Essa Mulher – Elis Regina (história da canção)

“Essa mulher” é o título do álbum lançado em 1979 por Elis Regina. A música mais conhecida do álbum é “O Bêbado e a Equilibrista (João Bosc/Aldir Blanc)”, que se tornou um dos símbolos do movimento pela Anistia no fim da década de 70.

No entanto, hoje é dia de falar da canção título do álbum. “Essa Mulher”, composição de Joyce e Ana Terra, retrata as múltiplas facetas do que significa ser mulher. A letra retrata um dia na vida de uma mulher, e as suas transformações ao longo deste dia.

Pela manhã, uma senhora, cuidando da casa, dos filhos, com um quê de tristaza e resignação.

Ao entardecer, uma menina, que se arruma, se enamora, se apaixona, que se permite sonhar…

Por fim, a mulher que, à noite, seduz, bebe, enlouquece, faz estrago…

E termina, de modo aparentemente paradoxal, por agradecer ao destino por tudo aquilo que a faz infeliz… a luz, a sombra, a lama, a cruz… enfim, a complexidade e multiplicidade dos diversos mundos que habitam numa mulher.

Ana Terra

No livro “Então, foi assim?”, de Ruy Godinho, é contada um pouco da história da canção:

A tão propalada jornada dupla que algumas mulheres se submetem todos os dias, desdobrando-se entre o trabalho profissional e o doméstico, acabou virando uma bela peça musical na junção da letra de Ana Terra e da melodia de Joyce.

A letrista, escritora e produtora Ana Terra conta que escreveu a letra em uma noite em que estava supercansada. “Eu tinha passado o dia cuidando da casa e das crianças, sentia falta do Danilo [Caymmi], meu marido na época. Ele estava há vários dias longe, em excursão pelo Nordeste com o Bituca [Milton Nascimento], quando fazia parte da banda como flautista. Devia estar me sentindo como inúmeras mulheres que têm que dar conta de muitas atividades. Depois que as crianças dormiram, tomei meu banho e me olhei casualmente no espelho do banheiro. Meu rosto parecia cansado e gasto, dei um sorriso e me vi muito jovem. Minhas expressões se alternavam e tive a exata sensação de que eu era três mulheres.”

Ana editou-se no sofá com lápis e papel e começou a escrever. Essa mulher era assim. “Tive a sensação de encontrar em quem esbarro a toda hora num espelho quebrado. Exatamente a parte final da letra, que depois foi burilada e afinada até se tornar o que se tornou”, diz Ana.

O mais interessante é que essa sensação de ser múltipla a remetia à Bahia mística, a uma revelação que lhe foi feita em um terreiro de candomblé. “Quando estive no Gantois levada por Stella e Dorival [Caymmi], a Mãe Menininha jogando búzios me disse que eu tenho três Orixás de frente e todas [são] mulheres: Oxum, Iemanjá e Nanã. Acho que naquele momento em que escrevi a letra senti a presença desses três arquétipos femininos.”

Ana deitou-se no sofá com lápis e papel e começou a escrever: Essa menina, essa mulher, essa senhora/em quem esbarro a toda hora num espelho casual/é feita de sombra e tanta luz/de tanta lama e tanta cruz/que acha tudo natural… Exatamente a parte final da letra, que depois foi burilada e recebeu um início e um meio.

““Quando Danilo voltou de viagem mostrei para ele. Até então, era meu único parceiro”, afirma. “Ele começou a musicar, mas pela primeira vez achei que a música dele não tinha a ver com a minha letra. Tentei explicar isso com delicadeza dizendo que talvez só outra mulher conseguisse perceber o que eu estava sentindo.” Danilo compreendeu e superou.

Como nada acontece por acaso, no dia seguinte a cantora e compositora Joyce passou na casa deles para tratar de um assunto com Danilo, e Ana teve a intuição de que seria ela. “Timidamente mostrei a letra. Joyce a levou e no dia seguinte me ligou dizendo que a música estava pronta.”

O insight de Ana Terra de que a melodia teria de ser feita por uma mulher ganhou uma dimensão maior pelo fato de a letra ter caído nas mãos de uma compositora completa, que domina a criação de melodia e letra, que é uma violonista reconhecida internacionalmente, conviveu com Vinicius de Moraes e Tom Jobim, e transitou naturalmente por diversas tendências e escolas da música brasileira, como a Bossa Nova e o Clube da Esquina: Joyce Silveira Moreno.

Ana então nmostrou a canção a Elis Regina, que se preparava para lançar mais um LP. Elis gostou bastante da música que a escolheu como título do álbum Elis, Essa Mulher (WEA, 1979). “A gravação da música foi num clima de muita emoção. A Elis entendeu tudo”, festeja Ana Terra.

Joyce Moreno

Elis voltou a registrar a canção no LP Elis, Essa Mulher (WEA Latina, 1979), remasterizado em CD em 1988, seguido de diversos álbuns lançados posteriormente. Joyce, por sua vez, a gravou no LP Feminina (Odeon, 1980), no CD Revendo Amigos (EMI, 1994) e no CD Astronauta – Canções de Elis Regina (Pau Brasil, 1998).

A canção seguiu sendo regravada, entre outros, pela cantora Márcia, no CD Pra Machucar Seu Coração – Volume 2 (Velas, 1997); por Dori Caymmi, no CD Contemporâneos (Horipro Inc./Universal Music, 2002); por Alaíde Costa, no CD Alaíde Costa e João Carlos Assis Brasil – Voz e Piano (Lua Discos, 2006); e por Leila Pinheiro, no CD Nos Horizontes do Mundo – Ao Vivo (Biscoito Fino, 2007). Além das versões instrumentais de Nelson Ayres, no CD Perto do Coração (Atração Fonográfica, 2003) e de Marcel Powell Trio, no CD Corda com Bala (Rob Digital, 2009).

Em entrevista à Rádio Nacional, em julho de 1979, Elis Regina comenta a música “Essa Mulher”,

Eu tenho a impressão que a Joyce e a Ana conseguiram falar das artistas, conseguiram falar das mulheres artistas, das mulheres artistas casadas e mães, e mulheres de músicos de uma forma incrível…as duas são mulheres de músicos como eu, as duas tem pencas de filhos, as duas tem a jornada dupla de trabalho de ser dona de casa, ser mãe, ser esposa, ser artista, ter que batalhar e ter que segurar tudo que pinta, ter que organizar essa loucura que é você ter filho, você ter casa, você ter uma profissão e…. ao mesmo tempo, ser mulher e ser menina e ser dona de casa, ser a santa ser a mulher ser a menina…

Essa letra particularmente eu considero em termos de retrato da situação da mulher artista, da mulher que trabalha independentemente de ser artista, a mulher que trabalha, a mulher que tem a sua vida somada à do seu marido por vários aspectos – inclusive o econômico-financeiro – da batalha fora das quatro paredes do seu lar…

Acho que mais difícil… várias coisas a respeito de mulher já foram escritas – via de regra por homens – que conhecem a situação realmente, mas nunca viveram uma situação; viver na carne, passar pelas coisas é muito mais fácil quando você vai se referir ao assunto quando você tem conhecimento de causa, a coisa sai muito mais completa.

É história das duas que é a minha também e que é de uma porção de gente, é de Clara Nunes, é de uma penca de mulher que canta que trabalha que eu conheço, sabe? É uma música emocionante ela é emocionante.

