Porque cantar, parece com não morrer, é igual a não se esquecer, que a vida é que tem razão

O Trecho é de uma música cantada por Ednardo (composição Ednardo/Climério), cujo título é “Enquanto eu engomo a calça”.

A música parece uma pequena história cantada enquanto o eu lírico engoma sua calça. Cantar parece como algo necessário à sobrevivência… afinal,  o autor diz que cantar parece com “não morrer”. Não diz que cantar é viver, mas sim uma forma de permanecer vivo.

Em seguida, se faz a referência a um “voar maneiro”, que não foi ensinado pelo passarinho, mas pelo pelo olhar do seu amor….

Mas, ao final, há um lamento da vida de artista, que perde um amor para a distância (São Paulo), e o outro amor, pela segurança (representada pelo dentista). 

O interessante é que a canção, pelo que consta, foi feita em menos de 5 minutos, quando Climério estava passando férias na casa de Ednardo, enquanto Rosane (esposa de Ednardo) estava passando (engomando) a calça que estava amassada.

A história é contada no volume 2 do livro de Ruy Godinho, “Então, foi assim?”

ENTÃO FOI ASSIM? (Vol. 2) - Ruy Godinho - A melhor seleção da música  brasileira!

Conta Ednardo:

Em 1978 eu estava passando férias em Fortaleza e convidei o Climério para ficar uns dias junto com a gente. Ele foi e ficou hospedado na minha casa. Coincidiu do Dominguinhos estar fazendo shows na região (…) E coincidiu também que o apartamento em que ele morava era na frente do meu”

E nós pegamos uma aposta naqueles 20 dias de férias para  ver quem fazia mais músicas.

Letras de canciones de EdnardoEdnardo

No final de um destes dias, Ednardo convidou Climério para tomar uma cervejinhas .

“A gente ia saindo, a Rosane, minha mulher, disse assim: ‘Ednardo tua calça está toda amassada. Parece que saiu de dentro de uma garrafa. Deixa eu engomar aqui’ -que lá  no Nordeste o povo diz engomar para o ato de passar a roupa.  Ai eu concordei e permiti que ela engomasse’

Enquanto Rosane engomava a calça, Ednardo afirma que transcorreu o seguinte diálogo.

– Climério, não repare não, mas enquanto engoma a calça vamos fazer mais uma música’?

-Mas uma bem curtinha, fácil de cantar:

-Por que cantar’? ‘

-Por que cantar? Porque parece com não morrer, igual a não se esquecer  que a  vida é que tem razão: ‘

‘Aí, pronto. A música saiu em dois e meio a três minutos. Foi uma das músicas mais rápidas que eu já vi, em melodia e letra. Até o arranjo a gente já pensou na hora. Foi assim que nasceu’:

Ednardo - Ednardo (1979) - Estilhaços Discos

“Tinha um piano na sala, um violão e ali mesmo a gente fez. Essa é a história que eu lembro” conta Climério

Climério Ferreira - Geleia TotalClimério Ferreira

Ednardo, todavia, narra a inclusão da parte final da letra, que só foi introduzida depois.

“‘Tem um trechinho dela que a gente não tinha feito na hora. Eu achei a música muito curta.  E como eu estava lendo o livro Bar do Pedro e Outras Canções,  e eu encontrei esta pérola: ‘ah, mas como é triste vida de artista, depois de perder Vilma pra São Paulo, perder Maria Helena prum dentista.  Incluí e gravei sem o Climério saber. Ele já tinha viajado. Quando eu lancei o disco, já em 1979, eu mandei para ele, que ficou surpreso. “Mas rapaz, você botou outra coisa aqui ? Pois e, mas é sua também.

Em entrevista ao site farofafa, em setembro de 2021, Climério contou de onde vem Vilma e Maria Helena:

Não tinha esses versos na canção original. Ednardo acrescentou para me fazer uma surpresa. Quando eu trabalhava no INPE fiz uma canção chamada “Baderna” – na verdade, uma brincadeira com a despedida dos amigos de projeto. Vilma era a gerente do projeto e, muito competente que era, foi contratada pela editora Abril, indo, portanto pra São Paulo; e, no mesmo tempo, Maria Helena – uma das produtoras de rádio do nosso projeto – casou-se com o dentista que nos atendia em São José dos Campos. Sentindo que o nosso projeto estava sendo desmontado com a saída das pessoas, fiz ‘Baderna’”:

“Baderna” (Climério Ferreira)

Foi a maior baderna

Quando Vilma foi embora

A vida perdeu a perna

A saudade deu o fora

Apagou-se o riso largo

Na boca de quem sorria

E eu fui tomar um trago

No mesmo dia

Ai, pobre de nós

Nós que só vivemos de ilusão

Que temos que ouvir rádio sem voz

E sem imagem assistir televisão

Ah, mas como é triste

Essa nossa vida de artista

Depois de perder Vilma pra São Paulo

Perder Maria Helena prum dentista.

E assim surgiu um clássico da MPB, que continua a ser cantada … afinal, cantar parece com não morrer….

