Roberto Carlos, João Gilberto e a “turma” da Bossa Nova

Affonso Romano de Sant’anna dá uma definição de Roberto Carlos difícil de ser igualada: “Ele é o lado kitsch dos ouvintes mais sofisticados e é o lado mais sofisticado dos ouvintes mais kitsch. É uma espécie de herói popular”. 

 Em síntese, Roberto Carlos seria a voz mais sofisticada acessível aos ouvidos ditos “populares”, e seria, simultaneamente, o lado mais popular acessível aos ouvidos ditos “sofisticados”.

 Interessante que poucas pessoas sabem que a fonte inicial de inspiração de Roberto Carlos foi a mesma que inspirou Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo e Jorge Ben (hoje Benjor): João Gilberto e a sua incomparável batida de violão que fez surgir a bossa nova, com a gravação de Chega de Saudade.

https://youtu.be/oTuopiniIHE

 Roberto Carlos tinha ido de Cachoeiro do Itapemirim ao Rio de Janeiro, e em 1959 não alcançara sucesso, tendo conseguido ser contratado como cantor da boate Plaza, no Rio de Janeiro (momento em que Roberto Carlos considera o início de sua carreira, vide as comemorações de seus 50 anos de carreira, ocorridos em 2009).

 Naquela época, Roberto Carlos, embora reconhecesse não ter o mesmo talento com o violão do que João Gilberto, cantava baixinho como ele. Talvez, no início da bossa nova na década de 60, era quem cantava mais parecido com João, muito mais do que Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e outras pessoas da turma da “Bossa Nova”. Essa “turma”, na verdade, desprezava Roberto Carlos, sob o argumento de que ele seria uma imitação barata de João Gilberto.

 Ruy Castro narra como Roberto Carlos fora barrado pelos corifeus da Bossa Nova, no seu livro Chega de saudade (Cia das Letras, 1990),

 “Roberto Carlos, dezoito anos, bateu à porta da boate Plaza naquele mesmo ano de 1958 e descobriu um cantor que dava canjas com frequência: João Gilberto.Roberto levou um choque. Aquela voz e aquele violão, no canto mais escuro do fundo da boate, acompanhado por uma simples bateria, o deixaram febril e evaporaram Elvis de sua cabeça por um bom tempo. Quando aprendeu a fazer uma passável imitação de João Gilberto, compôs ‘Brotinho sem Juízo’ e candidatou-se a participar das canjas. Mas, justamente por parecer uma cópia meio aguada do original, não o chegavam sequer chegar perto do microfone. Nascanjas das quintas-feiras, no clube Leblon, a mesma coisa. Bem que tentava se enturmar, mas ninguém queria saber dele ou de ‘Brotinho sem Juízo’. Em certo momento, Roberto Carlos ficou mesmo insistente, e o mínimo de que o chamavam era de chato. Numa dessas, na casa do empresário Lauro Boamorte, no Flamengo, Menescal levou-o a um canto: ‘Olha, bicho, não dá pra você, você quer cantar igualzinho ao João Gilberto – e nós já temos o João Gilberto'”.

 Segundo narra Paulo Cesar de Araújo, no seu livro – que se tornou polêmico – “Roberto Carlos em detalhes (Planeta, 2006), a turma da Bossa Nova encarava Roberto como um “João Gilberto dos pobres”.

 No entanto, foi sob a inspiração melódica de João Gilberto que Roberto Carlos gravou seu primeiro compacto, com as músicas João e Maria e Fora do tom (uma glosa de Desafinado, clássico da bossa nova). O compacto recebeu duras críticas da imprensa, como a abaixo transcrita, narrada no livro de Araújo:

 Agora é que a coisa vai piorar. Vão aparecer mil e um cantores tipo João Gilberto e ninguém vai aguentar mais. João sozinho é bom demais. A sátira de Carlos Imperial é interessante. Porém, falta alguma coisa ao jovem cantor”.

 Mais adiante, quando gravou seu primeiro disco, “louco por você” (que vendeu apenas 512 cópias), ainda havia muita inspiração da bossa nova e o estilo de cantar era ainda muito inspirado em João Gilberto.

