela arredondada e eu achei que ela tinha a ver com o resto do disco todo. Ela fala sobre saber o que se quer e sobre pagar o preço do que se quer, mesmo parecendo loucura para todo mundo em volta. A música é na primeira pessoa e ela diz: “Vá, pode falar, pode escrever, eu vou me entregar”. É sobre o reconhecimento e a conquista do desejo.
Bem, se alguém quer viver algo que sua sensibilidade diz ser especial, e sabe que ouvirá conselhos “razoáveis” em sentido contrário, recomendo que se escute a canção “O que se quer”… talvez seja o empurrão que o desejo precisa para se tornar real… e não é que pode valer a pena?
A letra:
Vá Pode falar Pode escrever Eu vou me entregar No meu lugar Quem não faria Diz que é loucura Diz que é besteira Mas eu não vou ligar Não tente entender E o tempo dirá A sina é sonhar Eu pago pra ver Qual meu lugar Que a vida é um dia Um dia sem culpa Um dia que passa Aonde a gente está Mas se eu tenho tanto a perder Eu perco é o medo Do que a sorte lê Sabe quem quer Sabe quem tem O que se quer
“Pérola Negra”, de Luiz Melodia, é uma dessas músicas atemporais. Como num diálogo do eu-lírico à pessoa amada, a letra mistura uma série de conselhos e exortações, em que pede que o objeto do desejo tente fazer algumas coisas, muitas das quais com o objetivo de despertar empatia “tente passar pelo que estou passando…/ tente usar a roupa que estou usando”
E continua com um pedido em que a pessoa amada diga ao eu-lírico, seja com sangue escrito num pano, seja num quadro em palavras gigantes… “Pérola Negra, te amo, te amo”, embora o próprio eu-lírico suscite dúvidas se mesmo ama…
Muito se diz sobre quem seria a inspiração da canção, embora pareça, pela letra, que o “Pérola Negra” é o próprio Luiz Melodia. A lenda mais conhecida é que seria um travesti que seria apaixonado por Luiz.
Numa entrevista concedida a José Mauricio Machline, no programa “Por Acaso”, em 2003, ele afirmou:
Era um travesti muito amigo, muito amigo mesmo. Edilson, não é vivo hoje . e quando eu compus a música, o nome era “My black, meu nego”. O Waly Salomão era muito meu amigo – como é até hoje – e estava sempre lá no São Carlos onde fui nascido e criado, onde vira e volta ainda visito meus amigos e tal. Ele deu a ideia de pôr o nome do Pérola Negra que era esse travesti né. E daí por diante depois que a música saiu foi sucesso, aconteceu na voz de Gal Costa e enfim ficou conhecida, e aí começou esse papo que eu tinha feito essa música pro Edilson que é esse travesti o Perola Negra no caso.
Mas a história está bem contada no livro que Toninho vaz escreveu sobre Luiz Melodia, chamado “Meu Nome é Ébano”
Foi nessa época (1969) que Luiz compôs a música que representaria um salto de qualidade nas suas composições, algo bem mais elaborado, tanto na letra quanto da melodia. A música foi batizada por ele de “my black, meu nego”, referência ao estilo de certa moça para a qual ele direcionava seus olhares apaixonados. A fonte de inspiração se chamava Marlene Selix, tinha 15 anos e morava na Freguesia, Zona Norte da cidade (Luiz tinha 18 anos na época). Era sobrinha de Antonio, colega de farda de Luiz no quartel. Um dia, Luiz foi conhecer a família do amigo e… aconteceu.
Mas há controvérsias, pois outras duas mocinhas, de nome Rosângela, também foram apontadas por amigos como as verdadeiras pérolas negras. E havia também uma terceira hipótese, um travesti do Estácio chamado pérola negra, que teria inspirado o nome.
Mas a inspiração verdadeira para a música era mesmo a Marlene da Freguesia, como confidenciou Luiz ao programa Fantástico.
Numa entrevista no Fantástico, Luiz Melodia recordou a composição. “Pérola Negra é uma mulher. Mas tinha composto pra uma menina que eu namorava na época em que estava servindo o Exército. A mulher brasileira é uma fonte, posso dizer assim, de inspiração em cinquenta por cento das minhas composições”, disse.