 

Arrepare não
Pois enquanto engomo a calça eu vou lhe cantar
Uma história bem curtinha fácil de contar
Porque cantar parece com não morrer
É igual a não se esquecer
Que a vida é que tem razão
Porque cantar parece com não morrer
É igual a não se esquecer
Que a vida é que tem razão

Esse voar maneiro foi ninguém que me ensinou
Não foi passarinho
Foi olhar do meu amor
Me arrepiou todinho quando olhou meu coração

Ai, mas como é triste
Essa nossa vida de artista
Depois de perder Vilma pra São Paulo
Perdi Maria Helena pro dentista

domingo 15 agosto 2010 05:44 , em MPB

Fontes:

GODINHO, Ruy. Então, foi assim? vol. 2. Abravideo, 2010

https://farofafa.com.br/2021/09/23/climerio-ferreira/

De Palavra em Palavra – Uma homenagem de Paulo César Pinheiro a João Gilberto (e que foi acusada de plágio)

Paulo César Pinheiro é um grande compositor e que se notabilizou por muitas parcerias que construiu na vida. Uma delas é Miltinho, violonista do MPB-4.

Eles se conheceram em torno de 1970, durante uma gravação de um álbum com parcerias de Paulo César Pinheiro com Baden Powell, e na ocasião, Miltinho lhe entregou uma fita com dois sambas de sua autoria. Uma delas tornou-se um belo samba, “Cicatrizes”, lançada por Roberto Ribeiro e mais recentemente gravada por Roberta Sá.

Miltinho e Paulo César Pinheiro

A segunda transformou-se na canção “De palavra em palavra”, a qual, como Pinheiro conta no seu Livro “História das Minhas Canções” (Leya, 2010, p.181-2), remete a João Gilberto e acabou gerando uma certa polêmica. Conta Paulo César:  

A estrutura melódica (do samba que Miltinho lhe enviou numa fita cassete) remeteu-me a João Gilberto, a quem eu já adorava, e resolvi homenageá-lo. Foi uma tarefa complicada e insana. Cismei de construir um mosaico. A letra seria uma colagem de letras do repertório do João. Só que pra isso tinha que caber os versos de Antônio Maria, Vinícius, Tom, Caymmi, Bôscoli, Ary Barroso, Haroldo Barbosa, na música que se me apresentava. E, lógico, o papo tinha que fazer sentido. Destrinchei os discos do cantor. Decorei-os. E partir pra montagem. Fui conseguindo e me empolgando. Termino com um carinhoso abraço no João, motivo de minha admiração maior. Batizar foi relativamente fácil. Um dos grandes sucessos do baiano era o samba de Lucio Alves e Haroldo Barbosa, “De conversa em conversa”, e pra fechar o tributo saquei o “De palavra em palavra” do penúltimo verso. Me deu muito trabalho essa invencionice, mas ficou um primor.

De palavra em palavra

Manhã tão bonita a manhã (Manhã de Carnaval – Luiz Bonfá/Antônio Maria)
E muita calma pra pensar (Corcovado – Tom Jobim)

Eu amei ai de mim muito mais do que devia amar (Amor em Paz – Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
Sim fiz projetos pensei (Só em teus braços – Tom Jobim)
Mas esse mundo é cheio de maldade e ilusão (Saudade da Bahia – Dorival Caymmi)
Pra que trocar sim por não se o resultado é solidão (Discussão – Tom Jobim/Newton Mendonça)

O amor o sorriso e a flor (Meditação – Tom Jobim/Newton Mendonça)
Meu sabiá, meu violão
O que ficou pra machucar meu coração (Pra machucar meu coração – Ary Barroso)

Pois é tantos versos eu fiz (A Primeira vez – Alcebíades Barcelos e Armando Marçal)
Dizendo a todo mundo o que ninguém diz (Saudade da Bahia – Dorival Caymmi)
Alimentei a ilusão de ser feliz (A Primeira vez – Alcebíades Barcelos e Armando Marçal)

O amor é a coisa mais triste quando se desfaz (Amor em Paz – Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
Dói no coração de quem sonhou demais (Este seu olhar – Tom Jobim)
Eu vivo sonhando, ai que insensatez (Vivo Sonhando – Tom Jobim/ Insensatez – Tom Jobim/Vinícius de Moraes)

Até você voltar outra vez (Outra Vez – Tom Jobim)

Eu tenho esse amor para dar (Só em teus braços – Tom Jobim)
Agora o que é que eu vou fazer (Doralice – Dorival Caymmi)
Porque esse é o maior que você pode encontrar (Desafinado – Tom Jobim/Newton Mendonça)


Mas de conversa em conversa (De conversa em conversa – Lúcio Alves e Haroldo Barbosa)
Eu só quis dizer de palavra em palavra
João Gilberto um abraço a você
Oba-la-lá (Hô-Ba -La-Lá – João Gilberto)

Historia das minhas canções - Paulo César Pinheiro | Amazon.com.br

Percebe-se, portanto, que a letra é um mosaico  de trechos de canções gravadas por João Gilberto no decorrer da vida. Trata-se de uma samba, estilo bossa nova, mas que não deixou de causar uma polêmica, relatada por Paulo César Pinheiro   

 Tempos depois, Miltinho inscreveu a composição num festival de Juiz de Fora. Um jornalista membro do júri, influenciando a opinião dos outros, desclassificou o samba alegando plágio. Depois de tamanho esforço pra o que eu considero um achado, a visão torta de um crítico soa como uma imbecilidade sem propósito. Porém, são essas as pedras que Drummond detectou no nosso caminho de criação. Já me acostumei com os antolhos alheios.