De manhã cedo, essa senhora se conforma
Bota a mesa, tira o pó
Lava a louça, seca os olhos

Ah, como essa santa não se esquece
De pedir pelas mulheres
Pelos filhos, pelo pão

Depois, sorri meio sem graça
E abraça aquele homem, aquele mundo
Que a faz assim feliz

De tardezinha, essa menina se enamora
Se enfeita se decora
Sabe tudo, não faz mal

Ah, como essa coisa é tão bonita
Ser cantora, ser artista
Isso tudo é muito bom

E chora tanto de prazer e de agonia
De algum dia qualquer dia
Entender de ser feliz

De madrugada, essa mulher faz tanto estrago
Tira a roupa, faz a cama
Vira a mesa, seca o bar

Ah, como essa louca se esquece
Quanto os homens enlouquecem
Nessa boca, nesse chão

Depois, parece que acha graça
E agradece ao destino aquilo tudo
Que a faz tão infeliz

Essa menina, essa mulher, essa senhora
Em que esbarro a toda hora
Nos espelhos casuais

É feita de sombra e tanta luz
De tanta lama e tanta cruz
Que acha tudo, natural

Milagres do Povo. Uma homenagem de Caetano a Jorge Amado.

“Quem é ateu, e viu milagres como eu”… Desta maneira começa a canção “Milagres do Povo”, de Caetano Veloso. A canção foi lançada em 1985, fazendo parte da trilha de abertura da série “Tenda dos Milagres”, exibida na TV Globo, uma adaptação televisiva para o romance de Jorge Amado, publicado pela primeira vez em 1969.

Caetano conta um pouco da história numa entrevista que deu para o Jorna El País:

A frase sobre ser ateu e ter visto milagres foi dita por Jorge Amado. O Pasquim quis entrevistá-lo e queria que eu estivesse presente, ajudando a fazer perguntas. Como eu não podia estar no Rio na data marcada, eles me pediram as perguntas por escrito para que fossem lidas para Jorge. Eu perguntava que significado propriamente religioso tinha o candomblé em sua vida, já que ele era Obá de Xangô. Ele respondeu: “Não sei; feliz ou infelizmente, ao contrário de [Dorival] Caymmi, eu não tenho nenhuma fé. Sou ateu materialista convicto. Mas vi muitos milagres do candomblé. Milagres do povo”. Quando me pediram pra fazer uma música para a versão televisiva de Tenda dos Milagres, citei a frase logo na abertura da música. E passo a falar dos “deuses sem Deus”, que “não cessam de brotar nem cansam de esperar”.

Foi daí que nasceu a canção.

É importante lembrar que Jorge Amado foi deputado pelo Partido Comunista pelo estado de São Paulo, e autor da Emenda 3.218 que inseriu no texto da Constituição de 1946 o §7° do art. 141 que declarava e reconhecia a liberdade de crença: 7º — É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.

Na entrevista ao Pasquim, Jorge Amado afirma: Eu sou materialista, não tenho nenhuma religião, mas meu materialismo não me limita”

A música, quando faz referência aos “milagres do povo”, faz um elogio claro e manifesto às religiões de matriz africana, que vieram ao Brasil junto com o povo negro escravizado.

A canção, que faz referência a diversos Orixás (Xangô, Obatalá, Oxum, Iemanjá e Iansã), para além da homenagem à religiosidade de matriz africana e que ganhou identidade própria no Brasil, faz uma homenagem ao povo, verdadeiro artesão dos miagres. Os “deuses sem Deus” são uma afirmação de que todos somos deuses, mesmo sem acreditar numa divindade.

O milagre pode ser dança, sexo e glória, e que mesmo vindo ao Brasil e tendo conhecido a crueldade de frente, conseguiu se erguer para além da dor, e produzir milagres. Estes milagres estão na presença negra na cultura brasileira, devidamente arraizados e enraizados como milagres do povo.

Uma bela homenagem a Jorge Amado, que serviu de inspiração para a canção.

https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-07/caetano-veloso-minhas-expectativas-sobre-o-brasil-nao-sao-tanto-a-esperanca-sao-mais-a-responsabilidade.html

“MANDE PARAR ESSA CARAVELA”, ou a primeira vez que Tom Zé foi a São Paulo, a convite de Caetano Veloso

Tom Zé sempre foi um artista surpreendente, seja nos shows, seja nas entrevistas. Luiza França numa obra sobre o artista, faz referência a uma tênue linha na qual o artista se equilibra, na qual é possível perceber duas impressões:

a) uma incrível capacidade de improvisação e interação;

b) a de observar uma esquete cuidadosamente planejada.

Com efeito, cada show de Tom Zé tem movimentações, elementos cênicos e histórias contadas, tudo isso aliado a um pensamento criativo rápido, capaz de compatibilizar atos pré-programados em contextos diversos com fluidez.

Mas esta característica de Tom Zé se revelava antes mesmo de tornar-se um artista conhecido, ou o “último tropicalista”. Num capítulo de Verdade Tropical, livro autobiográfico que lançou em 1997,  Caetano Veloso descreve o dia em que Tom Zé trocou Salvador por São Paulo para participar do tropicalismo. Leia o trecho logo abaixo.

[Em 1967], numa de minhas idas à Bahia — eu não passava mais de dois meses sem ir a Salvador — convidei Tom Zé para ir para São Paulo comigo. Tom Zé tinha sido nosso companheiro dos shows do Teatro Vila Velha. Quando comecei a frequentar os meios artísticos e boêmios de Salvador, ele já era uma figura conhecida dos estudantes universitários. Assim como Capinan — com quem, de resto, ele tinha colaborado em alguma peça do braço baiano do Centro Popular de Cultura (CPC) —, Tom Zé tinha prestígio entre os artistas que eu conhecia: as pintoras Sônia Castro e Lena Coelho, a dançarina Laís Salgado, os professores Paulo e Rena Faria, todos me falavam dele. Quando afinal nos conhecemos, ele me cativou pelo seu ar de sertanejo, por suas observações pseudomal-humoradas expressas num sotaque rural que mais realçava do que escondia a elegância clássica de seu português culto e correto. Seu físico de duende mameluco, de personagem de lenda cabocla confirmava sua condição de pessoa especial. Tom Zé tem uns olhos muito vivos, como que a provar que uma intensíssima concentração de energia é a razão de ele ser tão miúdo. Essas indicações de excepcionalidade eram em parte confirmadas por suas canções satíricas feitas em tom deliberadamente folclórico. Consistindo em longas crônicas da vida urbana de Salvador e em retratos de personagens típicos ou de exceção, essas composições de sua primeira fase mostravam-se a um tempo atraentes e insatisfatórias aparentemente pela mesma razão de não estarem em sintonia com os interesses estéticos da bossa nova. Sua inteligência e originalidade pessoal asseguravam que sua produção não fosse simplesmente antiquada. (…)

Inicialmente, no entanto, ele resistiu muito ao meu convite. Lembro-me de uma conversa nossa perto do Cine Guarany (atual Glauber Rocha), na praça Castro Alves, em que ele me dizia que a ideia era uma loucura. Eu e seu desejo profundo de assumir seu destino de músico o convencemos. A simples viagem de avião com Tom Zé de Salvador para São Paulo já deu o tom do que seria sua atuação. O Caravelle da Cruzeiro do Sul — aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de [Tom] Jobim ou um prédio de [Oscar] Niemeyer —, voando em céu azul, parecia que ia explodir com a vibração da presença de Tom Zé. E isso chegou a exteriorizar-se até o conhecimento da aeromoça e quem sabe de outros passageiros. Não que ele se mostrasse nervoso por estar voando — embora sua ostentação de estranheza em relação a tudo o que se passava no avião indicasse (talvez enganosamente) que ele nunca tinha voado —, mas seu sotaque e suas expressões arcaicas pareciam agredir a realidade tecnológica da aviação e o conforto burguês dos “serviços” de consumo: ele estava me dizendo — e dizendo a si mesmo e ao mundo — que ia, sim, para São Paulo, mas que permaneceria irredutível quanto a certos princípios e certos traços de caráter. Ele lidava de modo inventivo — e bizarramente elegante — com o medo da mudança de situação. Referia-se ao avião em que estávamos como “essa caravela”, indicando intimidade e estranheza ao mesmo tempo, e, por trás dessa ironia, comentando o sentido de partida para outro continente que essa viagem tinha para ele.