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 É óbvio que, depois de ser totalmente rejeitado pelos “defensores” da bossa nova (registre-se, algo que não tem nada a ver com João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Morais), além de não conseguir sucesso como cantor, Roberto Carlos teria que mudar de estilo, por mais que estivesse apaixonado pela música de João Gilberto.

 Talvez por essa razão o disco “Louco por você” está excluído da discografia oficial de Roberto Carlos, e, segundo Antonio Farinaci, Editor de UOL Música (http://musica.uol.com.br/especiais/2004/12/13/ult1541u70.jhtm), esse disco é dos mais raros, tido como renegado pelo próprio Roberto, chegando a atingir o preço de R$ 4.000, mas apenas em lojas especializada e sebos de vinis.

Em 2015, o Spotify disponibilizou a discografia de Roberto Carlos, na qual passou a constar o disco “proibido” “Louco Por Você”. Antes disto, jamais havia sido relançado.

 O resgate de Roberto Carlos com a bossa nova só veio com a gravação, em 2008, do disco/DVD com Caetano Veloso, em que ambos, comemorando o sucesso da bossa nova, cantaram músicas de Tom Jobim. E como Roberto canta bem Tom Jobim. E, também, recentemente, no site oficial do cantor, os discos “renegados” voltaram á discografia oficial. Um resgate da história

A música que posto agora é “Brotinho sem juízo”, do segundo compacto de Roberto Carlos. É nítida a influência da bossa nova…

 Fontes: Paulo Cesar de Araújo: Roberto Carlos em detalhes (Planeta, 2006); Ruy Castro: Chega de saudade (Cia das Letras, 1990); http://robertocarlos.globo.com;http://musica.uol.com.br/especiais/2004/12/13/ult1541u70.jhtm;

Publicado originalmente no http://musicaemprosa.musicblog.com.br/249238/Roberto-Carlos-Joao-Gilberto-e-a-turma-da-Bossa-Nova/ em abril de 2010

Ho ba la lá. Um livro à procura de João Gilberto

Marc Fischer é um berlinense que ouviu um disco de João Gilberto no Japão. Veio atrás dele no Brasil. Escreveu um livro sobre o fato e suicidou-se. Esse livro chama-se Ho-ba-la-lá e é uma grata surpresa.

Trata-se de uma investigação bem-humorada. Fischer transformou sua estranha obsessão numa busca incessante do inventor da batida de violão que é o verdadeiro coração da Bossa Nova.

O livro é uma aventura de Fischer no Brasil, quando veio na esperança de que João Gilberto tocasse  Ho-ba-la-lá para ele ao violão. E aí surgem histórias divertidas e engraçadas na busca de João Gilberto. Ele entrevista muitos que conviveram com João, no âmbito pessoal e profissional. Carlos Lyra, Marcos Valle, Miúcha, João Donato, até o cozinheiro que serve o prato preferido de João.

E qual o resultado? Um passeio pela lenda que é João Gilberto, suas antinomias e suas ambiguidades. Sua genialidade e sua aversão ao público em geral.

A obra de Fischer é escrita num tom coloquial, em primeira pessoa, dá pra ser lido rapidamente e é muito agradável sua leitura. Ele vai contando as história e aventuras, sempre com muito bom humor, de um alemão que não fala português passeando pelo Brasil.

A passagem dele pelo banheiro em Diamantina (MG)  onde João criou a batida da bossa nova é impagável.

O mais interessante são as maneiras em que ele tenta se aproximar de João Gilberto, que em certos momentos parece um fantasma, ou um vampiro.

O impressionante é que, numa passagem do livro, Roberto Menescal fala para Marc:

João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também. De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado também. 

O certo é que Marc Fischer suicidou-se antes de lançá-lo.

 

O  que faz o livro imperdível, contudo,  é o resgate de João Gilberto como o verdadeiro gênio criador da bossa-nova, e é um retrato de como ele conseguiu transformar a música brasileira definitivamente.

João nunca fez parte do movimento “bossa nova” do qual foi criador. Aliás, João Gilberto não usa a expressão “bossa nova” desde “desafinado”.