E pra concluir, o parceiro de Miltinho na música era Maurício Tapajós que eu nem conhecia pessoalmente, e com quem só vim esbarrar em outro momento. Com esse encontro noutra ocasião.

As 33 Parcerias de Paulo Coelho e Raul Seixas – E as duas que Paulo gostaria de ter feito

Entre 1973 e 1978, Raul Seixas e Paulo Coelho compuseram juntos 33 canções, que foram gravadas nos discos de Raul. Com exceção do disco “O Dia em que a Terra Parou”, em 1977, Paulo Coelho foi parceiro de Raul em 5 álbuns, com uma relação muito intensa, mas também com muita competitividade.

Paulo Coelho se manifesta sobre Seixas denunciá-lo à militares na ditadura  - Jornal de Brasília

Mas esta postagem não é para falar das músicas que eles compuseram juntos (cuja lista segue abaixo). Vou falar das músicas compostas por Raul que Paulo Coelho gostaria de ter composto.

No documentário “Raul, o Início, o Fim e o Meio” (2012), Paulo Coelho conta quais seriam as músicas que ele gostaria de ter composto:

A personalidade do Raul é de uma pessoa muito ligada ao destino dos amigos,  muito leal", diz Jotabê Medeiros | GZH

Tem duas músicas que eu gostaria de ter feito, e não fiz: uma é metamorfose ambulante… porra, eu podia ter feito, eu tava ali, ao lado, ele falou e eu disse :”coisa horrorosa, metamorfose ambulante, isso não tá com nada, é uma dessa coisa, não tá com nada. E a outra é a obra prima que é Maluco Beleza (parceria com Cláudio Roberto) . Deixa eu te responder a pergunta que não quer calar . O mais importante parceiro do Raul se chama Raul seixas. era ele com ele, essa dualidade, controlando sua maluquês… (a partir do minuto 7:42 do vídeo abaixo)

1973 – Krig Ha Bandolo 1973

  1. As Minas do Rei Salomão” Raul Seixas / Paulo Coelho
  2. “Al Capone” Raul Seixas / Paulo Coelho
  3. “Rockixe” Raul Seixas / Paulo Coelho
  4. “Cachorro Urubu” Raul Seixas / Paulo Coelho
Krig-ha, Bandolo! – Wikipédia, a enciclopédia livre

1974 – Gita

  1. “Super-Heróis” Raul Seixas / Paulo Coelho 3:11
  2. “Medo da Chuva” Raul Seixas / Paulo Coelho 3:00
  3. “Água Viva” Raul Seixas / Paulo Coelho 2:02
  4. “Moleque Maravilhoso” Raul Seixas / Paulo Coelho 2:16
  5. “Sociedade Alternativa” Raul Seixas / Paulo Coelho 2:55
  6. “Loteria da Babilônia” Raul Seixas / Paulo Coelho 2:30
  7. “Gîtâ” Raul Seixas / Paulo Coelho 4:50
Gita" (Philips, 1974), Raul Seixas

1975 – Novo Aeon

  1. “Tente Outra Vez” Raul Seixas / Paulo Coelho / Marcelo Motta 2:20
  2. “Rock do Diabo” Raul Seixas / Paulo Coelho 2:10
  3. “A Maçã” Raul Seixas / Paulo Coelho / Marcelo Motta 3:25
  4. “Caminhos” Raul Seixas / Paulo Coelho 1:45
  5. “Tu És o MDC da Minha Vida” Raul Seixas / Paulo Coelho 3:30
  6. “A Verdade Sobre a Nostalgia” Raul Seixas / Paulo Coelho 2:05
  7. “Caminhos II” Raul Seixas / Paulo Coelho / Eládio Gilbraz 0:45
Discos para descobrir em casa – 'Novo aeon', Raul Seixas, 1975 | Blog do  Mauro Ferreira | G1

1976 – Há 10 mil anos atrás 1976

  1. Canto Para Minha Morte (Raul Seixas/Paulo Coelho)
  2. Meu Amigo Pedro (Raul Seixas/Paulo Coelho
  3. Ave Maria da Rua (Raul Seixas/Paulo Coelho)
  4. Quando Você Crescer (Raul Seixas/Paulo Coelho/Gay Vaquer
  5. Eu Também Vou Reclamar (Raul Seixas/Paulo Coelho)
  6. As Minas do Rei Salomão (Raul Seixas/Paulo Coelho)
  7. O Homem (Raul Seixas/Paulo Coelho)
  8. Os Números (Raul Seixas/Paulo Coelho)
  9. Cantiga de Ninar (Raul Seixas/Paulo Coelho)
  10. Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás (Raul Seixas/Paulo Coelho)
Há 10 Mil Anos Atrás - Wikipedia

1978 – Mata Virgem

  1. “Judas” – Raul/Paulo Coelho
  2. “As Profecias” – Raul/Paulo Coelho
  3. “Tá Na Hora” – Raul/Paulo Coelho
  4. “Conserve Seu Medo” – Raul/Paulo Coelho
  5. “Magia De Amor” – Raul/Paulo Coelho
CD Raul Seixas - Mata Virgem - galleryrock

“Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”…. Jorge Maravilha, canção de Julinho de Adelaide (mas que é de Chico)

Julinho de Adelaide foi um personagem fictício que Chico Buarque criou na década de 70 para driblar a censura. Julinho da Adelaide nasceu quando Chico Buarque passou a ser muito conhecido entre os censores do regime militar, na década de 70. Seu nome estava marcado, e suas músicas eram proibidas somente porque Chico era o compositor.