Quando a aeromoça se aproximou para perguntar o que queríamos beber, ele respondeu cortantemente: ‘Cachaça‘. Havia humor na obviedade de seu conhecimento de que não deviam servir cachaça a bordo. Mas a sinceridade de seu ar desafiador — embora não impolido — levava a pensar em como era ridícula a pretensão de refinamento da freguesia desses serviços (não havia, por exemplo, uma só aeromoça preta em qualquer companhia de aviação brasileira) tornados amorfamente “internacionais”, e em como Tom Zé estava disposto a não contemporizar com isso. À esperada resposta da aeromoça — “Desculpe, não temos” — ele começou a desapertar o cinto de segurança e, fazendo menção de levantar-se, disse — dirigindo-se a mim, não a ela: ‘Então eu vou-me embora. Mande parar essa caravela’.

A verdade com que essas palavras foram ditas assustou-nos, a mim e a moça, pois, embora soubéssemos impossível obedecer a tão absurda ordem, sentíamos, na determinação com que esta fora dada, que ela se imporia de alguma maneira. Claro que Tom Zé não criou um caso dentro do avião, mas tampouco desconcertou-se ou deixou seu movimento se retrair: ele, que parecera por um instante que ia sair dali custasse o que custasse, agora desistia educadamente irritado, como quem achasse inútil o gesto, mantendo total independência até o fim. Tudo isso sem que se perdesse o humor distanciado de quem diz ao mesmo tempo que tudo é uma brincadeira — e de quem sabe que tem charme.

Mais tarde, numa entrevista à Revista “E”, Caetano afirmou que Tom Zé vinha tornou-se não apenas o “Último Tropicalista”, mas também o tropicalista mais radical de todo o movimento. “Ele, estudando o samba, sintetizou tudo o que sugeríamos em nossas espalhafatosas letras paródicas e colagísticas“.

Além de ser do sertão (todos nós outros éramos do recôncavo, nascemos colados ao litoral), ele estudara nos seminários livres de música. Assim, sua dicção, sua perspectiva crítica e sua ambição experimentadora teriam de mostrar-se mais concentradas e consequentes. Já em 1968, quando as explosões tropicalistas tinham se dado (com Alegria, Alegria, Domingo no Parque e meu primeiro LP, que continha Tropicália), achei que o panorama da canção popular já seria acolhedor da originalidade do estilo criativo de Tom Zé. Tenho muito orgulho de não ter errado

Fontes:

VelosoCaetano, 1942. Verdade Tropical / Caetano Veloso. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997

França, Luíza. Tom Zé [recurso eletrônico] : estudando o estranho- Belo Horizonte, MG: Fafich/Selo PPGCOM/UFMG, 2020

https://www.sescsp.org.br/todos-os-tons

As mais tocadas e as mais gravadas de Chico Buarque

No dia 19 de junho de 1944, Chico Buarque nasceu. Donos de uma das carreiras mais longevas e bem sucedidas da música popular brasileira, Francisco Buarque de Holanda, ao completar 80 anos, certamente não imaginava que o compositor que surgiu para o mundo em 1966, com o sucesso A Banda, seria a grande referência que é hoje.

Conhecido pelas suas múltiplas facetas como artista, desde as canções de protesto dos anos 60/70, as canções com eu-lírico feminino, os sambas e choros, as parcerias com Tom Jobim (e com tantos outros – destaque para Edu Lobo e Francis Hime), as canções com nomes de mulher, os livros escritos (Budapeste para mim é o melhor deles), seu heterônimo Julinho de Adelaide, enfim… fiquei curioso sobre quais são as músicas mais executadas de Chico Buarque hoje, e também quais são suas músicas mais gravadas.

Para fazer esta consulta, o ECAD contém as informações das músicas mais executadas de Chico (algumas das quais já foram objeto de postagem no blog). São elas:

As mais tocadas:

  1. “Iolanda” (Chico Buarque / Pablo Milanés) – Interessante que a canção mais executada seja uma versão;
  2. “A Banda” (Chico Buarque) – O primeiro grande sucesso, vencedor do festival de 1966;
  3. “João e Maria” (Chico Buarque / Sivuca) aqui ;
  4. “Folhetim” (Chico Buarque) – Imortalizada na voz de Gal Costa;
  5. “Anos Dourados” (Tom Jobim / Chico Buarque) – Uma história curiosa, em que a letra demorou para sair;
  6. “Cotidiano” (Chico Buarque) – Todo dia ela faz tudo sempre igual…
  7. “Quem Te Viu Quem Te Vê” (Chico Buarque) – Um dos melhores sambas de Chico;
  8. “Apesar de Você” (Chico Buarque) – Primeira música de Chico censurada, virou símbolo contra a ditadura militar;
  9. “Samba do Grande Amor” (Chico Buarque) – Um samba bonito e triste;
  10. “Roda Viva” (Chico Buarque)… Terceiro lugar no Festival da Record em 1977;

As músicas de Chico mais regravadas:

Músicas de Chico mais regravadas

  1. “Gente Humilde” (Vinicius de Moraes / Chico Buarque / Garoto)
  2. “Retrato em Branco e Preto” (Tom Jobim / Chico Buarque)
  3. “Beatriz” (Chico Buarque / Edu Lobo) aqui
  4. “Anos Dourados” (Tom Jobim / Chico Buarque)
  5. “O Que Será” (Chico Buarque) e “João e Maria” (Chico Buarque / Sivuca)
  6. “O Cio da Terra” (Chico Buarque / Milton Nascimento)
  7. “Sabiá” (Tom Jobim / Chico Buarque)
  8. “Carolina” (Chico Buarque)
  9. “Quem Te Viu Quem Te Vê” (Chico Buarque)
  10. “Valsinha” (Vinicius De Moraes / Chico Buarque) e “Todo o Sentimento” (Cristóvão Bastos / Chico Buarque)…

E vou fazer aqui uma lista das 10 músicas de Chico que considero mais marcantes, no âmbito pessoal. Uma escolha meramente afetiva, sem nenhuma pretensão de ser uma lista melhor ou definitiva.