Para o Jornal “o Dia”, em 2013, Melodia disse que compôs “inspirado por uma menina com quem eu saía quando tinha uns 18 anos. Mas eu era o segundo cara. Quando o namorado dela chegava, eu tinha que sair correndo pelos fundos”.
Já em 1970, Luiz tocou, Waly Salomão ouviu a música, adorou, mas foi incisivo em relação à letra: Não precisa ser em inglês. Deve se chamar, Pérola Negra, como está no refrão.
Waly apresentou Luiz Melodia a Gal Costa, que se impressionou com o talento de Luiz e pediu uma canção a ele.
Ele então, compôs para Gal a canção “Presente Cotidiano”, cuja letra foi vetada pela censura federal na época. Assim, Waly sugeriu e a música de Luiz melodia escolhida foi “Pérola Negra”, que foi inserido num dos shows icônicos de Gal: “Fa-tal: Gal a todo vapor”.
Embora Ângela Maria tivesse gravado Pérola Negra em 1971, foi com a voz de Gal que Luiz se torou conhecido, quase quando estava desistindo da música…
“Pro dia nascer feliz” pode ser considerada a música que lançou o Barão Vermelho ao estrelato. Catapultada pela gravação de Ney Matogrosso, e definitivamente consagrada quando executada pelo Barão Vermelho no Rock in Rio, em 1985, a canção tem uma letra e uma história curiosas…
No livro “Cazuza: preciso dizer que te amo”, conta-se um pouco da história da canção.
Cazuza- “A noite é uma opção de vida. Gosto de acordar tarde e dormir com o sol nascendo. Por isso, ‘Pro Dia Nascer Feliz’ é a história da minha vida.”
Frejat – “É claramente a história de uma trepada que durou até o dia seguinte. Não tenho a menor ideia de com quem foi. E nem em que noite isso aconteceu… Mas nós dois sabíamos que essa música ia ser boa. Já pela letra no papel, sabíamos que ela iria funcionar.”
Cazuza – “Tem gente que se irrita porque eu canto que todo mundo vai pegar a sua pasta e ir pro trabalho de terno. E eu vou dormir depois de uma noite de trepadas incríveis. Mas o dia-a-dia não é poético. Todo mundo dando duro e a cada minuto alguém é assaltado ou atropelado. Então, vamos transformar esse tédio numa coisa maior. Li uma vez que você vive não quantas mil horas e pode resumir tudo em apenas cinco minutos. O resto é apenas dia-a-dia. Um olhar, uma lágrima que cai, um abraço… Isso é muito pouco na vida. Mas, para mim, é tudo. Eu prefiro não acreditar no Day after, no fim do mundo, no apocalipse. Um dia, ainda vou andar na nave espacial Columbus. Bêbado, lógico. Mas vou andar.”
E o espírito da música é justamente este. De uma diversão que começa junto com a noite, em que a sessão coruja começa procurando vaga no vai e vem dos quadris. Notadamente uma grande farra durante a noite que vara a madrugada.
Mas a história da música – e talvez, do próprio Barão Vermelho, se não fosse a mesma se não fosse Ney Matogrosso.
Frejat – “Foi importante que as pessoas começassem a procurar o disco da gente. O Barão era conhecido como grupo maldito. De repente, nosso segundo disco teria passado em branco se o Ney não comprasse essa barra.”
Ney conta um pouco desta história, na sua Biografia “Vira-lata de raça”
Conta que ele e Cazuza tiveram um breve romance em 1979, quando ele era o fotógrafo da Som Livre, e que durou apenas 3 meses. Quando o Barão Vermelho surgiu, Cazuza presenteou Ney com um disco. Ele adorou “pro dia nascer feliz e resolveu gravá-la.
Cazuza conta a história:
“O Ney chegou lá em casa, tocou a campainha. A empregada atendeu me acordou dizendo: ‘Ney Matogrosso está aí’. Eu resmunguei: ‘Traz a Gal Costa também’. E eu continuei dormindo. O Ney foi ao quarto e começou a bater na minha cara gritando para eu acordar e ganhar dinheiro. Ele ouviu o disco ‘Barão Vermelho 2’ e resolveu gravar ‘Pro Dia Nascer Feliz’. Eu disse: ‘Não. Pelo amor de Deus, é nossa música de trabalho. Grava outra’. Ele bateu pé. E acabou sendo nossa fada-madrinha. O Ney provou que o Barão é viável. E gravou o mesmo arranjo. Discutiu com a gravadora, que não queria botar a música de trabalho no disco dele, e soltou na rua”.