Chico, então, criou um alter-ego, um heterônomo, um sujeito chamado Julinho da Adelaide, supostamente oriundo da fevela da Rocinha. Assim, Chico (ou melhor, Julinho) compôs três canções, em 1973/4, gravadas por Chico: Acorda, Amor (em que o eu-lírico diz para a mulher chamar o ladrão, pois a polícia está chegando), Jorge Maravilha e Milagre brasileiro (em que critica o chamado “milagre econômico”).

A vida curta e gloriosa de Julinho da Adelaide | Pega na Geral

Vou contar aqui um pouco da canção “Jorge Maravilha”, que tem um refrão bem conhecido “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, que, segundo as lendas, seria um recado para a filha do então presidente do Brasil, Ernesto Geisel. 

No livro “História das canções”, Wagner Homem esclarece o fato: 

Para conseguir a liberação. Chico criou novo subterfúgio, que consistia em inserir a parte que lhe interessava misturada a outros tantos textos que não tinham pé nem cabeça. A canção foi enviada à Polícia Federal, sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide, entre as estrofes abaixo:

A primeira parte não interessava:

Você não entendeu/Que o amor dessa menina/É a chama que ilumina/A minha solidão/O meu amor por ela/É uma cidadela/Construída com paz e compreensão

Aqui vinha a letra da que interessava:

E nada como um tempo após um contratempo
Pro meu coração
E não vale a pena ficar, apenas ficar
Chorando, resmungando, até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge Maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais voando

Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta

Ela gosta do tango, do dengo
Do mengo, domingo e de cócega
Ela pega e me pisca, belisca, petisca
Me arrisca e me enrosca

Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta

Depois, mais uma parte descartada:

E o meu amor por ela/É uma cidadela/Construída com paz e compreensão/Somente paz e compreensão/Para sempre paz e compreensão/E eu vou velar por ela/Como uma sentinela/Guardando paz e compreensão/Somente paz e compreensão/Paz sempre paz e compreensão

“Como não havia obrigação de gravar todo texto aprovado, as estrofes inicial e final foram simplesmente excluídas, restando o que de fato interessava.

Os intérpretes de entrelinhas logo vislumbraram na letra uma referência ao general Geisel, cuja filha, Amália Lucy, manifestara admiração pelas obras do autor.

O nascimento de Julinho da Adelaide – MÚSICA BRASILEIRA VIVA: A MPB na  linha de frente

Em entrevista a Tarso de Castro na Folha de S. Paulo, Chico revela a origem da imagem utilizada: “Aconteceu de eu ser detido por agentes de segurança, e no elevador o cara me pedir um autógrafo para a filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo de delegado”. Foram vãs as tentativas de esclarecimento, porque até hoje muita gente crê na interpretação fantasiosa.

Respondendo à mesma questão em 2007 para a revista Almanaque, ele diz:

Nunca fiz música pensando na filha de Geisel, mas essas histórias colam, há invencionices que nem adianta mais negar. Durante a ditadura, de um lado ou de outro, as pessoas gostavam de atribuir aos artistas intenções que nunca lhes passaram pela cabeça. Achavam que a maioria dos artistas só fazia música pensando em derrubar o governo. Depois da ditadura, falam que o artista só faz música para pegar mulher. Mas aí geralmente acontece o contrário, o artista inventa uma mulher para pegar a música.

Nesse ponto, a letra contém vários subterfúgios para burlar a censura:

a) o pretexto de um diálogo entre o eu-lírico e o pai da filha com quem o sujeito mantém uma relação bem física (aliás, segundo a letra, mais vale uma filha na mão do que dois pais voando);

b) A letra com cacos não utilizados no começo e no final;

c) A composição com o pseudônimo Julinho da Adelaide;

A música passou pela censura e foi gravada. Em 1975, uma  matéria sobre censura publicada no Jornal do Brasil revelaria que Julinho da Adelaide e Chico Buarque eram a mesma pessoa. Por causa dessa revelação, o serviço de censura do Governo Militar passou a exigir cópias do RG e do CPF dos compositores.

segunda 26 janeiro 2015 20:02 , em As lendas

Amor, meu grande Amor

 

“Amor, meu grande Amor” foi o primeiro grande sucesso de Ângela Ro Ro, gravado no seu primeiro disco, em 1979. A letra é de Ana Terra, que sequer conhecia Ângela antes de surgir a letra.

A música fala de características de um amor desejado, talvez idealizado, mas que não se enxerga como eterno (‘só dure o tempo que mereça”).

Ao mesmo tempo, representa uma crença num amor à primeira vista, num desejo de que venha de repente, e que possa, como num passe de mágica, fazer sentir como que dentro de uma bolha, em que o eu-lírico seja “a última e a primeira”

A história da canção, Ana Terra contou a Ruy Godinho, no primeiro volume do seu livro “Então, foi assim?”, bem como numa entrevista no youtube a Rodrigo Faour (https://www.youtube.com/watch?v=PteIxC8_Oso), como a letra foi feita:

Ana terra

Ângela Ro Ro estava selecionando repertório para a gravação de seu primeiro disco, em 1979 e Paulinho Lima empresário dela na época – perguntou para Ana Terra se ela dispunha de alguma letra para Ângela musicar. Ana lembrou-se que tinha algo fresquinho, escrito naquela semana. “Lembro bem que foi numa madrugada em que cheguei meio de porre do baixo Leblon e não conseguia dormir”, comenta.