  1. Meu caro amigo (Chico Buarque/Francis Hime)
  2. Todo o Sentimento (Cristóvão Bastos / Chico Buarque)
  3. Futuros amantes (Chico Buarque)
  4. Noite dos Mascarados (Chico Buarque)
  5. Carolina (Chico Buarque)
  6. Valsinha (Chico Buarque/Vinicius de Moraes)
  7. Trocando em Miúdos (Chico Buarque/Francis Hime)
  8. O meu amor (Chico Buarque)
  9. Vida (Chico Buarque)
  10. Mar e Lua (Chico Buarque)

Enfim, é uma homenagem a um dos grandes compositores brasileiros de sempre, ao fazer 80 anos…

Rapte-me Camaleoa (De Caetano para Regina Casé em 1981)

A figura do camaleão é sempre associada ao mimetismo, à sua capacidade se se camulflar de acordo com o ambiente, com a temperatura, com a iluminação e pelo seu próprio estado emocional. Quando nos referimos a pessoas, a referência ao camaleão termina sendo uma figura de linguagem relacionada com a capacidade de mudança e de adaptação.

E foi a figura da Camaleoa que Caetano Veloso homenageou, no álbum “Outras Palavras” (1981), a atriz Regina Casé, na canção “Rapte-me Camaleoa”.

Conta Tom Cardoso, na obra biográfica “Outras palavras: Seis vezes Caetano”, diz que Caetano conheceu – e deslumbrou-se – com Regina Casé quando a viu encenando a peça “Trate-me Leão”, da Cia teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone (formada por diversos atores que se tornaram posteriormente muito famososo, como Evandro Mesquita, Luiz Fernando Guimarães, Patrícya Travassos, entre outros). A amizade entre ambos transfornou-se num namoro fugaz (com o consentimento da esposa de Caetano, Dedé Gadelha, já que a relação de ambos era fundada no amor livre).

A letra é, ao mesmo tempo, um convite e uma manifestação de desejo, reveleda na última frase, adapte-me ao seu ne me quitte pas. Na letra da canção, a ideia da metamorfose, da adaptação própria do camaleão está sempre presente

Regina afirnou, em 2004: “eu e a Dedé éramos muito amigas, e continuamos sendo até hoje(…) Aquilo era um comportamento tão normal, no mundo inteiro”

A canção é uma declaração de afeto para Regina Casé, que Caetano namorou no início da década de 1980. “Ela se chamava ‘Camaleoa’ em uma peça (‘Aquela Coisa Toda’). Namorei ela nessa época rapidinho, um tempinho curto. Mas a adoro, sempre. É bem feitinha a letra. E tem de interessante o verso ‘rapte-me, adapte-me, capte-me, it’ s up to me’, que traz uma rima bilíngue“, disse em conversa com o escritor Eucanaã Ferraz…

A amizade deles dura até hoje. Regina Casé fez uma participação no filme de Caetano, Cinema Falado. Numa entrevista ao programa Roda Viva, falou sobre a amizade:

Eu estava trabalhando, ele foi assistir a uma apresentação nossa e gostou muito. Depois, foi conversar com a gente no camarim, daí a gente foi jantar e ficou amigo. Logo assim. Mas eu acho que foi muito por causa do trabalho. Se não fosse o trabalho, talvez no Rio a gente viesse a ser amigo, mas o que precipitou… E isso criou uma amizade já com muita qualidade, assim, legal.

Em 2014, Caetano fez uma postagem homenageando Regina Casé:

Quando conheci Regina, ela estava no palco. Eu, na plateia. Fiquei imediatamente apaixonado por sua personalidade e assombrado com seu talento. O Asdrúbal Trouxe o Trombone era um grupo de jovens fazendo o teatro viver. Dos trabalhos que ela fez ali à série de programas na TV, passando por atuações em filmes, peças e novelas, há uma linha coerente. Ela é uma das criadoras mais fortes que o Brasil produziu. O modo de tratar uma personagem em “Trate-me, Leão” já continha os gestos de Central da Periferia ou Esquenta! Não é por acaso que ela incomoda os eternos reaças colonizados. Filha de Geraldo e neta de Ademar, Regina é um farol na cultura popular brasileira. Celebro seu aniversário como um marco na minha vida pessoal e na história do Brasil” 

Claudya. A “rival” de Elis Regina criada por Ronaldo Bôscoli.

“Na briga entre o mar e o rochedo, sobra sempre para o marisco”. Essa frase reflete bem  a história da Cantora Cláudya, que, sem querer, foi posta, aos 17 anos, na condição de rival de Elis Regina, então cantora já consagrada, vencedora de festivais e âncora de um dos programas de maior audiência na época, “O fino da bossa”. 

Quem tramou essa rivalidade foi Ronaldo Bôscoli (que, ironicamente, viria a se tornar marido de Elis no futuro), que juntamente com Miele, pensaram num título para um show de Cláudya, ainda iniciante, cujo título seria:  “QUEM TEM MEDO DE ELIS REGINA?” 

Claudya e Elis, em foto do blog de Claudya

A Cantora Claudya, numa entrevista à Revista Época,  esclareece que se recusou a fazer tal show, se o título não fosse modificado. Diz ela:  

ÉPOCA – Você e a Elis sempre foram apontadas como rivais. Até que ponto isso era verdade? 
Claudya –
 Eu nunca vi a Elis como rival. Via como uma ótima cantora. O que aconteceu foi que o Ronaldo Bôscoli (produtor musical), na década de 60, me chamou para fazer um show chamado “Quem tem medo de Elis Regina”. Fui conversar com ele e disse que não podia fazer esse show. Eu queria fazer um show para divulgar o disco que eu estava lançando. Acho que ele tinha alguma mágoa com a Elis. Nunca entendi qual era o objetivo dele. Mas o fato foi que a Elis ficou sabendo e me convidou para participar do Fino da Bossa, programa que ela apresentava na Record. Ela me questionou no palco. Eu respondi que não tinha medo dela, só admiração, e que havia recusado o convite do Bôscoli. Mesmo assim, eu fui vaiada durante cinco minutos pelo público que estava no Teatro Record. Tive que esperar as vaias pararem para poder cantar. No dia seguinte, a imprensa toda acabou comigo. Nem fizeram questão de esclarecer que o show havia mudado de nome, passou a se chamar “Claudya não se aprende na escola”, título tirado de uma das músicas que estava no disco. Passei por maus pedaços. Foi muito feio o que fizerem comigo. Eu paguei uma pena muito grande dentro da música brasileira. Até hoje não me sinto inserida nela. 

ÉPOCA – Mas você acha que a Elis a convidou para o programa apenas para tirar satisfação?

Claudya –Não sei o que passou na cabeça dela. O Fino da Bossa era um dos programas mais assistidos do Brasil e o que aconteceu me prejudicou muito. Eu era uma menina, tinha apenas 17 anos. Estava começando minha carreira. Era arrimo de família e precisava dar assistência a minha família. Eu passei fome. Nunca falei isso antes, mas não vejo mais motivos para esconder. Lembro minha mãe indo à TV Record pedir para o Marcos Lázaro, meu empresário na época, esclarecer tudo, mas ele não fez nada para me ajudar. Até hoje os fãs de Elis têm raiva de mim.

No seu blog pessoal, ela aprofunda mais: 

Muitas pessoas me perguntam até hoje se esse show aconteceu e não sabem que não aconteceu com esse nome e sim com “CLAUDYA NÃO SE APRENDE NA ESCOLA”.

Fui muito prejudicada, todas as portas foram fechadas e eu tive que fazer um exílio forçado.

Fui questionada ao vivo pela própria Elis no programa, e mesmo expressando meu descontentamento explicando o que havia acontecido  que eu havia me recusado a fazer o espetáculo com esse nome, no dia seguinte em letras garrafais a mídia anunciava:

Claudya aproveitadora, Claudya imitadora da Elis, Claudya brigou com Elis e etc.