Marc mostra as contradições entre a pessoa e o gênio, as manias, a sua personalidade encantadora e magnética, Mostra como João é capaz, com seu cantar baixinho e sua batida de violão, encantar as pessoas, mas também como ele deixa sua marca em cada pessoa que passa. Um resgate ao gênio da bossa nova.

Por tudo isso vale o livro. vale a busca e a torcida por Marc Fischer encontrar João Gilberto, e vale pela investigação de uma figura ímpar na música brasileira.

 

 

 

 

 

 

Johnny Alf

Johnny Alf é o nome artístico de Alfredo José da Silva, nascido no Rio de Janeiro em 19/05/29. Quando da sua morte, ocorrida na semana passada, Johhny Alf foi lembrado e saudado como precursor da bossa nova.

Mas, para aqueles que não estavam nascidos na década de 50 ou 60, como saber da importância de Johnny Alf para a Música Brasileira?

Em qualquer referência bibliográfica sobre ele, conta-se que era filho de um cabo do exército, que morreu quando Johnny Alf tinha 3 anos, e que sua mãe fora empregada doméstica. A patroa de sua mãe, segundo consta, gostava muito da criança e o matriculou, desde os nove anos, em aulas de piano clássico com a professora Geni Bálsamo.

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No livro “História da Música Popular Brasileira (Abril Cultural/São Paulo, 1972), Johnny Alf conta que, a despeito de ter estudado piano clássico, o que ele mesmo gostava dos filmes musicais americanos:

– Impacto mesmo me dava outro tipo de música. Eram os filmes musicais americanos que tinham George Gershwin. Cole Porter, esse pessoal todo. Era o que me acendia aquela vontade interior de criar alguma coisa. Então, quando eu estudava, quando voltava do cinema sob aquele impacto, eu ia ao piano e fazia coisas com a influência do que tinha ouvido, inventava a melodia, e tal.

Seu nome artístico veio, inicialmente, de um professor do Instituto Brasil-Estados Unidos, que insistia em chamá-lo de Alf. E, posteriormente, numa apresentação da Rádio Ministério da Educação, uma garota americana sugeriu Johnny para completar o Alf.

Narra Ruy Castro, em “Chega de Saudade”, que Johnny Alf tornou-se integrante do Sinatra-Farney fan club, tido como uma espécie de “manjedoura” de onde saíram muitos dos principais nomes da bossa-nova. Alf entrara para o clube porque teria um piano ocioso para tocar.

A grande revolução na carreira musical de Johnny Alf ocorrera em 1952, quando ele era cantor de boate, à noite, e cabo do exército, durante o dia. Foi percebido pelos cantores Dick Farney e Nora Ney, por intermédio dos quais iniciou a carreira profissional como pianista na Cantina do César, casa noturna de propriedade do radialista César Alencar.

E qual a influência na bossa-nova? O músico Paulo Levita, em reportagem no Jornal  A TARDE, faz referência que Alf evoluiu as harmonias do jazz  americano para uma forma mais sofisticada, no uso das dissonâncias (que vieram a ser uma marca típica da bossa nova) como na forma de expressar o canto com divisões bem singulares (o cantar com uma divisão particular é uma das marcas de João Gilberto).

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Johnny Alf, já em 1954, era o Pianista da boate do Hotel Plaza, em Copacabana, e era ouvido e admirado por Tom Jobim, João Gilberto, Jaó Donato, Baden Powell, entre outros grandes nomes, alguns já famosos, outros ainda não.

Mas por qual razão Johnny Alf é tido como precursor da bossa nova, e não integrante do dito movimento? No site WWW.almacarioca.com.br, conta-se:

De malandro, porém, Johnny Alf, tímido e quase sempre triste, tinha muito pouco. No máximo era um tanto desligado com relação a contratos e oportunidades de trabalho. Em 55, quando começava a se fortalecer o grupo que dominaria a bossa nova no Rio, ele estava de malas prontas para São Paulo, sem ao menos avisar o dono da boate Plaza, onde era estrela máxima.

 Mais adiante, outro trecho:

Em 1961, deflagrada a bossa nova, Johnny foi lembrado para tripular um de seus módulos. Primeiro, foi gravar seu Lp inicial, na RCA Victor. Com músicas como Ilusão à toa, uma das favoritas do autor: “Olha/ somente um dia longe dos teus olhos/ veio a saudade do amor tão perto/ e o mundo inteiro fêz-se tão tristonho…” Depois, um convite do compositor Chico Feitosa:

– Vai ter um negócio no Carnegie Hall daqui a alguns meses e eu queria que você estivesse nessa.