E a música ganhou o embalo necessário que catapultou o sucesso do Barão Vermelho…
A amizade entre Caetano e Gil é algo raro na Música Brasileira. Amizade de mais de 50 anos, de duas grandes referências da música brasileira. História recheada de episódios marcantes, como o Movimento Tropicalista, a prisão em comum, o fato de terem casado com irmãs (Dedé e Sandra Gadelha), o exílio em Londres, enfim: trata-se de uma história de admiração recíproca.
Um dos episódios mais interessantes ocorreu quando Caetano e Gil ainda não tinham uma relação próxima de amizade, no começo da Década de 60.
Na ocasião, segundo Caetano revela em seu livro Verdade Tropical (Cia das Letras, 1997, p. 283)
“Por volta de 62, 63, vi na TV Itapoan (a televisão só chegara a Salvador em 60) um rapaz preto que cantava e tocava violão como os melhores bossanovistas. Sua musicalidade exuberante, sua afinação, seu ritmo e sua fluência me entusiasmaram. Era excitante que pudesse haver por perto alguém tão especial. A TV dava a ilusão de distância, mas eu pensava, com o coração batendo, que, dado o tamanho da cidade – e, sobretudo, do grupo de pessoas da classe artística ou mesmo da classe média -, era provável que eu encontrasse em Salvador esse genial músico de sorriso alegre e sobrancelhas bem desenhadas. Minha mãe, que sempre gostou de música – e sempre gostou que eu gostasse de música -, me ouviu elogiá-lo, e, toda vez que ele aparecia na televisão, me chamava para vê-lo.“
Em seguida o mote que virou canção:
“Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele. Pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo, dizendo: ‘Caetano, venha ver o preto que você gosta’. Isso de dizer o preto, sorrindo ternamente como ela o fazia, o fez, tinha, teve, tem, um sabor esquisito, que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo. Era como isso se somasse àquilo que eu via e ouvia, uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, adensasse sua beleza.
Eu sentia a alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele, e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa, e minha mãe festejava comigo a descoberta.” –
O Livro “Verdade Tropical” foi editado em 1997. Antes mesmo disso, a história já era conhecida.
Neguinho do Samba, o grande maestro do olodum, transformou este episódio num samba de roda, ou se quiserem, numa Axé Music, que foi gravado por Daniela Mercury no disco “Feijão de Corda”, em 1996.
Neguinho do samba
O episódio em que Dona Canô, de forma tão natural e direta, chama Caetano para ver na TV “o preto de você gosta” termina por ser um prelúdio de uma história que mudou a música brasileira.
Em 1991, Marisa Monte lança seu primeiro disco de estúdio, “Mais”. Ela começa a aparecer como compositora, principalmente com suas parcerias com os então Titãs Nando Reis e Arnaldo Antunes.
Depois da explosão de “Bem que se quis”, dois anos antes, “Mais” foi o disco que confirmou a carreira de Marisa, que veio a se consolidar com Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-rosa e Carvão, em 1994.
A primeira música do disco, “Beija eu”, considerada uma das melhores canções pop da década, tem uma inspiração singela. Arnaldo Antunes inspirou-se no modo com que seus filhos falavam. Disse, então, numa entrevista à Folha:
“Já me inspirei muito neles [os filhos]. ‘Beija eu’, por exemplo, tem esse jeito de dizer que era o deles quando pequenos. ‘Pega eu’, Leva eu”, claro que transmitido para uma relação adulta amorosa, só que pegando um pouco a afetividade que vinha da sintaxe que eles usavam comumente”
A letra começa justamente com a forma da criança se expressar, na própria visão de Arnaldo, em vez de “me beija”, há o “beija eu”, e isso, trasladado na relação amorosa, começa com um pedido, uma súplica de que o eu-lírico possar ser ele/ela mesmo(a). Em síntese, o recado da primeira estrofe é: ” deixe que eu seja eu mesmo, e aceite o que eu te der”
Seja eu, Seja eu, Deixa que eu seja eu. E aceita o que seja seu. Então deita e aceita eu.
Em seguida, há referências claras a um encontro amorosos, com secos e molhados, o dormir e acordar juntos, os corpos tocando, e o desejo de continuidade no anoitecer e no amanhecer.