Recentemente a jornalista Regina Echeverria escreveu uma grande mentira em seu livro “Furacão Elis” dizendo que eu empurrei a cantora no poço da orquestra.

Esta senhora não me pediu sequer autorização para colocar meu nome no livro e sequer me entrevistou para saber da veracidade dos fatos

Eu tinha muito medo de falar alguma coisa na época pois em não falando nada me acusaram de coisas que eu jamais fiz e também porque tinha muita gente envolvida nessa trama. Pessoas que estavam doentes na época que já faleceram que não estão mais aqui para se defenderem.

Que poder eu teria? Uma menina de 17 anos vinda de uma cidade do interior, contra a grande e maior cantora do Brasil, que tinha um império a seus pés, que tinha a televisão Record, que comandava o maior programa da televisão brasileira.

Foi lamentável, foi triste muito triste mesmo, porque eu era apenas uma menina que queria vencer, que queria galgar,que queria saltar os muros que queria cantar, cantar prá viver viver a cantar.

E sinto que até hoje sou tolhida desse sentimento divino do poder de doar cantando a tantas pessoas que precisam do meu cantar.

Esse é o problema do rochedo com o mar. Errou Bôscoli, que na época tinha uma mágoa pessoal de Elis Regina (que ele revelou na biografia Eles e Eu); errou Elis Regina, que de modo absolutamente passional e sem dar qualquer chance de defesa à então adolescente Claudya, promoveu o seu linchamento público em horário nobre. 

O episódio foi o seguinte:

Ronaldo Bôscoli e Miele organizaram um show para Claudya com o título de “Quem Tem Medo de Elis Regina?” A cantora não quis e o nome foi modificado para “Claudia Não se Aprende na Escola”. Pouco tempo depois, quando compareceu para cantar no “Fino da Bossa (apresentado por Elis)”, foi tratada com crueldade por Elis Regina logo na apresentação.

“Agora, eu quero apresentar a vocês uma menina que começou a carreira aqui no meu programa. O nome dela é Maria das Graças e ela quer agora fazer um show no Rio de Janeiro chamado ‘Quem Tem Medo de Elis Regina?’” Claudya foi vaiada “por cinco minutos” pelo público.

E o marisco, Claudya, levou anos para conseguir erguer sua carreira, abatida no nascedouro. Fez relativo sucesso nos anos 70, mas sua suposta rivalidade com Elis sempre será lembrada.  

Fontes: http://claudya2010.blogspot.com.br/2010/02/claudya-e-elis.html

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI255002-15220,00.html

terça 22 janeiro 2013 10:58 , em “Rivalidades” Musicais

“Bicho” (1977) – um dos (muitos) cancelamentos de Caetano. A briga com a imprensa e a patrulha ideológica

O cancelamentos em redes sociais no Século XXI é um fenômeno aparentemente inexorável. Já se fala em “cultura do cancelamento”, como uma espécie de boicote coletivo e difuso a partir de determinada atitude ou opinião expressada; o cancelamento, pois, é uma manifestação pública de censura a uma empresa, artista, atleta e celebridade (ou subcelebridades) em geral.

Esta execração pública, que hoje é difusa e se manifesta pelas redes sociais, era promovida no Século XX pela mídia, quando não concordava ou criticava o posicionamento de determinado artista.

Este fenômeno ocorreu com Caetano Veloso, em 1977, quando ele lançou o disco “Bicho”.

O disco contém algumas canções que se tornaram verdadeiros clássicos de Caetano, como “O Leãozinho” “Tigresa” e “Alguém cantando”. No entanto, provocou uma verdadeira saraivada de críticas da imprensa, que cobrava de Caetano uma postura politicamente mais engajada.

O contexto da época: Em 1977, o Brasil ainda estava sob o regime militar. O presidente era Ernesto Geisel, que prometia uma chamada “abertura lenta, gradual e segura” como forma de transição para um futuro governo democrático.

Não obstante, em 1º de abril de 1977, o Brasil acordou sem Congresso Nacional. O presidente Geisel se valeu do Ato Institucional 5 (AI-5), que não era usado desde 1969, para colocar o Parlamento em recesso, anunciando, no mesmo mês, um conjunto de medidas conhecido como Pacote de Abril, composto por uma emenda constitucional e seis decretos, tudo isso para assegurar maioria na Câmara e no Senado à ARENA, partido do governo.

Neste contexto, o álbum teve uma repercussão negativa justamente por ser considerado “alienante”, pois sua proposta era dançante e sem engajamento político. Numa reportagem de Claudia Arrigoni, no Jornal do Brasil em, 1977, Caetano afirmou:


Passei 12 dias na Nigéria curtindo o Festival de Arte Negra. Agora vou lançar um disco para todo mundo dançar. Eu acho bacana essa coisa de dançar, gosto muito. Talvez eu não seria capaz de fazer esse tipo de música muito bem, mas pensando bem, esse não é um disco para dançar, só feito por alguém que gosta de dançar. Entendeu? Na África, as pessoas dançam e isso é bacana.

O show, em consequência do álbum se chamava Bicho Baile Show, numa clara alusão de que seria um espetáculo para as pessoas dançarem, no qual Caetano seria acompanhado da Banda Black Rio.

Mas a repercussão não foi positiva, como conta Paulo César de Araújo no Livro “Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar

O caso Caetano Veloso é exemplar. Em 1977- ano em que os militares comemoravam os “13 anos da revolução” e que a sociedade civil protestava, o cantor lançou o LP “Bicho”, que indicava uma opção preferencial pelo prazer e trazia na faixa de abertura um quase manifesto: “Deixa eu dançar / pro meu corpo ficar odara…” Palavra do dialeto ioneba (africano), odara, segundo o próprio Caetano, significa “estar bem”, “sentir-se feliz.

Nas entrevistas à imprensa o artista dizia que não tinha maiores interesses por assuntos políticos e reiterava que aquele era um disco “de quem gosta de música para dançar”. Aí é que estava o problema. “Dançar, nesses tempos sombrios?”, indagava a jornalista Ana Maria Bahiana. Um outro jornalista, indignado, afirmava que Caetano “não tinha o direito de pôr uma roupa colorida e sair brincando por aí, dizendo que está tudo bem, isso é oba-oba inconsequente

O ápice do patrulhamento ocorreu durante a temporada do espetáculo Bicho Baile Show, no qual Caetano era acompanhado pela Banda Black Rio – grupo carioca que propunha a fusão do samba com elementos do jazz, soul e funk. A jornalista Margarida Autran dizia que “o artista não pode alienar-se da realidade que o cerca” e que por isso Caetano Veloso não tinha o direito “de não ler jornais, de declarar publicamente nada saber do que se passa em termos políticos – no Brasil e no exterior e, consequentemente, de apresentar um espetáculo como o que está em cartaz no teatro Carlos Gomes, irresponsavelmente ‘feito para dançar’. E que, afinal, nem para dançar serve”. Ela concluía afirmando que ao seguir o rastro do sucesso da Banda Black Rio, o show de Caetano não passava de uma “oportunista e malsucedida incursão ao alienado clima que hoje embala os subúrbios cariocas”.