Ana, na ocasião, já estava separada de Danilo Caymmi, com quem fora casada desde 1973. “Sentia-me muito só. Deseja viver outra vez um grande amor. E eu só acredito em amor à primeira vista, um reconhecimento sincrônico e imediato. Pensava nessas duas energias que se tocam harmonicamente e geram uma terceira força, essa coisa mágica chamada amor. Mas que nunca se pode prever, marcar hora, estabelecer regras, fingir que sente, pensar que sabe”, recorda-se a letrista.

   Mal sabia Ana Terra que, daquele momento de carência afetiva e aflorada solidão estava surgindo mais uma letra que seria sucesso nacional. “Escrevi o que estava desejando naquele momento. Sempre escrevo meus desejos para que eles ganhem forma e força”, afirma revelando-se adepta da neurolinguística, ciência que põe o universo para conspirar em favor dos desejos e metas. “Entreguei-a para a Ângela que tinha uma música com letra em inglês e onde o meu texto se encaixou perfeitamente. Ela gravou e é um sucesso até hoje.”

Angela Ro Ro (álbum) – Wikipédia, a enciclopédia livre
Disco de Ângela Ro Ro em que a canção foi gravada

   Ana diz que é completamente diferente de Ângela, só vindo a conhecê-la pouco antes dela gravar a canção, que foi gravada no LP Ângela Ro Ro, lançado pela Polydor, em 1979.

   Em 1996, a música foi regravada pelo Barão Vermelho.

Amor, meu grande amor
Não chegue na hora marcada
Assim como as canções
Como as paixões e as palavras

Me veja nos seus olhos
Na minha cara lavada
Me venha sem saber
Se sou fogo ou se sou água

Amor, meu grande amor
Me chegue assim bem de repente
Sem nome ou sobrenome
Sem sentir o que não sente

Que tudo que ofereço
É meu calor, meu endereço
A vida do teu filho
Desde o fim até o começo
Que tudo que ofereço
É meu calor, meu endereço
A vida do teu filho
Desde o fim até o começo

Amor, meu grande amor
Só dure o tempo que mereça
E quando me quiser
Que seja de qualquer maneira

Enquanto me tiver
Que eu seja a última e a primeira
E quando eu te encontrar
Meu grande amor, me reconheça

Que tudo que ofereço
É meu calor, meu endereço
A vida do teu filho
Desde o fim até o começo
Que tudo que ofereço
É meu calor, meu endereço
A vida do teu filho
Desde o fim até o começo

¹Ângela Maria Diniz Gonçalves 05/12/1949 Rio de Janeiro-RJ

² Ana Maria Terra Borba Caymmi 20/5/1950 Rio de Janeiro-RJ

³ Entrevista concedida ao autor, em março de 2006, por e-mail.

Doces Bárbaros: “O seu amor” – Composição de Gilberto Gil

Eu sempre tive uma relação afetiva com a música “o seu amor”, cantada em 1976 pelos Doces Bárbaros (grupo formado por Caetano, Gil, Gal e Bethânia, esta última idealizadora do grupo como forma de comemorar dez anos de carreiras do quarteto baiano).

A música consegue passar uma mensagem política e uma mensagem de amor ao mesmo tempo.

Centrada na frase “O seu amor, ame-o e deixe-o”, é uma evidente mensagem dirigida ao famigerado bordão “Brasil; ame-o ou deixe-o” do governo Médici na década de 70, consegue dizer que havia quem amava o Brasil, e ainda assim  o deixava.

Brasil ame ou deixe o – https://bemblogado.com.br/site/

Este bordão, Ame-o ou deixe-o, nada mais é do que uma cópia do bordão “América: love it or leave it”, de Walter Winchell, um apoiador do Macartismo e a caça aos comunistas nos Estados Unidos.

A letra subverte a lógica da frase:

  1. De uma disjunção exclusiva “Ame-o ou deixe-o” em que a ideia é de quem ama, fica, quem não ama, deixa,
  2. Para uma conjunção, “Ame-o e deixe-o”, quando é possível deixar, mesmo amando (detalhe: Gil e Caetano foram exilados em 1969).

E, assim, além de ser possível amar e deixar, o canto passa a homenagear o amor não egoísta, o amor que preza a liberdade do ser amado, diferentemente de muitos amores possessivos e egoístas, que, sob o pretexto da intensidade de sofrimento, querem o ser amado só para si e transformam a relação numa prisão, em que a obrigação supera o afeto. 

Ame-o e deixe-o livre para amar | Revista Fórum

Sempre gostei do canto do amor verdadeiro, que, mesmo sendo arrebatador, permite que o ser amado ame como liberdade, e não como dever. É também a mensagem da música de Gil. 

No livro “Todas as letras”, de Gilberto Gil e organizado por Carlos Rennó (Cia das letras, 1996), há o comentário sobre a canção:  

A intenção foi brincar com o slogan da ditadura, ‘Ame-o ou deixe-o’, promovendo, através da substituição de uma conjunção, um corte profundo de ruptura no significado reducionista, possessivista e parcial do aforismo oficial, símbolo do fechamento e da exclusão maniqueísta, para criar um outro, com outra moral, a do amor – e, portanto, absolutamente generoso, democrático e libertário. A concepção de ‘amor livre’ é também reiterada, reintroduzida como objeto de respeito e admiração à liberdade no amor, e ampliada até para um sentido mais cristão, de amor irrestrito.