Molha eu, Seca eu, Deixa que eu seja o céu. E receba o que seja seu. Anoiteça e amanheça eu.
Nielson Ribeiro Modro faz uma análise da canção:
Trata-se da utilização intencional de um ‘ready made’ da linguagem infantil. Segundo declarações do próprio Antunes, sempre que perguntado a respeito, esta é uma estrutura inspirada no falar das crianças, que utilizam estruturas semelhantes na fase inicial da aquisição da fala e só adquirem o domínio da forma átona pronominal numa fase posterior à aprendizagem da forma pronominal pessoal.
A utilização desta forma infantil na canção resulta em frases simples mas de efeito enriquecedor, visto que demonstra uma certa dependência por parte do eu-lírico, como se fosse uma criança indefesa. Esta dependência resulta ainda numa maior proximidade entre o eu-lírico e a pessoa amada, demonstrando que, apesar dos imperativos utilizados, o resultado final desejado é a comunhão amorosa. Pode-se ter, ainda, um remetimento metafórico a uma criança que, apesar de dependente, ordena o que deseja de forma sutil, sempre despojando-se: “então beba e receba/ meu corpo no seu corpo/ eu no meu corpo/ deixa/ eu me deixo”. Ou ainda, a sugestão de que a voz adulta infantilizada resulta numa proposta amorosa ingenuamente maliciosa
Beija eu, Beija eu, Beija eu, me beija. Deixa O que seja ser. Então beba e receba Meu corpo no seu corpo, Eu no meu corpo Deixa, Eu me deixo. Anoiteça e amanheça.
Isso acaba fazendo vir à tona aquele jeito que os casais apaixonados às vezes conversam entre si, com voz e jeito de criança, e todas as implicações desse comportamento.
“Dora, rainha do frevo e do maracatu…” com estas palavras, Caymmi começa uma homenagem a Recife, e à mulher brasileira que simboliza a cidade. A morena, cafusa, que dança o maracatu melhor que ninguém.
O curioso é que Dora foi composta num momento de saudade, composta em 1941, quando se despediu de sua esposa Stella. Caymmi conta assim, no episódio “Caymmi por ele mesmo”, exibida pela Rádio Cultura:
“Dora foi feito debaixo de uma coisa meio dolorosa: nós estávamos em plena guerra, estávamos eu e Stella (minha mulher ) em Fortaleza já com data marcada de viagem para o Rio de Janeiro. Ficou decidido em Fortaleza que ela viria pro Rio, porque me ofereceram compromisso de trabalho em Recife por 18 dias e eu relutei com medo daquela coisa que havia dificuldade de condução aérea e por mar, havia a chamada prioridade militar da guerra então sua passagem comprada podia ser cedida a um militar; e aconteceu desse roteiro que eu calculava para um mês e pouco fora de casa sem Stela, e eu fiquei dois meses pingando, pingando de Recife até chegar ao Rio de Janeiro.
Viemos de Fortaleza naquele navio que parou em Recife e eu teria que ficar em Recife e Stella teria que vir direto pro Rio. Nana ia pro sexto mês de idade, estava aos cuidados da minha sogra mãe de minha mulher Stela e que já deveria estar se sentindo na saudade de mãe jovem, de qualquer mãe, não é? De qualquer idade. Muito justo e eu tinha que trabalhar 18 dias fazer um no rádio, fazer o Jóquei clube, enfim tinha que ficar em Recife e o navio iria embora.
Recife nos anos 40
Passamos (eu e Stella) o dia esperando o navio em Recife, no Hotel Central. Ficamos ali ela se arrumou, se ajeitou arrumou as bagagens bem de acordo do que precisava ali, algumas compras que fez e às onze horas da noite estávamos no porto de mar. Então ela partiu e eu fiquei chocado: a partida, aquela coisa, nós tínhamos apenas nem dois anos de casado, é um negócio assim, que é chocante à beça.
Pois bem: aquela separação me doendo terrivelmente. Cheguei no Hotel Central (onde estávamos hospedados) e tudo me doeu, tudo me lembrou Stella: peguei meu pente, escova, encontrei os cabelos dela ai fiquei torturado. Em suma: fechei a mala, fechei tudo e saí. Saí assim de louco com a esperança de encontrar lugar no grande hotel e não tinha vaga pra ninguém tão cedo. Então peguei minha mala meu violão e fui pro cais e sentei defronte do grande hotel, numa murada acabei de ver o navio saindo, saindo levando Stella pro Rio de Janeiro, muito longe….