Vale a pena citar trechos de algumas reportagens sobre o tema:

Luís Carlos Cabral – Revista POP (1977) – Não acredito que Bicho gerasse tanta controvérsia se tivesse sido editado em época de maior silêncio geral. A geral, porém, se agita, e precisa de solidariedades unânimes. Brasil à parte, o poeta Caetano Veloso continua exercitando a sua fina sensibilidade,

Maria Helena Dutra (Jornal do Brasil) – “Afastemos, porém, e outra vez, das ciladas de discutir e refletir sobre conteúdos porque afinal esse show foi feito para esquecer, já que não atinge mesmo sua desejada finalidade de ‘feito para dançar'(…) Parodiando o exímio artista da palavra, o sempre gostável e também senhor Caetano Veloso em sua música Tigresa: ‘As garras do artista Caetano nos marcaram o coração. Mas as besteiras de menino que ele disse, não’.”

Jary Cardosos (Folha de São Paulo)O baiano não esperava uma agressividade tão grande por parte dos críticos em relação às suas propostas dançarinas (‘O certo é dançar’, diz uma de suas músicas) e ‘alienantes’ (o que ele não concorda).

Esta Patrulha ideológica contra Caetano tinha na Canção Odara seu símbolo maior: uma canção livre, leve e solta, certamente inspirada na viagem que Caetano e Gil fizeram a Lagos, na Nigéria, para participar do II Festival Mundial de Artes e Cultura Negra (Festac). Então, se trata de uma música para cima, alto-astral, que cultua o prazer. Caetano, sobre a canção, falou ao Jornal do Brasil : “Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de que Odara era a mais bonita das canções que tinha feito ultimamente. Até hoje, ainda não encontrei bons argumentos em contrário

Mas a patrulha ideológica foi implacável: caetano, preso durante a ditadura e exilado, não teria o direito de cantar a felicidade. Teria um dever de engajamento. Luciana Xavier de Oliveira, no seu escrito “Disputas ideológicas, cultura negra e jornalismo cultural: a crítica musical carioca e os bailes de soul dos anos 1970”, pondera:

O debate em torno das patrulhas ideológicas se refere a um momento muito particular dos anos 1970, em que intelectuais e formadores de esquerda deliberadamente passaram a cobrar uma arte engajada, criticando manifestações que não se enquadrassem em um viés de contestação política. As patrulhas ideológicas estabeleciam claramente uma distinção de valor entre “músicas para dançar” e “músicas para pensar”. Caetano denunciava os cadernos de cultura dos principais jornais e revistas do país, que seriam dominados por uma esquerda repressora representada por críticos que pretendiam policiar a música popular no Brasil. Se os próprios integrantes da MPB poderiam ser criticados por produzir canções e discos que privilegiassem a festa, a alegria, o ritmo e a dança, o que dirá de todo um movimento periférico, popular, baseado em bailes, nos quais se ouvia e se dançava música americana? Risério (1981, p. 32) ainda complementa: “Pior ainda é que esses setores supostamente ‘progressistas’ falavam em nome das massas oprimidas do país exatamente para condenar uma das manifestações estéticas e sociais mais vivas dessas mesmas massas oprimidas.

Paulo César de Araújo prossegue:

Como se vê, mais do que a música em si, os críticos analisavam as atitudes, as opiniões, os posicionamentos políticos de Caetano e Gil. Contra isso insurgiu-se Caetano Veloso numa polêmica entrevista ao Diário de São Paulo. Ali ele afirmou que os cadernos de cultura dos principais jornais e revistas do país eram dominados por uma “esquerda medíocre, de baixo nível cultural e repressora” que pretendia policiar “essa força que é a música popular no Brasil”. E Caetano exemplificava citando nominalmente quatro críticos musicais: Tárik de Souza, José Ramos Tinhorão, Maurício Kubrusly e Maria Helena Dutra, que, segundo ele, distribuíam estrelinhas a discos e shows “fingindo que estão fazendo um trabalho da revolução operária, e se acham no direito de esculhambar com a gente, porque se julgam numa causa nobre; quando não tem nobreza nenhuma nisso“.

Para Caetano, seus críticos não tinham autoridade para questionar nenhuma atitude dele porque “são pessoas que obedecem a dois senhores: um é o dono da empresa, o outro é o chefe do partido” e que por isso eles se expressariam numa “linguagem completamente esquizofrênica”, de difícil assimilação para o leitor.

Ninguém entende os artigos que os imbecis escrevem porque é uma mistura de Roberto Marinho e Luiz Carlos Prestes.” Chamando a crítica militante de “canalha”, Caetano dizia que “se eles não se tornarem uma União Soviética e mandarem me matar, não conseguirão jamais nada comigo, a não ser que eles ganhem os tanques. Se eles tiverem os tanques nas ruas, nas mãos deles, aí eles poderão me impedir em alguma coisa. Fora isso, é impossível” porque “eles não são de nada. É uma canalha que eu digo que vou acabar, que a gente já acabou, já matou, são defuntos que fingem que estão vivos”.

Na contramão da crítica, Tarso de Castro afirmou em 31 de julho de 1977: Mas é realmente formidável que agora se esteja vivendo o repeteco das perseguições a Caetano Veloso. Ah, que belos críticos temos: se não se especializaram em música são totais admiradores do próprio fascismo. (…) Falemos de uma coisa boa: ‘Bicho’, de Caetano Veloso, é um disco lindo, limpo, de uma correção assustadora, irritante“.


Mais tarde, em 1991, Caetano Veloso, em reportagem de Marcia Cezimbra no Jornal do Brasil, apontava: Odara é uma confissão de namoro com as discotecas. Eu me sentia bem em me aproximar do movimento Black Rio que surgia na época, quando começaram os grandes bailes funks. Tinha voltado de uma excursão na África com o Gil, onde tive contato com a juju music da Nigéria. É um disco histórico, porque traz pela primeira vez a juju music para o Brasil em Two naira fifty kobo, que era o preço que a gente mais ouvia na Nigéria e o apelido do motorista que nos acompanhava. Fiz a música pensando no motorista. Tem Um índio, com uma levada reggae. Tem Leãozinho, deslumbrante. Uma vez fui cantar numa assembleia não sei de quê na Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Ia fazer um número para animar as pessoas, igual ao dessas, cantoras que cantam para os soldados na guerra, e recebi um bilhete de que levaria porrada se cantasse Leãozinho. Na hora ia cantar, mas fiquei com medo. Nem sabia direito que manifestação era aquela. Foi um amigo que me pediu para ir. Tem Tigresa, que cita na letra a discoteca Dancin’ Days, uma boate do Nelson Motta que eu adorava. Aliás, eu encontrava muito desses críticos de esquerda dançando nas discotecas.”

O tempo terminou fazendo com que Bicho, a despeito de todas as críticas, permanecesse. Não sei se poderia ser considerado propriamente um disco dançante. muitas de suas canções são canções para serem ouvidas. Talvez “Odara” e “Gente” seriam as músicas mais dançáveis. Mas, por outro lado, clássicos permaneceram, e “Leãozinho”, “Tigresa” , “Alguém Cantando” permanecem no repertório dos shows de Caetano até hoje.

Fontes:

Paulo César de Araújo: Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar Record, 2010  

Agência Senado (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/03/31/ha-40-anos-ditadura-impunha-pacote-de-abril-e-adiava-abertura-politica#:~:text=H%C3%A1%2040%20anos%2C%20ditadura%20impunha%20Pacote%20de%20Abril%20e%20adiava%20abertura%20pol%C3%ADtica,-Compartilhe%20este%20conte%C3%BAdo&text=No%20dia%201%C2%BA%20de%20abril,colocar%20o%20Parlamento%20em%20recesso.)