OLHO NA HISTÓRIA: Atividades de História do Brasil - DITADURA MILITAR OU  REGIME MILITAR

 Minimalista já na escolha de uma máxima tão concisa e conclusa, a letra também o é na construção – na maneira como suas significações se sobrepõem como degraus de uma escada tosca, de pedreiro, somando-se com certo desejo geométrico e uma ambição de organização aritmética de fatores numa conta de adição feita com números muito simples”

A música depois foi gravada por Gil, no seu disco Gil Luminoso, e por Caetano e seus filhos, no disco Ofertório

 O seu amor

Ame-o e deixe-o livre para amar
Livre para amar
Livre para amar

O seu amor 
Ame-o e deixe-o ir aonde quiser 
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser

O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz

O seu amor
Ame-o e deixe-o ser o que ele é
Ser o que ele é

Todas as letras, Cia das letras, 1996

sábado 07 agosto 2010 13:50 , em MPB

Ô coisinha tão bonitinha do pai….

Almir de Souza Serra quase ninguém conhece. Ele tinha um apelido, Almir Magnata. Depois, de magnata virou Almir Guineto. Ele integrou um grupo musical que fez sucesso nos anos 60, chamado Originais do Samba (Mussum talvez seja o membro mais conhecido do grupo). Atribui-se a Guineto, , inclusive, a introdução do Banjo em grupos de samba (objeto de controvérsia, que não cabe tratar aqui, por enquanto). O certo é que Almir teria uma forma particular de tocar banjo, cujo volume, ao contrário do cavaquinho, era capaz de soar mais alto junto aos instrumentos percussivos.

Compacto 7" - Os Originais Do Samba ‎– Os Originais Do Samba

Almir, carioca do morro do Salgueiro, teve que se mudar para São Paulo junto com o grupo Originais do Samba. E morava numa casa com vários homens. Ali surgiu “Coisinha do pai”, que é contada por Ruy Godinho, no volume 1 de seu livro “Então, foi assim?”

“Eu comecei a fazer na Rua Aurora, 544 apto 105, eu e o Luiz Carlo Chuchu. Nós morávamos juntos no apartamento do meu irmão Chiquinho, que era um dos integrantes dos Originais do Samba, no tempo do Mussum. E ali só morava homem: Eu, Chiquinho, Luiz Carlos Chuchu e Lelê, que também fazia parte do grupo. Cada dia era um que fazia a comida ou a limpeza. E nesse dia era meu dia de limpar. Eles até brincavam: ‘hoje a Raquel é você!’ cada um tinha o seu dia de sofrimento. E, de madrugada, eu, embriagado como sempre, pintou essa música: “Ô coisinha tão bonitinha do pai/ô coisinha tão bonitinha do pai…”

Homenagem Almir Guineto - Marcinho Moreira [ SÓ NO BANJO ]
Almir Guineto

Eu fiz a primeira parte. Aí o Luiz Carlos, que é um compositor muito bom, botou a segunda parte: “Você vale ouro todo o meu tesouro/Tão formosa da cabeça aos pés”

O Beto Sem Braço era o parceiro que iria fazer a terceira parte, já estava até na cabeça dele. Mas o Jorge Aragão ouviu a gente cantar e e pediu para botar a terceira parte, em homenagem à filha dele que tinha nascido: Vou lhe amando lhe adorando/Digo mais uma vez/Agradeço a Deus por que lhe fez

Assim, despretensiosamente, o samba caiu no colo de Beth Carvalho, que a gravou em 1979, no disco “Pagode”. Foi um sucesso absoluto. A letra, que inicialmente sugere uma relação de admiração pela mulher, no aspecto sensual, termina por desembocar numa relação de amor pai-filha, indicada nos versos finais de Jorge Aragão.

 

Chão de Giz

Há muitas análise e especulações sobre como foi composta a composição “Chão de Giz”, que integra o primeiro álbum de Zé Ramalho (1978). A canção, imagética e cheia de metáforas, revela um relacionamentos que o artista teve, muito jovem, com uma mulher mais velha, casada, que fazia parte da chamada “alta sociedade” de João Pessoa.

Em entrevistas, Zé Ramalho apenas revela esta condição, sem contar detalhes sobre a história que viveu. O que resta são as inúmeras análises que se faz da letra da canção.

Zé Ramalho no música de segunda e Táxi Boy | Imaginação Fértil

Na letra, o eu-lírico se despede de uma relação, que possivelmente ocorreu ou atravessou um carnaval. Inegavelmente, revela uma frustração por uma relação não correspondida

Há relatos, que constavam no próprio site do artista que ele se apaixonou por esta mulher, casada com uma pessoa influente da sociedade, e que não estaria disposta a abandonar sua posição por aquela relação adolescente.

Diz-se, também, que Zé Ramalho ficou arrasado por meses, e chegou a mudar de bairro, pois morava próximo a ela. E, nesse período de sofrimento, compôs a canção.

chão de giz} bordado objeto no Elo7 | Rebecca Jacob ~ Bordado Livre  (11A674B)

Zé Ramalho, recentemente, numa entrevista, disse que em nenhuma música dele contém a frase “eu te amo”. esta frase é dita por outros caminhos. E ele, nesta canção, relata a experiência do desamor, ou melhor, do amor que se desfez.