E naquela melancolia aquela coisa e tal, eu ia no lá no bar (aberto lá dentro do hotel) e pedia: “você dá um conhaque?’ ele disse: “dou” dava o conhaque eu pagava, voltava pro meu ponto lá.
Mas enquanto isso eu puxei o violão que estava comigo no cais, na murada, o violão e a mala e olhava o mar, a noite ali e tal o hotel, a fachada luminosa. De repente bradou um som assim, era um som de frevo, metais né? Trombones, pistões e tal, aquela coisa, um negócio bonito, um ritmo bonito que é o frevo né? A marcha agitada. Quando olhei vinha de lá o cordão puxando tudo à paisana e perguntei a uns: ‘isso é o que? isso é um carnavalzinho?’ ‘Não isso é que o pessoal tá correndo a bandeira pra pegar ajuda para o carnaval’. É um habito antigo né? Correr a bandeira pra pegar dinheiro. Aí chegava nos hotéis e pedia ‘ajuda aqui’ . Então esse bloco chamado o Pão da Tarde foi a informação que eu tive vinha buscar na porta dos hotéis aquele aquela ajuda e estavam tocando um frevo maravilhoso.
Maracatu
De repente eu vi que saía uma morena de lá e fazia o passo. Ela já vinha de longe, eu não tinha visto. Não era nenhum exemplo de beleza, era uma moça dançando. Tinha um daqueles bailarinos de rua, assim. O frevo sempre teve bonitos dançarinos, bonitas dançarinas né, fazendo um passo maravilhoso aquela sombrinha, aquele negócio é uma coisa importantíssima.
Pois bem: foi nesta hora que quando o bloco saiu dali que foi andando e tal foi embora, bater em outros hotéis, outros buracos outras padarias, pastelarias, bares abertos pela madrugada, e já era por ai o que uma e meia da madrugada, eu voltei estava mais solitária ali a noite né?
Hotel Central de Recife
Foi quando me ocorreu a lembrança daquela moça de branco, assim, meio cor de rosa…. de vez em quando ela tirava a sandália e fazia descalça no trilho do bonde um passo ali, e era um requinte, o frevo do passo. E então deixei passar um pouco e saiu aquele som de música e tal, e eu fiquei com aquela ideia: ‘Dora rainha do frevo….’ Comecei a enfeitar e adornar aquela moça como rainha do frevo, rainha do maracatu, rainha de uma porção de coisas pra arranjar um som e uma distração porque o navio já tinha ido né…
E a ideia de Dora nasceu ai ‘Dora rainha do frevo e do maracatu, Dora rainha cafuza….’ e o cafuza é bom, vem aquela analisezinha que a gente faz né? Cafuza, aquela mestiça, aquele tipo tá, calhando bem, de uma rainha de um maracatu, aquele esplendor daqueles três dias de maracatu, carnaval…. ainda não tinha visto carnaval em Recife. ‘Te conheci no Recife dos rios cortados de pontes…’ ai eu fui fazendo já estava conhecendo Recife estava ali já há alguns dias e a canção foi aumentando, aumentando ‘Coloniais….’ achei bonito ‘Dos bairros das fontes, coloniais… Dora chamei….’ e fiquei por ai mais ou menos por ai.
em depoimento prestado à Associação de Pesquisadores da Música Popular Brasileira, em 1983, ele arrematou: “até que veio um empregado do hotel me avisar que havia desocupado um quarto. No dia seguinte fiz mais um pedaço. Mais adiante, já em Maceió, cheguei naquela parte que diz: ‘Os clarins da banda militar / tocam para anunciar…’”.
Recife nos anos 40
A música foi gravada por Caymmi em 1945, e o lançamento se deu em agosto do mesmo ano, disco 12606-A, matriz 7856, com acompanhamento da orquestra de Fon-Fon.
O ano: 1976. Para comemorar os dez anos comuns de carreira, Bethania chama Caetano, Gil e Gal para formarem um conjunto para se apresentar pelo Brasil. Fazem um repertório especial, com músicas como O seu amor, Esotérico, Pé quente cabeça fria, Um índio, além de Fé cega, faca amolada, de Milton, e Atiraste uma Pedra, de Herivelto Martins.