Luciana Xavier de Oliveira – Disputas ideológicas, cultura
negra e jornalismo cultural: a crítica musical carioca e os bailes de soul dos anos 1970

https://www.ibahia.com/caetano80anos/caetano-80-anos-veja-criticas-de-cinco-albuns-do-icone-da-mpb

 

A Massa – o grande sucesso do festival MPB80 Raimundo Sodré em parceria com Jorge Portugal

O ano: 1980. A Rede Globo resolve reeditar os festivais da canção, com o denominado MPB 80. Um cantor baiano contagia o público com sua canção, e fica classificado em terceiro lugar. A composição até hoje ecoa… Raimundo Sodré, cantando a sua música, feita em parceria com Jorge Portugal. Seu nome: A MASSA. 

Quando se ouve a introdução, universal e regional, com samba-de-roda e de chula, já se percebe tratar-se de uma canção diferenciada.

A massa é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, a nossa dor é a dor do menino acanhado, do menino bezerro que vira massa no curral do mundo. A mão que amassa a comida, também molda e amassa “a massa dos homens normais”. 

A canção tem uma série de interpretações, desde a crítica social dos meninos marcados que amassama a mandioca em casas de farinha, bem como a desindividualização do homem, que como jerimum amassado, é colocado como parte de uma massa, massa de meninos…

Essa dor se revela num gemido calado, que salta aos olhos, mas parece não haver alternativa a viver nesse moinho de homens, que amassam e são amassados, e a massa amassada é mansa (reparem na aliteração da massa que amassa e mansa é amassada), e que, quando se lembra da massa da mandioca, o que acontece???   

Raimundo Sodré, numa entrevista ao site http://aqueimaroupa.com.br, disse, sobre a canção e sua apresentação no maracanãzinho, em 1980: : 

– Ver aquele mundo de gente cantando A Massa foi muito especial pra mim, lá na frente meu pai pulando e cantando, segurando as bolsas de todo mundo e vibrando comigo! Ficamos em terceiro lugar, atrás de Oswaldo Montenegro e Amelinha. A música já era um verdadeiro sucesso, tocava em todas as rádios do país”, pontua Sodré.

Sobre a inspiração que o levou a compor a música “A Massa”, Raimundo Sodré conta que estava assistindo a um telejornal, ao lado da sua então esposa, a francesa Danielle, e viu uma notícia sobre determinada reivindicação da classe média e uma outra sobre a mandioca, quando deu o “estalo”:

No noticiário em questão, foi exibida uma matéria segundo a qual a classe média brasileira já estava reclamando muito. “E eu disse: ‘Imagine o pessoal da mandioca!’, o pessoal que planta mandioca, porque passa, que não tem nem direito de chorar. Aí, então, nasceu isso: ‘Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe/Da massa’. Fiquei com esse refrão desde 1976, até 1977. Foi quando Portugal colocou a letra”, recordou.

– Fui dormir, quando acordei no outro dia, já estava com o refrão da música na minha cabeça, ‘quando eu lembro da massa da mandioca mãe, a massa…’ (cantarola). Ainda falei com minha mulher, imagine o Maracanãzinho cantando essa música… Dito e certo, previ o sucesso! Mas, antes, gravei a música, em 1976, e levei pra Jorge Portugal fazer a letra, aí ele fez e quando eu ouvi, me emocionei demais. Essa música foi coisa de Deus, porque quando peguei o violão para fazer os acordes, eles casavam perfeitamente com o refrão, acho que Deus colocou no meu ouvido… mas, minha maior tristeza é saber que minha mãe não acompanhou o sucesso da Massa, uma pena! – revela o artista.

Ao começar a escrever A massa, Jorge Portugal relatou que se dirigiu à escrivaninha por volta das 11 h e, em pouco mais de dez minutos, já tinha feito a letra. Sodré, quando recebeu o telefonema de Jorge Portugal, se emocionou: “Quando eu peguei a letra, rapaz, eu chorei. Juro que as lágrimas vieram”.

E o que acontece quando a gente lembra da massa da mandioca?? Fazendo referências em inglês e francês, a “massa” pode ser lembrada como uma referência à maconha, quando fala que “nunca mais me fizeram aquela presença“, em que “massa” e “presença” eram gírias referentes ao consumo…

Mas ele deixa claro que a massa que fala “é a que passa fome“, para, em seguida, fazer referências a sambas-de-roda e chulas do Recôncavo Baiano.

Em 23 de agosto de 1980, veio a consagração. Final do festival MPB 80, promovido pela Rede Globo, no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Cenário lotado, uma apresentação que deixou o público de pé, como se pode ver no vídeo. Raymundo Sodré, de macacão branco e sem camisa, de chapéu e seu violão, fez uma apresentação inesquecível. Ficou em terceiro lugar, atrás de Foi Deus quem Fez Você, de Luiz Ramalho, interpretado por Amellinha, e a campeã foi Agonia, de Mongol, na voz de Oswaldo Montenegro.

A dor da gente é dor de menino acanhado
Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar
Que salta aos olhos igual a um gemido calado
A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar

Moinho de homens que nem jerimuns amassados
Mansos meninos domados, massa de medos iguais
Amassando a massa a mão que amassa a comida
Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais

Quando eu lembro da massa da mandioca mãe, da massa
When I remember of “massa” of manioc
Nunca mais me fizeram aquela presença, mãe
Da massa que planta a mandioca, mãe

A massa que eu falo é a que passa fome, mãe
A massa que planta a mandioca, mãe
Quand je rappele de la masse du manioc, mére
Quando eu lembro da massa da mandioca

Lelé meu amor lelé no cabo da minha enxada não conheço “coroné”
Eu quero mas não quero (camarão).
Minha mulher na função (camarão)
Que está livre de um abraço,
mas não está de um beliscão

Torno a repetir meu amor: ai, ai, ai!
É que o guarda civil não quer a roupa no quarador
Meu Deus onde vai parar, parar essa massa
Meu Deus onde vai rolar, rolar essa massa

No canal de Danilo Ribeiro no Youtube, Jorge Portugal contou de onde veio a inspiração da letra:

A dor da gente é dor de menino acanhado

“É aquela dor que nunca se expressa. Um menino acanhado é um menino tímido, um menino que está oprimido. Todos nós estávamos sob o regime militar, a ditadura militar.”

Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar/Que salta aos olhos igual a um gemido calado

“Aquele gemido do menino acanhado, que não expressa”, e que salta aos olhos da sociedade.

A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar

“Mal-assombrado era a ditadura.”

Moinho de homens que nem jerimuns amassados/Mansos meninos domados, massa de medos iguais

Nessa parte, Portugal descreveu, em algumas frases, a opressão recorrente na ditadura.

Amassando a massa a mão que amassa a comida

“Que distribui a comida, a sobrevivência.”

Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais

“São aqueles que não se rebelam, aqueles que não questionam, aqueles que estão em estado de letargia, de alienação, e que, portanto, são manobrados por aqueles que, na verdade, amassam a massa e têm toda a riqueza em suas mãos.”

Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe/Da massa… (refrão)

A partir do “Lelé, meu amor, Lelé/No cabo da minha enxada/Não conheço o coroné”, é um pot-pourri dos sambas e chulas.