E assim ele relata, no chão de giz, efêmero, frágil, dissipável, no qual as lembranças e devaneios daquela relação que se finda o torturam…

E as imagens daquela mulher, recortadas em folhas de jornais, seriam guardadas “no pano de guardar confetes’, ou seja, ficarão nas memórias e nos restos daquele carnaval.

E por mais que ele tente lutar, usando toadas as suas armas (“balas de canhão”), existe o Grão-Vizir, o marido. Mais do que a referência à posição, há uma referência à vilania, associada certamente a Kara Mustafá, um famoso grão-vizir otomano que é associado á ganância e à vilania. O Grão Vizir é o antagonista, e, em certa medida, o vencedor deste jogo de amor

E, numa manifestação de um certo despeito, ele diz ser o colibri que pode polinizar outras violetas velhas, assim como ela, e, diante da impotência, faz referência à loucura (camisa de força) e aos desejo (camisa de vênus) reunidas numa mesma pessoa.

E ele se resigna, pois não quer com ela apenas o cigarro efêmero do pós- sexo, nem o beijo passageiro. E por isso, nocauteado, vai embora, pois não quer, como um escravo, ficar acorrentado no calcanhar da pessoa, como uma forma de subordinação.

E na juventude dele, ele relata algo um tanto edipiano neste amor pela mulher mais velha (“Freud Explica”), e que a história acabou, o carnaval dele com ela acabou, e ele está indo embora.

Resta claro que a despedida, diante do contexto, é a única opção.

Significado da música Chão de Giz - Análise e Interpretação - Cultura Genial

http://museudacancao.blogspot.com/2012/11/chao-de-giz.html

http://www.cronistas.com.br/default.asp?ID_CRONICA=141

Minha fama de Mau – A biografia de Erasmo Carlos

Depois de algum tempo com o livro, resolvi ler “Minha fama de mau”, biografia de Erasmo Carlos. Na verdade, o livro é uma coleção de histórias, que revela muito do personagem Erasmo Esteves, que mais adiante resolveu adotar o nome artístico Erasmo Carlos, numa dupla homenagem ao seu “amigo de fé” Roberto Carlos, e ao seu chefe Carlos Imperial.

Resumo - Minha Fama de Mau - Mais comentadas - 1

Interessante é que o livro tem o título “Minha Fama de Mau”, título de uma canção da parceria Roberto/Erasmo, mas que, na verdade, de “mau” mesmo, não revela nada. No máximo as zoações que ele fazia quando adolescente em relação ao “Careca” que namorava uma garota que ele desejava, no bairro da Tijuca, no rio de Janeiro.

Erasmo, no livro, não fala mal literalmente de ninguém, e arranja um jeito de contar uma história/homenagem em relação a pessoas importantes na MPB. Estão lá João Gilberto (de quem se declara fã incondicional, junto com Elvis Presley), jorge Benjor, Tim Maia (que o ensinou a tocar violão), Wanderleia, Caetano, Gal, Chico Buarque, entre tantos outros. Não falta, claro, um capítulo inteiro do livro para contar de sua relação com Roberto Carlos, uma amizade que, segundo ele, ficou estremecida apenas uma vez.

Mês das Noivas - músicas da dupla mais retrô | Jovem guarda, Roberto carlos  cantor, Roberto carlos

Erasmo por Erasmo é alguém fissurado em mulheres, carros e rock’n roll. Conta por alto sua aventuras com mulheres, conta sua rotina louca na época da Jovem Guarda, os conselhos de Carlos Imperial, sua vida de casado com Narinha nos anos 70/80, em que ele meio que aderiu a uma vida mais hippie, As famosas vaias que recebeu dos metaleiros no Rock in Rio em 1985.

Escrito de maneira leve e positiva, o livro agrada a quem lê e passa ao largo claramente de questões polêmicas, como questões relativas a álcool, drogas, a acusação de corrupção de menores nos anos 60, e tangencia, bem superficialmente, o suicídio de sua ex-mulher, Narinha, após alguns anos de separação.

No mais, é um livro que se lê rapidamente, em que Erasmo é um cara boa praça, parceiro, de bem com a vida e namorador. Vale como o registro de uma época, como uma leve coleção de histórias de vida.

Conto de areia.

“Contam que toda tristeza que vem da Bahia, nasceu de uns olhos morenos molhados de mar…”

O trecho acima citado vem da música “Conto de Areia”, composição  de Romildo Bastos e Toninho Nascimento que se tornou um fenomenal sucesso na voz de Clara Nunes, em 1974. É um belíssimo samba de roda tipicamente baiano (embora Romildo seja pernambucano, e Toninho, paraense), que remete às velhas canções de Caymmi, da história do pescador que foi ao mar pescar e que nunca volta (me veio a referência à velha frase de Caymmi: “A jangada voltou só…“)

A música tem uma letra longa, cuja inspiração Toninho revelou a Vagner Fernandes, no livro Clara Nunes: Guerreira da Utopia (Ediouro, 2007):

“Eu a compus a partir de uma conversa com um amigo-vizinho baiano, que contava casos que havia vivido na Bahia. Um deles era a história da mulher cujo marido foi pescar e nunca mais voltou. Ela enlouqueceu e passou a andar pelas areias da praia dia e noite em busca do amado. me inspirei nessa história e fiz a letra” 

Conto de Areia - Album by Clara Nunes | Spotify

 Acho a música impressionante, como também é a letra que impulsionou um fenômeno de vendas. Carro chefe do álbum “Alvorecer”, a música  ajudou Clara Nunes a vender mais de 350 mil cópias do disco, em 1974, um absoluto recorde para a época, quando se tinha a cultura de que “mulher não vende disco.