Tudo isso foi documentado por Tom Job Azulay. E com algumas situações divertidas, e outras nem tanto.
Mostra a amizade entre os quatro, a descontração dos ensaios, tudo entremeado com as músicas do show.
Há muito destaque para a prisão de Gil por porte de drogas, ocorrida em Florianópolis, mostrando como houve um “consentimento” para que se entrasse nos quartos do hotel. Gil estava com um cigarro de maconha e mais um pouco para fazer mais um cigarro.
Há filmagem da própria audiência em que ele foi condenado, mostrando o quão, amiúde, a justiça criminal pode ser ridícula. Não dá para deixar de notar o sorriso de Gil enquanto o juiz profere a sentença. No que ele estava pensando?
Entremeada com as canções, é divertido ver como Caetano e Bethania ridicularizam elegantemente os repórteres que os entrevistam.
Num determinado momento, um repórter pergunta porque a Banda é “tão doce”. Segue o diálogo:
Por que um grupo tão doce, tão açucarado, no atual momento da conjuntura nacional? (Repórter 1). Não entendi a sua pergunta (Caetano). Por que o tão doces? (Repórter 1). Não é tão doces. É Doces Bárbaros. O tão é seu, você é que está falando em nome daconjuntura, então você ponha o tão… (Caetano). Vai dar um LP dos quatro? (Repórter 2). Vai, a gente já fez um compacto duplo (Caetano). Eles já vêm com um esquema comercial montado, não se preocupe (Repórter 1). Claro! (Caetano). Não seria mais um produto para consumo imediato? (Diversos repórteres). Mas é claro que é mais um produto (Caetano). E vocês estão bem convictos disso. O Gil, agora há pouco, disse que era pra tocar norádio, pra vender mesmo (Repórter 1). Não, claro, como todo mundo. Não conheço ninguém que faça o oposto (Caetano). Não, porque você me perguntou, disse assim: tem umas músicas que você faz de vez emquando pra tocar no rádio, e eu disse: não, eu faço todas pra tocar no rádio. Eu não soulouco. E disse mais: aquela que se chamava “Essa é pra tocar no rádio” nunca tocou norádio (Gil).
Bethânia também tem a oportunidade de desconstruir tudo o que o repórter pergunta, desde a suposta influência de Caetano na sua carreira, (Bethania deixa claro que ela lançou Caetano) passando pela religiosidade e adesão a movimentos.
Divertida a visita de Baby Consuelo e Paulinho Bocade Cantor aos Doces Bárbaros.
Valem muitas sensações que o filme passa. O visual do grupo, a voz, ou melhor, as vozes, a beleza de Gal, o cenário que hoje parece tosco, o colorido, o universal e o regional, um certo ar de prazer e de improviso, e, sobretudo, o prazer daqueles quatro excepcionais artistas cantando juntos.
Era a invasão dos Doces Bárbaros, que vieram da Bahia para, dez anos depois, consolidar o que tinha trazido o Tropicalismo. Vale a pena.
No último dia 4 de julho o Brasil perdeu Martha Rocha, a primeira Miss Brasil, em 1954, e que se tornou fruto, na época, de uma grande polêmica no concurso de Miss Universo daquele ano.
Martha Rocha ficou em segundo lugar no concurso, e se atribuiu, na época, que o motivo da americana Miriam Stenvenson ter ganho o troféu seria o fato de que Martha ter duas polegadas a mais de quadril.
Reportagem de O Globo em julho de 1954
A versão se tornou mais divertida que os fatos, terminou por ser fruto de uma onda nacionalista que valorizava os quadris da mulher brasileira.
Quem inventou a história foi o jornalista João Martins, da revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro,[7] para consolar o orgulho brasileiro. Tudo foi combinado com os demais jornalistas brasileiros que estavam em Long beach, onde se realizava o concurso A própria Martha autorizou a versão, conforme consta em sua autobiografia (Martha Rocha, Uma Biografia em depoimento a Isa Pessoa, Objetiva, 1993). “Nos Estados Unidos, nunca ninguém me tirou as medidas”, disse ela.
Outra especulação é que haveria a necessidade de que uma americana ganhasse, pois o Miss Universo estaria perdendo audiência nos Estados Unidos. Mas nada ficou provado.