Resposta: – Tá legal.

Mas no dia 21 de novembro de 1962, quando abriram as cortinas do palco em Nova York, Johnny não estava nessa:

– Na época, fiquei aqui em São Paulo, bastante desligado deles. Enchia a cara, acordava naquela ressaca. Eu era o rei de chegar atrasado.

Não era um retrato alegre, mas em muitos pontos era um retrato fiel. A bossa nova fluía seus barquinhos e flores, preparava-se para entrar em uma fase diferente, mais exteriorizada, e Johnny estava atrasado. Não tinha regulado seus ponteiros com os do sucesso, com alguns ex-expectadores de sua música, como Tom Jobim e João Gilberto. Só voltaria ao Rio obrigado, por volta de 62.

No entanto, sua linha melódica fantástica sempre o colocou como um dos mais importantes músicos brasileiros. Alguns de seus sucessos são clássicos, como Céu e Mar, Coisas do Carnaval, Oxum, O que é amar, e, sobretudo, Eu e a Brisa, talvez seu maior clássico, eternizado na voz de João Gilberto.

Por isso, deve-se reverenciar Johnny Alf, grande músico, músico acima de tudo, e que é mais do que um mero precursor da bossa-nova. É um talento eterno da música brasileira.  Faleceu em março de 2010.

Fontes: Chega de saudade – A história e as histórias da Bossa Nova – Ruy Castro (Cia das letras); História da Música Popular Brasileira – Abril Cultural – São Paulo, 1972; site WWW.almacarioca.com.br; Jornal A TARDE de 11/03/2010.

O primeiro Show de Toquinho e Vinícius

 

Na coletânea de artigos “samba falado”, que reúne diversas crônicas musicais de Vinícius de Moraes (Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008) o “poetinha” narra como fora sua primeira apresentação com Toquinho, marcada para Salvador, no dia 7 de setembro de 1970, no Teatro Castro Alves.

Vinicius narra sua apreensão por causa do público baiano, tido como muito exigente, e pelos críticos, que já etiquetavam Vinícius como um dos “velhos da bossa nova”. Além disso, havia cerca de 5 anos que Vinícius não se apresentava ao vivo (as últimas vezes foram com Dorival Caymmi, em 1964, e com Gilberto Gil e Maria Bethânia, em 1965).

No entanto, Vinícius se surpreende com a reação do público e narra:

A moçada de Salvador cantou e curtiu conosco de maneira a surpreender os próprios baianos, pouco habituados a um entusiasmo por parte de sua gente, a não ser no carnaval. Foi maravilhosa a resposta dos jovens ao recado de amor de nossas canções, muitas das quais eu imaginava soterradas por aquela avalanche. Por isso somos tão gratos à Bahia. Ela não só nos restituiu a confiança em nossa música popular, eu não direi perdida, mas posta em cheque, como a partir daí que Toquinho começou a compor adoidado”.  

Inclusive, foi em Buenos Aires que Toquinho e Vinícius compuseram sua primeira canção em parceria, “Como Dizia o poeta…”, música terminada em julho 1970, num ônibus que vinha de Feira de Santana para Salvador. A letra:

Como dizia o poeta
Vinicius de Moraes / Toquinho

Quem já passou
Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu, ai

Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não

Não há mal pior
Do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão

Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir?
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer

Ai de quem não rasga o coração
Esse não vai ter perdão

 

Em 1971 sai o primeiro de muitos discos com composições da dupla. Como nessa época Vinicius já havia sido compulsoriamente aposentado de sua carreira diplomática e se dedicava à carreira artística, foram numerosos os shows que fizeram juntos. A dupla permaneceu junta até 9 de julho de 1980, quando faleceu Vinícius.

A avalanche, no caso, é a do iê-iê-iê

No caso, um raríssimo erro de Vinícius: como se trata de um lance de xadrez, o mais correto seria “posta em xeque”.

 

Publicado originalmente no http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em 22 de março de 2010