O samba é contado do fim para o começo… “è água no mar, é maré cheia“, quando a morena (não se sabe se é lenda ou se é verdade) carrega consigo e nos seus olhos morenos moilhados de mar toda a tristeza da Bahia. Ela se enfeita na praia, na noite, com lua… enche seu peito de tristeza e promessas… e dança…

Saiba como a Lua e o Sol influenciam as marés – Orla Rio

Faz promessas porque seu amor se fez de canoeiro, e o vento arrastou o veleiro, de modo que Iemanjá levou consigo seu amor (um pouco a partir da história da lenda das sereias)…

No fim, o ser amado (o canoeiro) se despede da moça, diz para ela não esperá-lo porque ele já vai embora, voltar para o reino de Iemanjá, sua senhora, e a recomenda a não olhar mais para os veleiros, porque ele não vai voltar. Afinal, “foi beira mar quem chamou”

Toninho também conta que a letra original era “É lua no mar, é maré cheia”. Quando Romildo foi mostrar a melodia, cantava “é água no mar, é maré cheia”. Todas as vezes que se encontravam, Romildo cantava “É água no mar”, em vez de “É lua no mar”. Toninho explicava para Romildo a relação da lua com o mar, da gravidade, que a lua influenciava nas marés… mas Romildo sempre cantava “é água no mar”. Toninho dizia que o que tem no mar é água, mas, de tanto ver Romildo “errar”, acabou ficando o verso “É água no mar”…

Romildo Souza Bastos, da dupla Romildo e Toninho, fala sobre Clara Nunes e  seus sucessos. - YouTube
Romildo

Em entrevista à TVT, Toninho ouviu a história de um vizinho de sua sogra, que tocava violão, que contou uma história da Bahia, e que tinha uma louca, que andava pelas praias de Amaralina, catando conchas, e a molecada namorava aquela louca. E o baiano foi namorar esta mulher louca, que morava num casebre sobre uma duna. E o baiano se espantou que no casebre da louca não havia móveis, nem cama, nem cadeira, apenas montinhos de conchas que ela catava pelas praias, que ela depositava no piso do casebre. Conta a história que a louca, quanto mais jovem, vivia com um pescador, o qual foi pro mar e nunca mais voltou. E por conta disso, a louca passou a catar conchas na praia

Toninho ficou emocionado com a história. Ficou com a história na cabeça, e transformou em versos, e deu para Romildo musicar.

É uma música triste, cantada numa versão definitiva por Clara Nunes.

Uma curiosidade é que Adelzon Alves, companheiro e produtor de Clara, na época, parecia ter implicado com a música. Toninho, no mesmo depoimento a Wagner Fernandes, disse que Romildo chegou na cara-de-pau e mostrou a canção a Clara, mas Adelzon teria implicado com partes da letra. Uma delas, a letra original dizia “Era um peito só, cheio de promessa e ebó“, que acabou sendo substituída por  “Era um peito só, cheio de promessa era só”. Outra parte, era o verso “E leva pro meio das águas brancas de Iemanjá” , quando Adelzon teria implicado com a expressão “brancas”, que acabou excluída da letra. 

Romildo, no entanto, em entrevista no youtube, conta que mostrou a música para Adelzon, que ficou empolgado com a canção, e pediu para Romildo mostrar outras músicas…

Compositor Toninho Nascimento mostra sua "identidade" em São Paulo -  Vermelho
Toninho

A letra da canção: 

É água no mar, é maré cheia ô
mareia ô, mareia
É água no mar…


Contam que toda tristeza
Que tem na Bahia
Nasceu de uns olhos morenos
Molhados de mar.
Não sei se é conto de areia
Ou se é fantasia
Que a luz da candeia alumia
Pra gente contar.
Um dia morena enfeitada
De rosas e rendas
Abriu seu sorriso moça
E pediu pra dançar.
A noite emprestou as estrelas
Bordadas de prata
E as águas de Amaralina
Eram gotas de luar.

Era um peito só
Cheio de promessa era só
Era um peito só cheio de promessa (2x)

Quem foi que mandou
O seu amor
Se fazer de canoeiro
O vento que rola das palmas
Arrasta o veleiro
E leva pro meio das águas
de Iemanjá
E o mestre valente vagueia
Olhando pra areia sem poder chegar
Adeus, amor

Adeus, meu amor
Não me espera
Porque eu já vou me embora
Pro reino que esconde os tesouros
De minha senhora
Desfia colares de conchas
Pra vida passar
E deixa de olhar pros veleiros
Adeus meu amor eu não vou mais voltar

Foi beira mar, foi beira mar que chamou
Foi beira mar ê, foi beira (2x)

sexta 22 julho 2011 04:21 , em Samba

https://oglobo.globo.com/rio/toninho-nascimento-de-belem-do-para-apoteose-na-sapucai-11618096