A polêmica fez bem a Martha. Ela passou a ser cultuada no Brasil, passou a ser capa de revista, virou receita de bolo e passou a fazer campanhas publicitárias.
E isso virou marchinha de carnaval. Isso inspirou canções em homenagem ao episódio. A marchinha “Duas Polegadas”, de Pedro Caetano, Alcyr Pires Vermelho e Carlos Renato, exaltou a beleza da baiana e as controvertidas duas polegadas a mais de quadril.
Miriam Stevenson e Martha Rocha
A letra da música fazia referência ao violão: : “Por duas polegadas a mais, passaram a baiana pra trás/Por duas polegadas, e logo nos quadris/Tem dó, tem dó, seu juiz!”. Martha, Martha, não ligue mais pra isso, não/ Martha, Martha, ninguém tem o seu violão.
Aldir Blanc faleceu em 04 de maio de 2020. Médico psiquiatra, foi como compositor e cronista que ele se notabilizou. Dentre as parcerias musicais – que não foram poucas – a que formou com João Bosco gerou pérolas da música brasileira, que se tornaram eternas. Uma delas é o bolero “Dois pra lá, dois pra cá”, marcado pela interpretação de Elis Regina, em 1974.
A canção, notadamente um bolero, se passa em dois momentos: o primeiro, em que o eu-lírico, tímido, “sentindo um frio n’alma”, convida alguém para uma dança. Parece que o eu-lírico não dança bolero, mas o parceiro de dança acalma: “são dois pra lá, dois pra cá”.
A partir de então a música passa a ser sinestésica, em que há uma série de comparações… o coração treme de forma descompassada, ao contrário do bongô e das maracas que animam a música.
A cabeça roda, como que numa vertigem, em que sobressaem as notas de gardênia do perfume, e as costas macias, cuja lembrança em certa medida atormenta o eu-lírico até o presente.
O bolero torna-se um condutor dos outros sentidos. A sensualidade da cena está na música, no perfume, nas costas macias e na mão no pescoço, e na embriaguez sugerida no “dois pra lá, dois pra cá”
E não há nenhum texto sobre a canção que não faça alusão ao “band-aid no calcanhar”, que protege do atrito do calçado barato, que juntamente com o “falso brilhante” e aos ‘brincos iguais ao colar”, fornecem uma imagem dramática e decadente daquela cena
E a música termina num presente melancólico, em que o eu-lírico, embriagando-se de uísque com guaraná, relembra a voz dizendo, “São dois pra lá, dois pra cá”
Em diversas entrevistas, Aldir Blanc relatou ter sido uma das letras mais complicadas para colocar na música de João Bosco. Disse, todavia, que a letra veio toda de uma vez depois de uma “esbórnia”, num táxi, de madrugada.
“Não pego lápis nem papel. Escuto, e uma hora a letra começa a vir … Um dia, voltando da casa do Mello (Menezes), tô num táxi e veio: “Sentindo frio em minha alma, te convidei pra dançar”. Aí abre bolsa e não tem papel, não tem lápis, entrei correndo no cafofo da Maracanã (onde morava na época), anotei aquilo tudo, fui desesperado ouvir e tava em cima, do começo à ultima palavra. Dei aquela respirada. Comecei a escrever do primeiro verso e fui até o fim direto. “
Merece também referência à coda que homenageia e cita o bolero “La puerta”, do compositor mexicano Luis Demetrio, acrescentada como coda em fade out nos versos “dejaste abandonada la ilusión que había en mi corazón por ti”.
Enfim, um clássico eter
Sentindo frio em minha alma Te convidei pra dançar A tua voz me acalmava São dois pra lá, dois pra cá
Meu coração traiçoeiro Batia mais que o bongô Tremia mais que as maracas Descompassado de amor
Minha cabeça rodando Rodava mais que os casais O teu perfume, gardênia E não me perguntes mais
A tua mão no pescoço As tuas costas macias Por quanto tempo rondaram As minhas noites vazias
No dedo, um falso brilhante Brincos iguais ao colar E a ponta de um torturante Band-aid no calcanhar
Eu hoje me embriagando De whisky com Guaraná Ouvi tua voz murmurando São dois pra lá, dois pra cá
Dejaste abandonada la ilusión Que había en mi corazón por ti