Fonte: http://aqueimaroupa.com.br/2010/07/25/sodre-o-cantador-das-dores-e-amores-da-massa/

https://hugogoncalvesjor.blogspot.com/2020/07/raimundo-sodre-e-jorge-portugal-contam.html

Quando lembro da massa da mandioca, mãe…

Moraes Moreira no Museu de Arte da Bahia

O dia 8 de novembro de 2023 é o último dia em que está em exposição, no Museu de Arte da Bahia, a mostra Mancha de Dendê Não Sai – Moraes Moreira, que apresenta a trajetória musical de Moraes Moreira, um dos mais relevantes artistas baianos e brasileiros.

A trajetória de Moraes é contada desde sua história em Ituaçu, quando se interessava pela sanfona; a vinda para Salvador, quando foi apresentado a um de seus maiores parceiros musicais (Galvão), que foi a gênese dos Novos Baianos.

Narra a influência de João Gilberto para a sonorização do grupo, quando ele e Pepeu Gomes “roubavam” acordes de João quando ele ia tocar violão com os Novos Baianos.

Conta sua trajetória como primeiro cantor do Trio Elétrico, e sua parceria com Armandinho, Dodô e Osmar.

Trata de suas inúmeras parcerias musicais, de Fausto Nilo a Marisa Monte; Paulo leminski a Antonio Risério; Pepeu Gomes, Armandinho, Galvão, seu filho Davi.

A exposição começa contando a história de Moraes Moreira, com os textos pulverizados em plaquinhas de madeira trançadas, que conta sua trajetória pessoal e musical. A cenografia é de Renata Mota, a direção-geral é de Fernanda Bezerra.

Um dos destaques é sua releância e importância para o carnaval da Bahia. Nos anos 70 e prineira metade dos anos 80, Moraes Moreira era o verdadeiro rei do Carnaval da Bahia, e seus frevos trieletrizados, ijejás, sua mistura de ritmos foi fundamental para a grandeza da festa carnavalesca.

A mostra ainda contempla depoimentos de muitos parceiros de Moraes, contando histórias sobre experiências e composições, tem imagens de Moraes em cima do trio elétrico, tem áudios com suas poesias e literatura de cordel, e uma imagem marcante de seu violão cercado de microfones em volta.

É uma mostra que homenageia Moraes para quem o admira, e também interessanete para quem ainda não o conhecia. Importante legado de um dos artistas mais completos do Brasil.

Eu também quero beijar… ou Béjart?

Um dos grandes sucessos de Pepeu Gomes, “Eu também querio Beijar”, com um daqueles riffs  de guitarra que terminam por identificar a música, tem uma história bem curiosa.

A letra da canção, que trata de coisas boas, que eu lírico também quer beijar. Só que a origem não tem nada a ver com a ideia de beijo, mas da visita de um coreógrafo ao Brasil depois de quase 20 anos. 

Tratava-se de Maurice Béjart, que fazia sucesso no mundo inteiro (a sua coreografia do Bolero de Ravel é uma referência em todo mundo), e que, depois de muito tempo, viria ao Brasil. 

A história da letra é contada por Ruy Godinho, no terceiro volume do Livro “Então, foi assim? Os bastidores da criação musical brasileira” 

Estávamos em 1981. O general João Baptista Figueiredo, último presidente militar a governar o país, reafirmava o projeto de abertura política iniciado no governo anterior. Mais uma vez, o Rio de Janeiro teria o privilégio de receber o balé do famoso coreógrafo francês Maurice Béjart, da Opera National de Belgique. Béjart tinha uma grande ligação com o Brasil. Havia se apresentado aqui em 1963. Apesar do êxito da apresentação de sua companhia e a afeição que sentiu pelo país, só aceitou retornar em 1979, com o processo de abertura. Não concordava com o regime autoritário imposto pela ditadura. Naquele ano, o público lotou o Teatro Municipal do Rio de Janeiro para ver Béjart ao lado da bailarina brasileira Laura Proença. Ele não dançava havia dez anos.

No Rio, não se falava noutra coisa. Nos lares, nos bares, nas ruas. Ninguém queria perder Béjart. Todos queriam ver Béjart. Era Béjart pra cá, Béjart pra lá.

 Segundo Pepeu: “A gente fez essa música quando o Maurice Béjart, aquele coreógrafo, dançarino, estava no Rio de Janeiro. Eu estava andando muito com o Moraes na época. Mesmo pós-final dos Novos Baianos, a gente sempre teve uma ligação grande, a gente é meio padrinho dos filhos [um] do outro. E quando a gente ia ao Baixo Leblon, as pessoas ficavam dizendo: ‘Poxa, vamos ver o Béjart, eu também quero Béjart’. Aí a gente ficou com essa ideia na cabeça e fez Eu também quero beijar [risos]. E a música tornou-se um grande sucesso, foi uma alegria, foi o meu primeiro disco de ouro e tudo”, conclui Pepeu Gomes.

 O mote surgiu da presença de Béjart no Brasil. Porém, o letrista Fausto Nilo, convidado a participar da parceria, foi buscar elementos do folclore de Quixeramobim, no interior do Ceará, sua cidade natal, na contribuição que deu para o desenvolvimento da letra.

“Eu morava em Copacabana, na Tabajaras, ali perto do Teatro Opinião. O Moraes morava numa travessinha no Jardim Botânico, perto do Parque Lage”, começa seu relato o letrista cearense. “E, um dia, ele me ligou dizendo: ‘Cara, tô eu e Pepeu aqui. Estamos fazendo uma melodia interessante, não quer vir pra cá’? E eu fui. Quando cheguei, a música já estava quase pronta, eles estavam cantando com muito entusiasmo. Já estava bem-avançada. E eu, com o meu caderninho, comecei a anotar umas palavras. Normalmente eu conduzia, mas eles estavam participando, o Moraes dava palpite e tal. E fizemos. Deu certo, fizemos tudo, mas o refrão ninguém encontrava uma boa solução. Essa é minha versão”, preocupa-se Fausto com a fidelidade do relato.

Fausto Nilo

“O refrão, o Moraes disse assim:

‘– Eu tive uma ideia aqui. Eu fui ontem ver o Béjart, o bailarino, rapaz, no Teatro Municipal’!

E elogiou muito:

‘– Que coisa fantástica, aquilo é sensacional’.

E nessa conversa ele sugere:

‘– Por que a gente não põe assim: eu também quero Béjart’?

E como a loucura era grande, a gente cantou, achou bom, e ficou Eu também quero Béjart. A flor do desejo do maracujá… Já na parte que diz: haja fogo, haja guerra, isso é uma música lá da minha terra, de domínio público, do reisado. Só que lá a melodia tem outra forma: haja fogo, haja guerra, haja guerra que há/haja fogo, haja guerra, haja guerra que há/morreu secretário chegou general/haja fogo, haja guerra, haja guerra que há [Fausto canta com outra melodia]. E foi ficando uma coisa louca: haja fogo, haja guerra… eu também quero Béjart. E aí terminamos, a música ficou pronta e fomos tomar um cafezinho. Quando voltamos e pegamos de novo, eu falei assim:

‘– Cara, vamos ver uma ideia aqui porque não sei se o povo vai sacar essa história de Béjart, né? Essa música é muito popular e tal. Vamos simplificar pra Eu também quero beijar’. Como todo mundo quer beijar, pronto, ficou isso aí”, conta Fausto Nilo.

Maurice Béjart

Eu também quero beijar foi registrada originalmente no LP Pepeu Gomes (WEA, 1981); posteriormente, no CD Moraes e Pepeu no Japão (WEA, 1991); no CD Meu Coração – Pepeu Gomes (Trama,1999); e no CD Hits e Dubs – Cidade Negra (Epic/Sony Music,1999).